Orlando Zaccone: “A alternativa é a legalização”*



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(Fotos: Joana Bê/Revista Berro)

Orlando Zaccone é delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro.  Ficou nacionalmente conhecido porque foi o responsável pela investigação do caso do pedreiro Amarildo, torturado e morto por policiais militares da UPP da Rocinha (ao todo, 25 PMs foram considerados culpados pela morte de Amarildo). Também atua na LEAP Brasil (Law Enforcement Against Prohibition), organização internacional de agentes policiais e do judiciário que defendem a legalização e regulação das drogas. O delegado é conhecido ainda pela sua opinião favorável à desmilitarização da Polícia.

A Berro conversou com ele numa de suas vindas a Fortaleza para participar de debates acadêmicos. Do alto de sua tranquilidade “zen” (é adepto do movimento Hare Krishna!) e de sua afiada crítica à sociedade contemporânea, Zaccone desenvolve leituras sociais interessantíssimas, que fogem às obviedades e às resoluções clichês. Acompanhe!

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Você é um delegado que defende a legalização das drogas, né? (no que o entrevistado balança a cabeça em sinal de positivo) Sobre essa questão, a gente vê que a política de guerra às drogas fracassou claramente. Houve um aumento da violência nas grandes cidades, o extermínio de uma juventude pobre. Quando essas pessoas não são exterminadas, são encarceradas, num modelo de controle social. Então, a quem interessa a manutenção dessa política de guerra às drogas?

Essa atual política de drogas proibicionista é um fracasso no que diz respeito ao seu discurso legitimador, de um mundo sem drogas, da redução do consumo, da proteção à saúde pública, de uma série de argumentos que já não se sustentam porque depois de um século de proibição cada vez mais drogas são feitas no mercado ilícito, cada vez mais pessoas consomem essas drogas. E aí há essa questão: por que manter algo que já fracassou no seu discurso? Evidentemente, porque existe algum sucesso que não é o discursivo, que seria a face oculta da política de drogas: a possibilidade de um georreferenciamento no plano internacional, feito a partir dos Estados Unidos, que autoriza intervenções militares dos americanos fora de seu território.

Os Estados Unidos se declaram país consumidor e declaram guerra a países produtores, que seriam os países dos traficantes. No caso da maconha, o México; da cocaína, Colômbia e Bolívia; o Afeganistão com a questão do ópio. Isso autoriza as intervenções militares americanas para fora de seu território, fomentando nessa guerra uma corrida armamentista e a possibilidade dos norte-americanos terem bases militares na América do Sul (na Colômbia) após o fim da Guerra Fria. Essa estratégia que a guerra às drogas autoriza é um sucesso, por que como os Estados Unidos poderiam manter o mercado de armas tão aquecido com o fim da Guerra Fria? Como poderiam conseguir intervenções militares fora de seu território se não existia mais Guerra Fria? É nesse contexto que essa política vai sendo gerenciada a nível planetário.

No Brasil, ela é incorporada internamente na construção de um inimigo interno, o que já é uma tradição das próprias ações repressoras do Estado àqueles que não se resignam ao estatuto jurídico-político. A história do Brasil sempre foi criada na construção desse inimigo, seja em Canudos, no Araguaia, e agora nas favelas, na figura mítica do traficante de drogas, que é criada num patamar onde o seu extermínio é desejado não só pelo Estado, mas pela sociedade de uma forma geral. Então, a guerra às drogas acaba promovendo um dispositivo que autoriza intervenções militares em áreas pobres. Temos a questão das UPPs no Rio, onde o controle dos guetos e da vida daqueles que moram nas favelas é justificado sob o argumento da proibição das drogas. O encarceramento em massa que é feito é visto como também uma política que pretende retirar de circulação aqueles que o sistema econômico não contempla, nem como produtores, nem como consumidores.

Pegando aí teu gancho, o Brasil tem hoje cerca de 600 mil presos, a quarta maior população carcerária do mundo e contraditoriamente é um dos países com as maiores taxas de violência. Qual tua visão sobre essa política de encarceramento e sobre o próprio sistema prisional brasileiro?

