É proibido proibir!



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Flor de maconha em processo de “cura” (secar) / (Fotos: Chico Célio/Revista Berro)

De antemão, é importante sublinhar que o consumo de substâncias psicoativas faz parte da condição humana! Desde os mais remotos registros, há evidências de que o uso medicinal, ritualístico e recreativo de drogas acompanha a marcha histórica do homo sapiens. Os chineses e indianos do neolítico (cerca de 4.000 a.C.) já conheciam o poder da maconha de alterar a percepção dos sentidos e da consciência. Os índios amazônicos utilizam milenarmente uma substância extraída de uma rã – só encontrada naquela região – para rituais xamânicos de purificação e imunização. Na Grécia Antiga, consumia-se o haxixe junto com o ópio, uma preparação chamada Nepente, descrita na Odisséia, de Homero.

No entanto, nos últimos dois séculos, mais acentuadamente desde o início do XX, o consumo de drogas começou a ser proibido e a carregar padrões ético-morais estigmatizantes. De acordo com Sergio Vidal, antropólogo, pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos sobre Substâncias Psicoativas (GIESP) da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e editor da revista Maconha Brasil, no início do século passado “um grupo reduzido de cientistas e políticos influentes construiu uma série de leis, decretos e tratados internacionais que tinham como objetivo proibir totalmente os usos não-medicinais de plantas e drogas de interesse público e uso tradicional, como a folha de coca, a maconha, a papoula e outras, que até então eram utilizadas livremente por milhões de pessoas em todo o mundo, o restringindo apenas aos usos medicinais e científicos. Ao banir totalmente os usos não-medicinais, nós acabamos por descobrir que não é possível extinguir um comportamento social praticado por milhões de pessoas, nas mais diversas sociedades. É um comportamento humano que existe desde as primeiras civilizações e até mesmo antes delas”.

Os Estados Unidos foram os grandes incentivadores dessa política proibicionista. Inicialmente, nas primeiras décadas do século passado, quando a Guerra Civil Mexicana (1910-1917) provocou um grande êxodo para estados do sudoeste estadunidense; os mexicanos levavam com eles o hábito cultural de fumar maconha. Na época, o magnata americano da comunicação, William Hearst – que inspirou o filme Cidadão Kane, de Orson Welles -, empreendeu uma campanha sensacionalista em seus veículos contra os imigrantes mexicanos e o hábito de fumar marijuana, classificando-a como a “erva do diabo”. Como consequência da campanha difamatória, até 1927, doze estados americanos já tinham proibido e criminalizado o uso de maconha.

Seguindo a tendência proibicionista, em 1925, na Convenção de Genebra sobre Ópio e Outras Drogas, já há um indicativo para a proibição de várias substâncias psicoativas. Mas é sobretudo em 1961 que a Convenção Internacional de Narcóticos da Organização das Nações Unidas (ONU), assinada por 173 países, definiu a repressão generalizada como modelo-padrão. Uma década depois, em discurso pomposo na televisão, o presidente estadunidense Richard Nixon declara guerra às drogas, elegendo heroína, cocaína e maconha como suas prioridades. Em meados dos anos 80, o também presidente americano Ronald Reagan estende a “guerra” para além das fronteiras norte-americanas, num claro pretexto para intervenções militares em outros países.

Os governantes ianques e as Nações Unidas não podiam alegar desconhecimento das consequências negativas da Lei Seca americana, que proibiu o consumo de álcool nos Estados Unidos de 1920 a 1933 e gerou, como resultado, o aparecimento do mercado clandestino e o consequente fortalecimento das máfias que vendiam o produto ilegalmente, tornando célebre figuras como o gângster Al Capone. Ao deixar a gestão do comércio de bebidas alcoólicas nas mãos do crime organizado, a política proibicionista só deu mais poder à máfia. Esta, dali em diante poderosa e rica, atrelou-se ao mundo dos negócios, à política eleitoral e ao jogo de xadrez da política internacional. Para o professor de Química Francisco Ribeiro, que há doze anos se dedica ao ativismo pró-cannabis no Brasil e é um dos organizadores da Marcha da Maconha no Rio de Janeiro, o “episódio da Lei Seca deixa claro que nunca será possível impedir uma pessoa que quer comprar, e outra que quer vender, de realizar um negócio”. Mas os presidentes americanos e a ONU pareciam não ter aprendido a lição.

Concomitante ao desenvolvimento da repressão militarizada, em meados dos anos 70, o cartel de Medellín, na Colômbia, começava a caminhada para tornar-se na década de 80 uma das maiores organizações do narcotráfico mundial, eternizando traficantes midiáticos e icônicos como Pablo Escobar. É uma conta muito simples: quanto maior a repressão, mais cara a droga e mais ricas e poderosas as máfias organizadas – que têm o oligopólio do comércio. São diversos os efeitos socialmente negativos que a proibição, ou seja, que a política de guerra às drogas traz consigo:

altos índices de violência e morticínio. Segundos dados do Mapa da Violência 2013: Homicídios e Juventude no Brasil, 56,12% dos 52.198 homicídios no país em 2011 tinham ligação com o tráfico de drogas. São dezenas de milhares de pessoas perdendo suas vidas por envolvimento direto ou indireto com o narcotráfico. São jovens que crescem excluídos das políticas públicas de saúde, educação, moradia, saneamento básico, inclusão social e veem no comércio ilegal de drogas uma possibilidade de status e reconhecimento social que a pobreza, a sociedade e o Estado lhes negam. Esses operadores do varejo são só a ponta do iceberg, a superfície visível e descartável do mercado mundial de drogas;

vários problemas de saúde pública. A marginalização social do usuário de entorpecentes acarreta o surgimento de infindáveis “cracolândias” como a do centro de São Paulo, lugares para o uso de drogas sem o mínimo de condições de higiene e saúde, berçários de diversas enfermidades viróticas e bacterianas e de profusão de doenças sexualmente transmissíveis;

