Entrevista Zaccone: “A alternativa é a legalização” (parte I)



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Nesta primeira parte, Zaccone fala sobre o discurso fracassado da política proibicionista de drogas – mas seu sucesso do ponto de vista estratégico do controle social das classes pobres; o encarceramento em massa e seletivo que ocorre no Brasil hoje. Além disso, ele defende a questão da legalização!

Artur Pires: Assim, de primeira Zaccone, tu é um delegado que defende a legalização das drogas, né? (no que Zaccone balança a cabeça em sinal de positivo, “sim!”, disse ele em pensamento; continuamos) Sobre essa questão, a gente vê que essa política de guerra às drogas disseminada pelos Estados Unidos e adotada por vários países, inclusive o Brasil, em relação ao seu discurso de diminuição da violência e do uso de droga, fracassou, né, claramente. Houve um aumento da violência nas grandes cidades, basicamente o extermínio de uma juventude pobre; e quando essas pessoas não morrem, quando não são exterminadas na guerra entre elas – ou pela polícia, são encarceradas, numa clara política de controle social, né? E há alternativas viáveis para a legalização das drogas, com foco na saúde, na prevenção, na informação, garantia de qualidade quanto ao uso – e principalmente na liberdade individual do ser humano de usar que substância ele quiser. Então, a pergunta é: a quem interessa a manutenção dessa política de guerra às drogas?

Zaccone: Então, essa atual política de drogas proibicionista é um fracasso no que diz respeito ao seu discurso legitimador, que é o discurso de um mundo sem drogas, da redução do consumo, da proteção à saúde pública, de uma série de argumentos que já não se sustentam porque depois de um século de proibição cada vez mais drogas são feitas no mercado ilícito, cada vez mais pessoas consomem essas drogas. E aí há essa questão importante: por que manter algo que já fracassou no seu discurso?

“depois de um século de proibição, cada vez mais drogas são feitas no mercado ilícito, cada vez mais pessoas consomem essas drogas. E aí há essa questão importante: por que manter algo que já fracassou no seu discurso?”

Evidentemente, porque existe algum sucesso que não é o discursivo, que seria a face oculta da política de drogas – a possibilidade de um georrefereciamento que é feito a partir dos Estados Unidos no plano internacional, que autoriza intervenções militares dos Estados Unidos fora de seu território, sempre na construção da teoria da diferenciação, que é a teoria que faz a distinção entre o traficante e o usuário, uma teoria que foi incorporada no nosso ordenamento jurídico, a ponto de hoje a atual lei de drogas definir o traficante como um criminoso equiparado a hediondo e ao usuário não caber sequer prisão; então, essa distinção começa no plano internacional. Os Estados Unidos se declaram país consumidor e declaram guerra a países produtores, que seriam os países dos traficantes. No caso da maconha, o México; da cocaína, Colômbia, Bolívia; o Afeganistão com a questão do ópio. Isso autoriza as intervenções militares americanas para fora de seu território, fomentando nessa guerra uma corrida armamentista e a possibilidade dos Estados Unidos terem bases militares na América do Sul (na Colômbia) após do fim da Guerra Fria. Essa estratégia que a guerra às drogas autoriza é um sucesso. Por que como os Estados Unidos poderiam manter o mercado de armas tão aquecido com o fim da Guerra Fria? Como os Estados Unidos poderiam conseguir intervenções militares fora de seu território se não existia mais Guerra Fria? Então, é nesse contexto que essa política vai sendo gerenciada a nível planetário.

No Brasil, ela é incorporada internamente na construção de um inimigo interno, o que já é uma tradição da sociabilidade brasileira e das próprias ações repressoras do estado àqueles que se opõem ao regime político-jurídico, né, que não se resignam ao estatuto jurídico-político. Então, a história do Brasil sempre foi criada na construção desse inimigo, sejam eles em Canudos, tivessem eles no Araguaia, e agora nas favelas, nos guetos, nessa figura mítica do traficante de drogas, que evidentemente é criada num patamar onde o seu extermínio é desejado não só pelo Estado, mas pela sociedade de uma forma geral, que clama constantemente nas mídias, nos programas de televisão.

Então, a guerra às drogas acaba promovendo um dispositivo que autoriza intervenções militares em áreas pobres. Temos a questão das UPPs no Rio, o controle dos guetos e da vida daqueles que moram nas favelas ser justificado sob o argumento da proibição das drogas. Então, é uma política bem-sucedida. O encarceramento em massa que é feito, né, é visto como também uma política que pretende retirar de circulação aqueles que o sistema econômico não contempla, nem como produtores, nem como consumidores.

Artur Pires: Pegando aí teu gancho do encarceramento, né, o Brasil tem hoje cerca de 600 mil presos, a quarta maior população carcerária do mundo e contraditoriamente é um dos países com as maiores taxas de violência, ou seja, essa questão de encarcerar em massa não vem dando resultado. Então, a gente queria saber qual tua visão dessa política de encarceramento e do próprio sistema prisional brasileiro. E quais seriam as alternativas a esse modelo?