Somos a quarta maior população carcerária do mundo em termos absolutos – perdemos para Estados Unidos, Rússia e China -, mas somos o país que mais aumentou o crescimento da população carcerária nos últimos dez anos. Então, se formos fazer uma projeção do que pode acontecer em dez, vinte anos, provavelmente vamos ser o país que mais encarcera no mundo. Isso é exatamente o dado real de que não existe essa suposta impunidade que tanto se fala no Brasil: “país da impunidade!”.

O sistema nunca vai contemplar, identificar e processar todas as pessoas que praticam delitos, ele é feito pra contemplar pessoas que praticam determinados crimes. Hoje, com cerca de 600 mil presos, você pode contar três condutas que levam à grande massa dos encarcerados na cadeia, que é roubo, tráfico de drogas e homicídio. Um terço da população carcerária brasileira, principalmente a de homens, está presa em dois crimes: roubo e tráfico. Significa que essa construção de quem são os criminosos se dá de forma seletiva. A política de proibição às drogas fomenta esse encarceramento em massa.

Mas, então, qual seria a alternativa?

A alternativa é a legalização! Alguns autores vão observar que o surgimento de uma guerra que pode fomentar o mercado de armas muito mais eficazmente do que a guerra às drogas, que é a chamada guerra ao terror, principalmente após o 11 de setembro, vai fazer com que se coloque também em pauta a legalização das drogas, uma vez que agora já se tem uma nova guerra que permita aquecido o mercado de armas e as intervenções militares, agora através do dispositivo de combate ao terrorismo. No entanto, no Brasil ainda estamos recepcionando essa guerra (às drogas) internamente e a letalidade que ela produz é altíssima. As polícias no Brasil matam seis pessoas ao dia; as polícias do Rio de Janeiro e de São Paulo, em 2011, mataram 42% a mais que todos os países com pena de morte do mundo.

A política proibicionista fomenta esse tipo de ação militar no Brasil, de extermínio de uma categoria, que é a do traficante. Agora, quem é o traficante? A construção que se faz é que é o varejista das drogas; não é quem está num helicóptero transportando 500 quilos de cocaína, não quem está fazendo a lavagem desse dinheiro. A criminalização do proibicionismo recai exatamente em cima daqueles que estão ali nos guetos, nas favelas, os varejistas, que eu chamo no meu livro de “acionistas do nada”. Então, a revisão dessa política é necessária, é urgente!

Mas, então, como seria essa revisão, esse modelo de legalização?

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Hoje temos duas experiências em andamento. A de estatização no Uruguai e a de privatização nos Estados Unidos. Eu, sinceramente, acho que o Estado não deve se intrometer na produção e no fornecimento de drogas, porque isso não é função dele. Seria como se nós estatizássemos a produção e a distribuição de bebidas. Então, no marco do sistema capitalista, não existe outro caminho a não ser regulamentar isso. Mas não tem como a gente imaginar um modelo antes de se estabelecer no Brasil um amplo debate acerca da legalização. Particularmente, sonharia com a possibilidade de escolhermos um modelo que contemple os traficantes varejistas das favelas, que sempre operaram a ponta desse processo e sofreram os efeitos negativos da proibição: que eles sejam contemplados com a possibilidade de crescerem nesse negócio. Acho que poderíamos formar uma certa reserva de mercado para que essas pessoas possam produzir e comercializar essas substâncias como uma certa forma de contemplá-los no mercado econômico!

Alguns intelectuais, como o Debord (Sociedade do Espetáculo) e o Foucault (As redes de poder), diziam que a máfia não está mais separada do Estado; formam um emaranhado de interesses comuns. Como você vê isso?

A função do Estado hoje passou a ser contemplar somente os interesses da ordem econômica. O Estado reforça a lavagem do dinheiro das drogas, uma vez que esses capitais acabam desaguando no sistema financeiro. Então, quando a gente fala da gestão que o Estado faz do sistema financeiro, evidentemente não estamos falando só dos fluxos de capitais do mercado lícito, mas dentro do sistema financeiro também têm os fluxos de capitais do mercado ilícito. É nesse sentido que podemos dizer que os estados e as máfias estão de mãos dadas.