violência e corrupção policial. A guerra às drogas estimula a militarização cada vez maior das políticas de segurança pública, que têm uma necessidade sempre crescente de controle social, principalmente dos moradores de comunidades economicamente vulneráveis, vide o exemplo das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) no Rio de Janeiro. Tendo o suborno e a extorsão como práticas corriqueiras, boa parte da Polícia contribui para a manutenção do tráfico de drogas. Além também do poder das milícias, grupos militares criminosos que dominam territórios antes exclusivos dos traficantes e exploram a população com o monopólio ilegal da venda de água, energia, gás, telefone e internet (o filme Tropa de Elite 2 aborda esse tema);

desinformação e consequente construção de tabus e mitos. A lacuna de informação de qualidade, honesta e aprofundada sobre as drogas dissemina e reforça preconceitos e estereótipos contra os usuários e eleva o medo social. Para o antropólogo e pesquisador da UFBA, Sergio Vidal, “é preciso combater o preconceito e a ignorância não apenas no tema das drogas, mas em todas as áreas da sociedade, só assim poderemos construir uma sociedade aberta e que acolha toda sua diversidade”.

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Ilustração: Rafael Salvador/Revista Berro

 

Segundo o psiquiatra Rafael Baquit, membro do Coletivo Balanceará de Redução de Riscos e Danos e representante da ABORDA (Associação Brasileira de Redução de Danos) no Ceará, “podemos considerar que, sobre drogas, a sociedade está muito mais ‘desinformada’ do que educada. As drogas são tratadas como uma questão moral e criminal há muito tempo, e há pouco a evolução foi considerá-las uma questão de doença. Acho que o grande paradoxo é que, em meio a tanto pré-conceito e intolerância, a imensa maioria da humanidade faz e sempre fez uso de drogas”;

encarceramento em massa e constante violação aos direitos humanos. Hoje, o Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo, com cerca de 600 mil presos, 2/3 dos quais estão no sistema penitenciário por tráfico de drogas. Para Henrique Alencar Neto, ativista do coletivo cearense Plantando Informação, organização que milita pela legalização e regulação da cannabis e também organiza a Marcha da Maconha de Fortaleza, “a guerra às drogas tem sido um sucesso como política de controle social. A verdade é que o proibicionismo esconde por trás do discurso de proteção à saúde pública uma política de controle de populações específicas, que enjaula e extermina a juventude negra e pobre do país, que justifica a implantação de bases militares em comunidades pobres, que justifica mandados de busca pra um bairro inteiro. Na prática o que existe é uma guerra aos pobres!”.

Corroborando com as mesmas ideias, Orlando Zaccone, delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro e membro da LEAP Brasil (Law Enforcement Against Prohibition – organização internacional de agentes policiais e do judiciário que defendem a legalização e regulação das drogas), ressalta que “a cadeia virou um depósito de pessoas que têm que ser colocadas em algum lugar porque elas não podem mais ser contempladas no modelo econômico”. Não à toa a população esmagadora do sistema prisional é composta de jovens negros das favelas, numa política de controle social perversa ao povo pobre. As prisões brasileiras são verdadeiras universidades do crime, além de locais abarrotados, sujos e sem condições mínimas de higiene, ultrajantes à dignidade humana. Ainda assim, mesmo com precária estrutura, um detento custa 21 mil reais por ano nas prisões estaduais e 40 mil reais/ano nas federais. Para efeito de comparação, o investimento por aluno da rede pública no ensino fundamental é de pouco mais de 2 mil reais/ano;

estímulo ao mercado ilegal de armas. Com uma militarização e uma repressão cada vez mais violentas, o narcotráfico precisa se equipar qualitativamente para o enfrentamento com a Polícia e com as Forças Armadas, aquecendo principalmente o mercado ilegal de armas;   

enriquecimento e fortalecimento do narcotráfico. Segundo dados da ONU, o mercado de drogas ilegais representa 8% do comércio mundial, algo em torno de 750 bilhões de dólares por ano. O mercado brasileiro movimenta 1,4 bilhão de dólares anualmente. O tráfico de drogas é provavelmente a atividade mais lucrativa do mundo. No livro Zero, Zero, Zero, referência à farinha de trigo mais pura da Itália e uma alusão óbvia ao pó da cocaína, o escritor Roberto Saviano, autor do livro mundialmente conhecido Gomorra, sobre a máfia napolitana, diz que um quilo de coca pura sai por 1,5 mil dólares da Colômbia, país que produz a droga, e chega a custar até 77 mil dólares no Reino Unido, uma valorização de mais de cinquenta vezes.

Não à toa as máfias mexicanas e colombianas, principais produtoras, e as italianas e russas, principais compradoras, possuem aviões, companhias de táxi aéreo, submarinos, enfim, um aparato tecnológico sofisticado que lhes garante otimização dos lucros e o menor risco possível de perdas financeiras. De acordo com Francisco Ribeiro, que também é coordenador e colunista da versão brasileira da revista argentina HAZE e fundador da revista Maconha Brasil, “a política de guerra às drogas é uma farsa, porque existe toda uma indústria que a sustenta, produzindo, transportando e dando segurança às toneladas de drogas que viajam pelo mundo, mas o combate só existe na sua ponta mais frágil, que é nas favelas, na esfera varejista, entre a população negra e pobre”. Ainda segundo o colunista, um exemplo claro que ilustra este fato é o “episódio do ‘helicóptero do pó’, que transportava quase meia tonelada de cocaína e o processo não manteve preso o piloto nem o proprietário como inclusive já devolveu a aeronave. Só faltou devolver o pó!”, brinca.