Zaccone: O Brasil acompanha o crescimento mundial do encarceramento, mas o Brasil aparece como a primeira nação do mundo na velocidade do aumento do encarceramento. Somos a quarta maior população carcerária do mundo em termos absolutos – perdemos para Estados Unidos, Rússia e China. Mas, em comparação, somos a sexta em preso por habitante e, em termos de pico de crescimento, somos o país que mais aumentou o crescimento da população carcerária nos últimos dez anos. Então, se formos fazer uma projeção do que pode acontecer em dez, vinte anos, provavelmente vamos superar essa colocação de quarto e vamos estar galgando para em algum momento sermos o país que mais encarcera no mundo. Isso é exatamente o dado real de que não existe essa suposta impunidade que tanto se fala no Brasil: “país de impunidade!”

Não, o sistema evidentemente nunca vai contemplar, identificar e processar todas as pessoas que praticam delitos. Aliás, ele nem é feito para isso, é feito pra contemplar pessoas que praticam determinados crimes. Hoje, com 600 mil presos, você pode contar três condutas que levam à grande massa dos encarcerados na cadeia, que é roubo, tráfico de drogas e homicídio…. Parece que um terço da população carcerária brasileira, principalmente a de homens, está presa em dois crimes: roubo e tráfico. Então significa que essa construção de quem são os criminosos se dá de uma forma seletiva. Então, a política de proibição às drogas fomenta esse encarceramento em massa, então esses aspectos…

“a política de proibição às drogas fomenta esse encarceramento em massa”

Artur Pires: Qual seria a alternativa? (interrompendo não-gentilmente)

Zaccone: A legalização!

Artur Pires: Em que parâmetros ela se ampararia? Como seria esse modelo de legalização? (diz, gesticulando muitos com as mãos)

Zaccone: Hoje, o debate acerca da legalização das drogas nos Estados Unidos entra no marco de que eles querem atingir o patamar de mais de 2 milhões de presos. Realmente, esse processo de criminalização e de encarceramento que serviu nos Estados Unidos em algum momento para criar, né, economia de serviços, principalmente porque você tem lá a privatização do sistema prisional, que se transforma numa grande hospedaria, num grande negócio, que é uma coisa que se quer fazer agora no Brasil também. Então, existe uma função econômica desse grande encarceramento. Só que isso acaba gerando outros efeitos negativos, estigmatizantes e de uma certa forma, mesmo com a privatização, 1% da população adulta americana tem a perspectiva de ser encarcerada. Isso tudo assusta os Estados Unidos e eles passam a fazer hoje esse movimento regressivo.

E a legalização das drogas surge como um debate nos Estados Unidos e no mundo, inclusive no Brasil, por conta disso. Lógico que alguns autores vão observar que o surgimento de uma guerra que pode fomentar o mercado de armas de uma forma muito mais eficaz que a guerra às drogas, que é a chamada guerra ao terror, principalmente após o 11 de setembro, isso tudo vai fazer com que se coloque também em pauta a legalização das drogas, no sentido de manter a lucratividade nesse mercado sob um controle maior do Estado, uma vez que agora já se tem uma nova guerra que permita aquecido o mercado de armas e que as intervenções militares se deem sem ser através do dispositivo da droga, mas com o dispositivo do terror.

As polícias no Brasil matam cinco pessoas ao dia; as polícias do Rio de Janeiro e de São Paulo, em 2011, mataram 42% a mais que todos os países com pena de morte do mundo.

Mas no Brasil ainda estamos recepcionando essa guerra internamente, né, e a letalidade que essa guerra produz aqui é altíssima. Temos uma política de derramamento de sangue a conta gotas. As polícias no Brasil matam cinco pessoas ao dia; as polícias do Rio de Janeiro e de São Paulo, em 2011, mataram 42% a mais que todos os países com pena de morte do mundo. Foram 642 execuções em 2011, e só as polícias do Rio e São Paulo mataram mais de 900 pessoas.

O que significa que essa política proibicionista fomenta esse tipo de ação militar no Brasil, de extermínio de uma categoria, que é a do traficante. Agora, quem é o traficante? A construção que se faz é que é o varejista das drogas; não é quem está num helicóptero transportando 500 quilos de cocaína, não é quem tá fazendo a lavagem desse dinheiro. Porque a quarta maior economia do mundo, de acordo com o FMI (Fundo Monetário Internacional), é a economia das drogas ilícitas. E esse dinheiro não tá nas favelas, nos guetos, esse dinheiro tá no sistema econômico.

Quem é o traficante? A construção que se faz é que é o varejista das drogas; não é quem está num helicóptero transportando 500 quilos de cocaína, não é quem tá fazendo a lavagem desse dinheiro.

Recentemente, o Senado dos Estados Unidos fez uma investigação de lavagem de dinheiro do banco HSBC em relação ao tráfico vindo do México. Foram lavados trilhões de dólares e o resultado de tudo – onde se constatou a operação de lavagem de dinheiro do banco HSBC – foi uma pequena multa pro banco de alguns milhões de dólares e nenhum executivo foi criminalizado porque a criminalização do proibicionismo recai exatamente em cima daquelas categorias que tão ali nos guetos, nas favelas, que são os varejistas, que eu chamo no meu livro de “acionistas do nada”. Então, a revisão dessa política é necessária, é urgente!

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