Você sempre fala que as polícias brasileiras ainda têm muitos resquícios da ditadura. Está muito claro que na formação policial eles são treinados para combater o inimigo interno. Então, a mesma pergunta em relação a guerra às drogas serve para aqui também: a quem interessa esse modelo militarizado de policiamento?

O grande interesse está em ter essa guerra como um dispositivo de controle das classes perigosas (fazendo aspas com os dedos ao usar a expressão), daqueles que podem não se resignarem com esse estatuto jurídico-político, com essa gestão do Estado, e que em algum momento podem se rebelar contra isso tudo. Aqueles que não estão contemplados pelos benefícios maiores desse negócio. É importante para o sistema fazer o controle dessas classes. Então, acho que a gestão de um modelo de segurança pública militarizado necessita de uma guerra, né. Talvez o Brasil vá ser o último país a abrir mão da guerra às drogas porque sem guerra não há inimigos, e sem inimigos não há a construção de um modelo repressivo – e esse inimigo sempre foi alvo construído e útil na nossa história, porque é a partir da definição desse inimigo, seja de Palmares, de Canudos, do Araguaia, os traficantes da favela, que se  autoriza o o Estado brasileiro a contemplar a gestão dos negócios e de todos os seus ciclos, seja do café, do ouro, da cana e, agora, dos grandes eventos, sempre reprimindo aqueles que podem atrapalhar porque não estão se enquadrando no pacto conciliatório.

Você geralmente diz que as esquerdas precisam ser mais coerentes porque se de um lado acham um absurdo e se levantam contra a criminalização da pobreza e dos movimentos sociais, do outro defendem com rigor a criminalização da homofobia, por exemplo, assumindo o mesmo discurso do opressor, o oprimido querendo virar opressor. Então, a partir daí, a gente queria que você falasse sobre seu conceito de criminalização.

Muito se fala sobre criminalização da pobreza, criminalização dos movimentos sociais, mas a maioria das pessoas não compreende corretamente o que é criminalização. O crime é uma construção que se faz num ambiente social, e quando eu falo que 600 mil presos no Brasil estão presos em não mais que meia dúzia de crimes, isso mostra que o processo é de construção seletiva do crime e do criminoso. Não tem ninguém preso no Brasil por lavagem de dinheiro, por sonegação fiscal, por aborto. E eu não estou dizendo que deveriam estar presos, mas a lei ainda prevê essas condutas como crimes. O que nós temos que ver é que a construção da delinquência se dá através de uma decisão política, que constrói quem são os criminosos e quais são os crimes que vão ser perseguidos. Portanto, criminalização é um processo político e seletivo, que vai sempre atuar construindo o crime e o criminoso nos espaços mais vulneráveis, nos locais de pessoas mais pobres.

Em algum momento, os movimentos sociais no Brasil, aqueles com tradição de esquerda e próximos das políticas de direitos humanos, passaram a ter fé nos processos políticos de criminalização como algo que fosse solucionar as suas questões. No caso das mulheres, a violência de gênero era uma questão importante, então lei Maria da Penha, criminalização de homens agressores. Quem é que vai preso na lei Maria da Penha? É o homem pobre que agride a mulher no espaço público, geralmente embriagado, geralmente desempregado. Racismo, a mesma coisa. Quem é criminalizado por racismo são aqueles que estão na portaria de um clube, na portaria de um prédio, como segurança de um shopping. Se discute hoje no movimento LGBT como vamos resolver a questão da discriminação de orientação sexual? Criminalização da homofobia! Enfim, passam a contemplar que esses processos de criminalização vão garantir direitos. Mas esses processos sofrem a mesma realidade de qualquer processo de criminalização. Quem vai ser criminalizado é sempre o sujeito mais vulnerável socialmente, que já é oprimido, e nunca o opressor. 

Leia a entrevista na íntegra com Orlando Zaccone aqui!

*Entrevista publicada na Revista Berro – Ano 01 – Edição 03 – Dezembro/Janeiro 2015 (aquiversão PDF).


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