Ora, onde você acha que estão esses 750 bilhões de dólares que o tráfico mundial de drogas movimenta por ano? De início, parte dessa quantia bilionária estimula o consumo de alto luxo, seja nos ramos imobiliário, automobilístico ou da moda (bolsas, acessórios, calçados, vestimentas). Uma outra parte é gasta subornando autoridades nacionais e internacionais em todo o mundo, bem como contratando assessorias jurídicas especializadas. Contudo, a grande maioria dos vultosos lucros é incorporada ao mercado financeiro e está nos bancos. Segundo Saviano, Nova Iorque e Londres são hoje as duas maiores lavanderias do mundo, atuando com complexos sistemas de lavagem de dinheiro, que envolvem compra de ações, empréstimos interbancários, emissão de títulos eletrônicos, entre outras modalidades do ramo financeiro. Para Zaccone, “a quarta maior economia do mundo, segundo o FMI (Fundo Monetário Internacional), é a economia das drogas ilícitas. E esse dinheiro não está nas favelas, nos guetos, esse dinheiro está no sistema econômico”.

A constatação que salta aos olhos é que a receita gerada pelo mercado mundial das drogas ilícitas é um dos assentos da roda-gigante que faz girar o capitalismo globalmente. Nesse ponto também reside uma das explicações para a sustentação dessa política proibicionista claramente fracassada no tocante às suas premissas: não reduziu o consumo, aumentou a violência e tampouco combateu o crime organizado. Para o ativista Henrique, o proibicionismo “não cumpre nada do que propõe e gera mazelas muito mais nocivas à sociedade do que o consumo de drogas”. Segundo o médico e representante da Associação Brasileira de Redução de Danos no Ceará, Rafael Baquit, “a proibição não é mais uma tentativa de resolver, mas um grande problema a ser superado”.

Não obstante o fracasso no discurso, há muitos interesses poderosos envolvidos na guerra às drogas. Países inteiros estão sob a influência dos grandes narcotraficantes. É uma falsa dicotomia tentar opor o Estado às grandes máfias de drogas. Não são rivais, pelo contrário, estão muito bem situados, são cúmplices, se locupletam o tempo todo, ao ponto das máfias de drogas e armas assumirem grande importância nos setores burocrático, governamental, imobiliário, nos bancos, nos negócios do Estado, na alta política, e nas indústrias do entretenimento espetacular: televisão, cinema, internet, jornais, revistas.

A saída é legalizar

A política proibicionista, como explicitado, claramente fracassou: promoveu um morticínio generalizado em diversos países do mundo (Brasil, México, Colômbia, etc.) e aumentou o poder do tráfico internacional com a repressão militarizada. Enquanto os operadores da ponta do iceberg se matam pelo comando das bocas de fumo (biqueiras), os grandes barões da droga – aqueles que transportam toneladas de cocaína por helicópteros, aviões e submarinos – estão lavando o dinheiro em diversas transações bancárias e sentam-se à mesa do capitalismo financeiro para tratar com governantes sobre negócios. Diante do inegável desarranjo discursivo da política de guerra às drogas, uma alternativa se apresenta com pertinência e viabilidade: a legalização.

Legalizar as drogas não significa, como muitos pensam, um total descontrole em relação à produção, à distribuição, ao acesso e ao consumo dessas substâncias. Pelo contrário, legalizá-las implica em um maior controle qualitativo sobre essas etapas, a partir de uma eficiente regulação, que definiria, por exemplo, parâmetros de qualidade para as substâncias, controle de vendas a menores, proibição de propagandas, um amplo e bem embasado programa de educação e informação nas diversas mídias, escolas, equipamentos culturais, etc. sobre as consequências do uso das variadas drogas, além de delimitar a quantidade de pés para o cultivo doméstico e coletivo (em cooperativas) de cannabis.

De acordo com o psiquiatra Rafael Baquit, “a proibição é um problema, e gera muito mais mortes do que o uso de qualquer substância psicoativa. Logo, não faz sentido que alguma droga permaneça proibida, precisamos regulamentar todas elas. Claro que estas drogas têm diferentes importâncias, para diferentes populações e envolvem diferentes riscos e danos associados; a regulamentação de cada droga deve ser adequada a estes e outros fatores”. Hoje, o que acontece é que o Brasil é um dos países no mundo que mais consome ansiolíticos (drogas legais vendidas em farmácias), mas trata a questão das drogas ilícitas com obscurantismo, preferindo-as deixar embaixo do tapete, ao sabor dos mitos e estereótipos marginalizantes – ao passo que boa parte de sua sociedade cada vez mais adoece e se anestesia à base de Rivotril.

“Quantas vidas seriam salvas se cocaína pudesse ser comprada nas farmácias e tivesse em suas embalagens por exemplo a concentração/grama e se na sua composição não fosse permitida a adição de uma infinidade de porcarias colocadas para aumentar o lucro?”, indaga o professor de Química (sem trocadilhos, por favor!) Francisco Ribeiro. De acordo com o militante do coletivo Plantando Informação, Henrique Neto, “legalizar as drogas não significa disseminá-las, mas o oposto. Proibir as drogas causa muitos mais danos à sociedade do que o consumo delas”.

Enquanto o mundo avança a passos largos nessa discussão, o Brasil, rota do comércio internacional de cocaína e um dos maiores consumidores de drogas do hemisfério sul e no qual morrem dezenas de milhares de jovens anualmente por esta guerra, finge que não é com ele e caminha feito tartaruga. Para se ter uma idéia do quanto estamos atrasados nesse debate, enquanto a Holanda descriminalizou os usuários em 1976 e legalizou/regulou os seus famosos coffee shops em 1980, só em 2006 a mais recente lei de drogas brasileira (11.343) descriminalizou o consumo, mas ainda assim é absolutamente confusa em relação à quantidade, cabendo ao juiz e ao policial decidir quem é traficante e quem é usuário. Dessa maneira, o classe-mediano pego em flagrante com drogas no bairro nobre é tachado como usuário enquanto que o negro flagrado com a mesma quantidade na favela é enquadrado como traficante. Ou seja, a legislação dá ampla margem ao tratamento diferenciado de acordo com classe social, cor da pele, etc. “Uma lei em que 50g de maconha em uma região pobre dá cadeia de 14 anos por tráfico e numa região nobre se tipifica como usuário nunca será um sucesso”, pontua o professor Francisco Ribeiro.

Ainda em relação a essa lei, há uma ação de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF) movida pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, alegando que a mesma contraria o artigo 4º da Carta Magna, que assegura a todo cidadão a inviolabilidade da vida privada, ou seja, como o uso de drogas não lesa o Estado ou o bem jurídico de terceiros, não seria passível de criminalização. “Não existe crime sem vítima, essa é a natureza do Código Penal, é o seu pilar, seu princípio, e não foi respeitado ao tentarmos implantar o sistema proibicionista. O consumo de drogas é um crime sem vítimas, já que é praticado por um indivíduo que, em quase totalidade das vezes, está consumindo a substância por livre e espontânea vontade, por seus próprios interesse e iniciativa”, ressalta o pesquisador da UFBA e redutor de danos Sergio Vidal. O STF, por sua vez, trata este caso com leniência e extrema morosidade. Nossos vizinhos Argentina, Uruguai e Colômbia estão bem à frente em relação à despenalização do usuário, com leis claras sobre o tema. Há exemplos também na Guatemala, Portugal, Espanha, República Tcheca, entre outros. De acordo com a jornalista e militante pela legalização da maconha, Aline de Farias, “Portugal é um bom exemplo de país que descriminalizou as drogas e os resultados lá têm sido positivos, com um maior diálogo entre os usuários e o Governo”.

Na contramão do mundo, há um Projeto de Lei (7663/2010), do deputado Osmar Terra (PMDB/RS), aprovado na Câmara Federal e tramitando no Senado, que prevê a internação compulsória para usuários de drogas e a reclusão destes em clínicas terapêuticas religiosas, ferindo o princípio do Estado laico. O PL ainda estipula uma pena maior do que a de homicídio para quatro pessoas ou mais que forem flagradas consumindo drogas. Um verdadeiro retrocesso! Por outro lado, há alguns PLs progressistas que versam sobre a regulamentação da produção e da distribuição da maconha, como os dos deputados federais Jean Willys (PSOL-RJ) e Eurico Júnior (PV-RJ). Já no Senado, Cristovam Buarque (PDT-DF) é o relator na Comissão de Direitos Humanos (CDH) de uma sugestão da sociedade civil que solicita a regulamentação do uso medicinal e recreativo da maconha.

Contudo, sabe-se que o Congresso Nacional é sobremaneira conservador e dificilmente aprovará uma lei progressista em relação às drogas se não houver em contrapartida intensa pressão e mobilização sociais. Basta lembrar que o STF só liberou a Marcha da Maconha, em 2011, após esta ir às ruas mobilizada e organizada. Ou seja, não é o Estado que dá direitos, mas o povo que os conquista!

Modelo ideal?

Em suma, a legalização e regulação de todas as drogas teria, como efeito imediato, o desbaratamento do mercado bilionário do narcotráfico, acabando com sua renda e consequentemente com toda a violência e corrupção a ele associadas. Está claro que investir em prevenção, acesso de qualidade e informação sobre os efeitos das substâncias psicoativas, bem como em programas multiprofissionais e multidisciplinares de saúde para os adictos, baseados (com o perdão do trocadilho!) na redução de danos, é bem mais eficaz socialmente e demanda muito menos recursos do que gastar com equipamentos sofisticados de militarização e com o inchaço do sistema prisional.

E como seriam os pormenores desse modelo de legalização das drogas? Esta seria controlada pelo Estado ou pelas leis do mercado? Estatizante, como o modelo uruguaio; ou liberal, como nos estados americanos Colorado e Washington? (Os exemplos citados legalizaram só a maconha; o que defende-se aqui é a legalização de todas as drogas). Só se saberá após uma ampla discussão social, trazendo esse debate à tona, elevando-o e aprofundando-o.

O ativista Henrique Neto, do coletivo Plantando Informação, defende um “modelo regulado pelo Estado, mas que possibilite a distribuição da riqueza que a maconha pode gerar, com cooperativas de cultivadores e com distribuição estatal de maconha produzida por pequenas propriedades, além do cultivo caseiro”. Por sua vez, o professor Ribeiro atesta que, como o Brasil tem dimensões continentais, seria “necessário um modelo próprio dentro de nossas particularidades. Fato é que se aplicarmos uma regulamentação/legalização o tráfico acaba na hora. Acaba porque ele passa a ser contrabando. Hoje deve ser mais fácil para um menor comprar maconha numa boca de fumo do que álcool em uma mercearia porque traficante não pede RG!”.

Agricultor e sua colheita canábica (Foto: acervo do Hash, Marijuana & Hemp Museum/Amsterdã)

Na opinião do psiquiatra Rafael Baquit, “todas as drogas devem ser rigorosamente regulamentadas e controladas pelo Estado em sua produção, distribuição e comercialização. Pode até envolver dinheiro da iniciativa privada, mas sob rígida regulamentação em favor da saúde pública, e não do lucro”. O médico ainda pontua que “no Brasil temos o exemplo de duas drogas lícitas populares, uma cada vez melhor regulada pelo Estado (tabaco) e outra pessimamente regulada (álcool). Atualmente, num mesmo momento histórico e jurídico em que a indústria do tabaco é proibida de veicular propaganda, a indústria do álcool tem liberdade para divulgar suas poderosas e apelativas campanhas que beiram a apologia”. “Desde pequeno você é induzido a fumar, induzido a beber, ouvindo a tevê falar: diga não às drogas, use camisinha e pare de brigar, mas beba muito álcool até sua barriga inchar” (Planet Hemp, A culpa é de quem?). “Os ricos fazem campanha contra as drogas e falam sobre o poder destrutivo delas, por outro lado promovem e ganham muito dinheiro com o álcool que é vendido na favela” (Racionais MC´s, Homem na estrada).

Para a jornalista Aline de Farias, “é preciso abrir o debate em relação à política sobre drogas, que diminua os danos associados ao uso e ao abuso na nossa sociedade. Devemos ter um clima mais aberto de discussão sobre as diferentes drogas, o efetivo respeito aos direitos dos usuários, a prevenção, o tratamento e a redução dos danos”.

Na visão do antropólogo Sergio Vidal, “assim como em todas as outras políticas públicas, cada país precisa estudar as melhores soluções para suas próprias realidades. Não adianta importar nenhumas das experiências existentes na atualidade, seja a do Uruguai, da Espanha, dos EUA, da Holanda ou qualquer outra. É necessário montar uma equipe de especialistas multidisciplinar, orientada por diferentes estudos e iniciar a elaboração de um projeto exclusivo para o Brasil, que poderá ter influência da experiência de outros países, mas que certamente precisará de adaptações à realidade nacional, que é bastante específica. Não encontraremos soluções prontas ou estáticas para nenhuma questão política ou social da atualidade, a maconha é apenas mais uma entre todas”.

O que não se pode é que, mesmo com todas as consequências nocivas da guerra às drogas, continue-se obscurecendo esse diálogo, alimentando-o com mitos, inverdades e desinformação de má-fé. “Não devemos é ter medo, deixar de agir e nos mantermos na atual situação política e social, pois a realidade atual é muito ruim”, desabafa o pesquisador da UFBA. É chegada a hora da alternativa a esse modelo proibicionista. Legalizem as drogas!

A guerra à planta

De todas as substâncias psicoativas ilegais, a maconha é a que tem mais usuários no mundo. Estima-se que essa quantidade varie de 200 a 400 milhões de pessoas. Difícil ter precisão sobre esse número. Mas a erva consegue ser tão popular porque se adequa aos mais variados tipos de clima e solo, sendo plantada em 172 países e territórios.

Pesquisadores dizem que a origem da cannabis deu-se na Ásia, podendo ter “surgido” no Himalaia, na China ou na Índia. O fato é que essas culturas são as que têm os mais remotos registros de contato com essa planta. Há doze mil anos, quando o sapiens sequer tinha inventado a escrita ou a roda, já usava fibras de cânhamo (maconha) para fazer cordas. A cannabis sativa foi uma das primeiras plantas a serem domesticadas pela humanidade, há dez mil anos. Por volta de 5.000 a.C., há evidências do uso cultural da maconha na China: suas fibras eram utilizadas para confeccionar redes de caça e pesca, roupas, cordas, etc. e suas sementes eram usadas para alimentação. A literatura budista diz que Sidarta Gautama, o Buda, passou seis meses alimentando-se unicamente de sementes de maconha, riquíssimas em ômega-3, ácido graxo fundamental para o bom funcionamento cerebral e contra problemas cardíacos.

Mas foram os indianos que fizeram primeiramente o uso ritualístico e transcendental da erva. Os livros sagrados do hinduísmo, uma das religiões mais antigas da humanidade, que data de milhares de anos a.C., descrevem a maconha como um presente dos deuses. Ainda hoje, os hindus a consomem em referência ao deus Shiva. De lá para cá, a erva se espalhou pelo mundo, devido às trocas comerciais entre os povos e às navegações colonizadoras. Seu uso variou, de acordo com a cultura, entre as formas medicinal, religiosa e recreativa. Os rastafáris jamaicanos e os adeptos do Santo Daime, por exemplo, consideram a erva uma planta sagrada e cultuam-na com devoção; a maconha é respectivamente, para eles, Kaya e Santa Maria, a energia feminina de Deus. Os índios amazônicos usam-na, acompanhada da ayahuasca, para rituais xamânicos de autoconhecimento e purificação.

Historiadores defendem que a cannabis chegou ao Brasil pelos escravos africanos, embora as caravelas de Cabral tinham parte de suas estruturas feitas de cânhamo. Mas foram os negros arrancados à força de sua terra que trouxeram a diamba para o país e cultivavam-na entre as imensas plantações de cana-de-açúcar do período colonial.

Contudo, no último século, acentuadamente, a erva foi sofrendo um processo de marginalização que culminou na criminalização do seu consumo em diversos países do mundo. A proibição ao consumo de maconha no Brasil sempre esteve ligada à repressão aos elementos da cultura negra. Em 1932, junto com a cannabis, foram proibidos o samba, o candomblé, a capoeira e outras manifestações da cultura afrobrasileira. Em 1938, há o endurecimento das penas para tráfico e consumo. “Os negros já fumavam erva antes d´África deixar, mas os senhores proibiram por não querê-los libertar, e os senhores de hoje em dia estão proibindo também, se o pobre começa a pensar, parece que incomoda alguém” (Planet Hemp – A culpa é de quem?). Fato similar ocorreu nos Estados Unidos, no qual a proibição à marijuana deu-se também para suprimir elementos da cultura mexicana naquele país, uma vez que o consumo da erva estava muito atrelada aos latinos.

Em outras partes do mundo, a proibição da cannabis, principalmente do seu uso recreativo, não teve relação direta com elementos raciais, imigratórios ou xenófobos, mas à tradição judaico-cristã conservadora e moralista, que penaliza o prazer e a liberdade do gozo experimental. A maconha foi disseminada como “erva do diabo” por estas religiões. Portanto, a guerra à planta é historicamente recheada de obscurantismos religiosos, além de elementos racistas e xenófobos.

MACONHA: Mitos e verdades

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Pés de maconha “adolescentes”

Quando se pretende uma abordagem aprofundada sobre a maconha – ou qualquer droga -, é importante não cair nas armadilhas do maniqueísmo superficial: ou só faz mal ou só faz bem. Como qualquer substância psicoativa, a maconha tem seus prazeres e riscos. Não é inofensiva, como muitos “maconheiros” apregoam, tampouco esse bicho de sete-cabeças, essa “erva do diabo” como muitos “caretas” colocam. Aqui, vamos tecer considerações e tentar esclarecer acerca de alguns mitos falaciosos sobre a erva, bem como a respeito de algumas verdades inconvenientes aos amantes da ganja.

MITOS

Maconha mata – Essa talvez seja a mentira mais dissimulada que já inventaram sobre a erva. Nunca houve relato na literatura médico-científica mundial de morte por overdose de maconha. Certa vez, um juiz que trabalhava num órgão antidrogas dos Estados Unidos, em um de seus relatórios sobre a substância, explicou que para vir a óbito o usuário teria de fumar 680 kg (20 a 40 mil baseados) da erva num intervalo de quinze minutos, o que, convenhamos, é humanamente impossível.

Maconha causa câncer de pulmão – Isso não é verdade, concluiu o maior estudo epidemiológico feito sobre o assunto. Não existem evidências sociais e científicas suficiente (apenas hipóteses e suposições) para dizer que a cannabis cause qualquer tipo de câncer. Pelo contrário, há diversos estudos publicados nos últimos anos que afirmam que a erva pode ser um remédio eficaz para os tumores.

Fumar maconha emburrece e mata neurônios – Mais uma mentira que foi sendo alardeada aos quatro cantos e hoje muitos pensam que é verdade. De acordo com o Programa de Orientação e Assistência a Dependentes da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), durante seu efeito no organismo – a famosa “lombra” -, a maconha altera o funcionamento dos neurônios, mas não tem capacidade para destruí-los. Quanto ao “emburrecimento”, não existe um estudo conclusivo a respeito dos efeitos da maconha sobre a inteligência em longo prazo, mas sabe-se que seu uso desde a adolescência causa problemas de memorização e dificuldade de atenção.

Maconha causa esquizofrenia e outras doenças psiquiátricas – De fato, segundo estudos acadêmicos, a ocorrência dos problemas é duas vezes maior em usuários regulares do que em pessoas que nunca fizeram uso da droga. No entanto, não há evidência se é a maconha que causa/estimula o problema ou o contrário – ou se os dois sintomas são consequência de um outro fator, como o genético, por exemplo. Ser vítima de bullying, ou viver num ambiente familiar conflituoso são fatores de risco bem mais consideráveis para a causa ou desenvolvimento dos problemas/doenças psiquiátricos(as) do que o uso de maconha. Para o psiquiatra Rafael Baquit, “os problemas relacionados ao uso de drogas são uma resultante da interação sujeito + ambiente social + drogas, e por esse motivo fica difícil atribuir exclusivamente a uma droga a causa de um problema. Os transtornos psiquiátricos e alterações psicológicas dependerão dessa interação”.

Porta de entrada para drogas mais pesadas – Há uma montagem na internet que trata essa inverdade de maneira jocosa. Diz assim: “Maconha porta de entrada? Só se for da geladeira”. Na fotomontagem, uma criança abre a geladeira e procura o que comer. Brincadeiras à parte, o fato é que não há nenhuma evidência biológica que sustente esse mito. Na verdade, a ligação da maconha com drogas mais pesadas está no proibicionismo, que faz com que usuários da erva recorram à droga nas mesmas bocadas (biqueiras) que vendem cocaína, crack, etc.

De acordo com o antropólogo e pesquisador da UFBA Sergio Vidal, “a teoria da escalada, ou da escadinha, ou da porta de entrada, chamada no original de ‘The Gate Way Theory’, se mostrou totalmente equivocada ainda na década de 1980. Atualmente, nenhum pesquisador sério considera essa afirmação verdadeira”.  Segundo o psiquiatra e membro do Coletivo Balanceará de Redução de Riscos e Danos, Rafael Baquit, “um livro tradicional de psiquiatria brasileiro de 1979, do professor Nobre de Melo, já afirmava: ‘Acusar a maconha do primeiro degrau da escada sinistra que conduz ao álcool, e cujo último ponto é a heroína, não passa de retórica policialesca, sem qualquer fundamento médico-científico’”.

VERDADES

Aumenta o risco de enfarto em pessoas com histórico de problemas cardiovasculares em 4,8 vezes. No entanto, este mesmo estudo conclui que a droga é uma causa relativamente rara para esse tipo de problema.

Acarreta problemas de memória e atenção. Se o uso frequente e contínuo iniciou-se na adolescência e estende-se até a vida adulta, pode causar dificuldades de memorização e atenção irreversíveis. Segundo o psiquiatra Rafael Baquit, “a maconha causa alterações cerebrais permanentes em adolescentes usuários.”

Aumenta a chance de bronquite e prejudica a capacidade respiratória, como qualquer outra substância fumada, devido à absorção de fumaça tóxica

Causa dependência química em cerca de 9% das pessoas que a experimentam, segundo estudo de 2006, intitulado “The epidemiology of cannabis dependence” (A epidemiologia da dependência da cannabis). Entretanto, a mesma pesquisa conclui que anfetaminas (11%), álcool (15%), cocaína (17%), heroína (23%) e nicotina (32%) causam maior dependência comparadas à maconha.

Se as verdades e os mitos sobre a maconha são as justificativas utilizadas para a sua proibição, substâncias lícitas como o tabaco e o álcool, se fosse usada a mesma lógica, já há muito teriam de ser proibidas. Segundo dados do Instituto Nacional de Câncer (INCA), o tabaco causa diversos tipos de câncer (boca, laringe, faringe, esôfago, pâncreas, rim, bexiga, colo de útero, além de 90% dos casos de pulmão), doenças cardiovasculares (risco cinco vezes maior de sofrer enfarto) e respiratórias (risco cinco vezes maior de sofrer de bronquite crônica e enfisema pulmonar), além de promover uma dependência severa, quatro vezes mais perigosa que a da maconha.

A partir de uma compilação de diversos estudos internacionais (Paolo Boffetta, Alcohol and Cancer – 2006; Arthur Klatsky, Alcohol and cardiovascular health – 2010; Thor Norström, Alcohol, supressed anger and violence – 2010; M. Herreros-Villanueva e outros, Alcohol consumption of pancreatic diseases – 2013), além de dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), constata-se que o álcool, por sua vez, aumenta em três vezes a incidências de doenças psicóticas em mulheres e oito vezes nos homens; é fator de risco considerável para hipertensão, derrame cerebral e arritmias cardíacas; produz cirrose, hepatite, 70% dos casos de pancreatite, diversos tipos de câncer (boca, faringe, esôfago, fígado, intestino e mama), além de predispor a uma maior agressividade dos indivíduos que o consomem, sendo inclusive associado à violência doméstica em muitos casos pesquisados.

Recentemente a OMS fez uma pesquisa e concluiu que o uso recreacional de maconha traz menos malefícios à saúde pública e individual do que o tabaco e o álcool. Duzentas mil pessoas morrem anualmente pelo consumo de entorpecentes no mundo todo. Nenhuma é devido ao uso da erva. Já por outro lado, o tabaco e o álcool matam, respectivamente, cinco e dois milhões de pessoas por ano.

Segundo o médico Rafael Baquit, “podemos considerar a maconha uma droga mais leve que o álcool. A maconha não só tem menor potencial de risco para dependência, tem síndrome de abstinência leve, quando há, e não pode dar overdose. O álcool não só pode trazer uma overdose, como seu risco para dependência é maior e sua síndrome de abstinência pode chegar a matar”.

A cura verde

A estigmatização negativa da maconha na sociedade brasileira é responsável pelo absurdo do seu uso medicinal não ser amplamente difundido para amenizar os efeitos de várias enfermidades. Embora a lei brasileira preveja o uso da cannabis medicinal, uma falta de regulamentação mais clara impede e inviabiliza sua plena aplicação. O canabidiol (CBD), um dos princípios ativos da maconha, reconhecidamente eficaz no tratamento de diversas doenças, ainda é proibido no Brasil e não tem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) (Atualização: Em janeiro de 2015, a Anvisa liberou o CBD como remédio controlado). Sua importação pode ser solicitada excepcionalmente junto ao órgão. No entanto, a permissão da lei brasileira para o uso de maconha medicinal, assim como muitas outras legislações, existe no papel, mas na prática uma burocracia gigantesca é forte empecilho para a obtenção do CBD. Há incontáveis relatos de pacientes que submetem o pedido de maconha medicinal à Anvisa e têm suas demandas negadas. O documentário Ilegal, de Tarso Araújo, retrata bem essa questão.

Assim, mais uma vez o Brasil segue atrasado e na contramão de muitas políticas mundiais que não só regulamentam a maconha para fins medicinais como permitem o cultivo doméstico e coletivo (em cooperativas) da planta. Mesmo nos Estados Unidos, país símbolo da guerra às drogas, o uso de maconha para fins terapêuticos é liberado em 21 estados. Países como Canadá, Holanda, Israel, França, Espanha, Austrália, Itália, Suíça e Reino Unido também adotam o modelo de liberação para esse fim. Mesmo com a proibição, nas palavras do pesquisador da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Sergio Vidal, que trabalha com programas de redução de danos e é autor da “bíblia” do cultivo caseiro de maconha no Brasil, o conhecido Cannabis Medicinal: Introdução ao Cultivo Indoor, “procuro tornar os usuários medicinais um pouco mais autônomos, capacitando-os com os conhecimentos básicos sobre o cultivo da planta para que possam ter acesso a modos de preparar o seu próprio medicamento”.

A monstruosa burocracia brasileira que emperra o uso medicinal é bastante irracional, se levarmos em conta o amplo leque de benefícios que a cannabis traz aos pacientes. De acordo com o Conselho Americano de Medicina Familiar (www.jabfm.org), a erva serve, em graus variados de eficiência, para náusea e vômitos, anorexia e perda de peso, dor neuropática, fibromialgia, espasmos causados por esclerose múltipla ou lesão da medula, dor em decorrência do câncer e do seu tratamento, asma, glaucoma e epilepsia, controle das alterações causadas pelo Alzheimer, dor pós-operatório ou causada por processos inflamatórios, entre outros.

“Atualmente estamos vendo os milagres do uso do CBD, mas é importante lembrar que o THC também tem importantes propriedades medicinais, como alívio de dores, náuseas, aumento do apetite e melhora do paladar, devolução da qualidade do sono, dentre outros benefícios. Quantas pessoas dormem todos os dias com o uso de tarjas pretas?”, indaga a jornalista Aline da Farias.

Enfim, sem proselitismo algum, é fato que a maconha pode salvar vidas ou amenizar a dor de muitas pessoas. O que impede o Brasil de avançar nessa questão são suas instituições e sociedade altamente conservadoras, que colocam elementos religiosos e morais acima dos interesses sociais. Racional e humanamente falando, não há motivo algum para a proibição da maconha medicinal.

Não compre, plante!

Pés de skunk sendo colhidos

Antecipando-se à legalização, é cada vez mais crescente a quantidade de usuários que decide cultivar a cannabis em casa, mesmo sendo proibido em lei. O cultivo caseiro é uma alternativa social e ecologicamente consciente e um redutor de danos significativo: além de ter acesso a uma maconha de alta qualidade orgânica, pois essencialmente natural, sem nenhum aditivo químico – muito comum na maconha “prensada” hoje adquirida nas “bocas de fumo” -, o cultivador também, ao estabelecer um ciclo permanente de plantio e colheita, rompe definitivamente sua ligação com o tráfico. “Apreensões de drogas só fazem aumentar o preço das mesmas e o lucro dos barões. Quem combate mesmo o tráfico é quem planta sua maconha, assim atinge o tráfico onde ele mais sente: o bolso”, sublinha o professor de Química e organizador da Marcha da Maconha no Rio, Francisco Ribeiro.

Para Raul (nome fictício), professor de História da rede pública estadual cearense, que cultiva há mais de três anos, a plantação caseira de maconha “deveria ser permitida e regulamentada, por muitos motivos – medicinal, potencial industrial, diminuições da violência e do poderio do tráfico -, mas basicamente porque compreende uma questão que perpassa as liberdades individuais, o livre arbítrio, o direito do cidadão escolher o que quer fazer sem prejuízo de terceiros. Direito que inclusive o Estado deveria proteger e assegurar”. Segundo o historiador, cultivando em casa “você planta e você colhe, não financia nenhum traficante e nenhum policial corrupto. Não mata crianças à la Tropa de Elite, e seu fumo será sempre o melhor”. À parte todas essas vantagens, completa Raul, “os preços da maconha no mercado estão altíssimos, variam entre três e dez reais o grama, de um fumo sujo, do qual você desconhece a procedência. Fora os riscos que são muitos, desde o fato de você às vezes não receber o produto – todo maconheiro já levou um ‘bolo’ – às abordagens policiais, etc.”.

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Plantas de cannabis na fase vegetativa

Para o casal de permacultores Paulo e Gustavo (nomes fictícios), que cultivam há cerca de dois anos, “a proibição não faz nenhum sentido, ainda mais depois que você planta”, ressalta Paulo.  No seu sítio em Aquiraz, Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), onde vivem, cultivam diversas espécies de maconha, da índica à sativa, variando as linhagens. “Essa daqui é uma sativa colombiana, que uns amigos nos deram de presente”, diz Paulo, mostrando uma planta robusta, com folhas largas e de tonalidade verde-escuro.

De acordo com o permacultor, o cultivo caseiro é importante porque acaba com as bases do tráfico, além do mais, completa, “nada tem que ser proibido, cada um é responsável por si, desde que não interfira na vida do outro. Penalizar o uso por que?”. O casal diz que hoje tem uma relação ritualística com a erva; procuram não banalizar o seu uso. “Não é uma planta que se deva fumar toda hora, é importante conhecer suas propriedades, pois é uma erva sagrada”, afirma Paulo, que diz ter sido “chamado” a conhecer a face sagrada da planta numa sessão de ayahuasca, o famoso chá do Santo Daime.

Na opinião do antropólogo da UFBA Sergio Vidal, autor do clássico Cannabis Medicinal: Introdução ao Cultivo Indoor, “o cultivo caseiro é o básico dos direitos humanos. Todo ser humano tem direito ao próprio corpo e tem que ter direito também a cultivar aquilo que consome. Sei que muitos usuários recreativos utilizam o meu livro para reduzir os danos do consumo, produzindo a própria maconha que consomem, com isso melhorando a qualidade e diminuindo os riscos do hábito e isso também é muito importante”.

Indoor ou outdoor? Eis a questão!

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Colheita de skunk: folhas sendo cortadas

Para Raul, “o melhor é plantar. Há vantagens e desvantagens das duas formas. Por exemplo, em indoor (dentro de casa, geralmente numa estufa improvisada, com iluminação artificial) o cultivador tem o controle total dos fotoperíodos, podendo vegetar 18h/6h (luz/escuridão) e florir 12h/12h (luz/escuridão) as plantas de acordo com sua necessidade, manter plantas mães, enfim, porém a um custo de energia elétrica, com iluminação e ventilação. Sobre o outdoor (fora de casa, no jardim ou quintal, à luz do sol) tem problemas com a segurança, com insetos, enfim, mas não há nenhuma lâmpada que se compare ao sol, sempre que posso complemento o fotoperíodo com algumas horas de luz natural. As plantas adoram”, diz o experiente cultivador.

As plantas de cannabis têm duas fases distintas: vegetativa, nas primeiras 8 semanas, geralmente, quando devem receber cerca de 18 horas de luz por dia; e floração, em média 8 semanas, quando darão as flores (que é o fumo da erva), e devem receber no máximo 12 horas de luz por dia e em média 12 horas de escuridão. O tempo médio para a colheita é de 16 semanas, podendo variar entre 12 e 20 semanas (três a cinco meses, dependendo da espécie). Uma colheita média rende cerca de 20 a 30 gramas por planta, mas algumas espécies maiores podem render bem mais. É importante frisar também que só as plantas fêmeas dão flores. As índicas geralmente têm período de maturação mais rápido do que as sativas. O skunk, por sua vez, um híbrido de cannabis sativa, índica e ruderalis matura ainda mais depressa (alguns chegam a amadurecer em 10 semanas) e produz resina abundante com alto teor de THC (tetrahidrocanabinol), substância responsável pelos efeitos psicoativos da maconha. Enquanto a cannabis “normal” tem, em média, 5% de THC, o skunk tem níveis médios de  entre 15% e 20%.

O professor de História Raul afirma que não é difícil plantar maconha, assim como não é difícil cuidar de uma planta, mas faz a ressalva de que o cultivo requer alguns conhecimentos mínimos: “Um estudo prévio sobre germinação, solo, iluminação, regas e nutrição dos vegetais são fundamentais para qualquer bom cultivo. A grande dificuldade de alguns iniciantes é ter acesso a sementes de boa qualidade. Mas de fato até sementes em bom estado de fumos prensados podem render lindas flores”.

Para se aprofundar:

Livros: Acionistas do Nada – quem são os traficantes de drogas (Orlando Zaccone);  Zero, Zero, Zero (Roberto Saviano); Cannabis Medicinal: Introdução ao Cultivo Indoor (Sergio Vidal).

Filmes: Quebrando o Tabu (Fernando Grostein Andrade); Cortina de Fumaça (Rodrigo McNiven); Ilegal (Tarso Araújo).

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Reportagem publicada na Revista Berro – Ano 01 – Edição 03 – Dezembro/Janeiro 2015 (aquiversão PDF).


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