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{"id":985,"date":"2014-08-09T14:15:32","date_gmt":"2014-08-09T17:15:32","guid":{"rendered":"http:\/\/revistaberro.com\/?p=985"},"modified":"2015-06-09T17:12:49","modified_gmt":"2015-06-09T20:12:49","slug":"um-assare-de-lembrancas","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/revistaberro.com\/colunas\/impressoesmundanas\/um-assare-de-lembrancas\/","title":{"rendered":"Um Assar\u00e9 de lembran\u00e7as"},"content":{"rendered":"

(Ilustra\u00e7\u00f5es: Kl\u00e9visson Viana, na HQ Lampi\u00e3o… Era o cavalo do tempo atr\u00e1s da besta da vida; 1998, SP, Hedra)<\/em><\/p>\n

Foi no Assar\u00e9, Cariri cearense, que vivi os primeiros anos da minha inf\u00e2ncia. Nasci em Barbalha (por vontade de minha m\u00e3e, que \u00e9 de l\u00e1), tamb\u00e9m no Cariri (e viajava para l\u00e1 e para o Crato com frequ\u00eancia para visitar a parentada), mas \u00e9 do Assar\u00e9 que carrego as mais remotas reminisc\u00eancias pueris, l\u00e1 pelos derradeiros anos da d\u00e9cada de 80. Mor\u00e1vamos eu, meus pais e uma das minhas irm\u00e3s numa casa simples e bonita, de mureta branca e port\u00e3ozinho de ferro – \u00e0 vista de todos os que passavam em frente ao local -, jardim multicor, tomado de flores e plantas, que davam uma suavizada de brisa leve e fagueira ao calor de suar em bicas que fazia por aquelas bandas do sert\u00e3o caririense.<\/p>\n

As samambaias suspensas em jarros se espregui\u00e7avam na varanda, os cr\u00f3tons margeavam os cantos do muro com sua mistura de cores, os beija-flores toda manh\u00e3 vinham bicar as papoulas e, pintando parte da paisagem do jardim de encarnado, um bouganville vermelho recebia cotidianamente a visita de sabi\u00e1s e bem-te-vis em seus galhos.<\/p>\n

No quintal, mais p\u00e9s de plantas: goiaba, ata, mostarda, pimenta malagueta, piment\u00e3o, tomate, capim santo, erva cidreira e erva doce esverdeavam aquela parte de tr\u00e1s da morada. Os calangos eram vistos aos magotes. Ficavam tamb\u00e9m por ali as galinhas de capoeira que minha m\u00e3e criava. Nesta fase da inf\u00e2ncia, meus animais de estima\u00e7\u00e3o eram os pintinhos. Quando brincava com eles, minha m\u00e3e ficava de olho em mim para que n\u00e3o os esmagasse em arrochos desmedidos. Algumas vezes os vi nascer, naquela luta \u00e1rdua pela liberdade:<\/p>\n

“O pinto dentro do ovo<\/em>
\n aspirando um mundo novo<\/em>
\n n\u00e3o deixa de biliscar,<\/em>
\n bate o bico, bate o bico,<\/em>
\n bate o bico, tico tico<\/em>
\n pra poder se libertar”<\/em>
\n(Patativa do Assar\u00e9 \u2013 Li\u00e7\u00e3o do Pinto<\/em>)<\/p>\n

De vez em quando, uma galinha mais gorda era escolhida e ia para a panela. N\u00e3o gostava que lhes torcessem o pesco\u00e7o para mat\u00e1-las, mas as adorava ao molho ou \u00e0 cabidela. Huummmm! Certa vez, mam\u00e3e inventou de criar tamb\u00e9m no quintal um veado, o Bambi, que pouco tempo depois foi morto por uma cobra.<\/p>\n

– Tenho impress\u00e3o de que foi cascavel ou coral \u2013 diz ela, ainda hoje.<\/p>\n

S\u00f3 sei que, por conta desse ataque mortal, meus pais eram cheios de cuidados quando eu e Alana, minha irm\u00e3, \u00edamos ao quintal:<\/p>\n

– Cuidado, voc\u00eas, que a\u00ed tem cobra. Calcem pelo menos uma chinela \u2013 dizia mam\u00e3e, com voz firme.<\/p>\n

No tempo de chuva, as jias, os cururus e as pererecas sa\u00edam do brejo e se entocavam nas matas do jardim e do quintal l\u00e1 de casa. As r\u00e3zinhas corriam pros banheiros.\u00a0De noite, era um coaxado medonho, mas a gente se acostumava. As cigarras, com seu grito agudo, tamb\u00e9m surgiam aos montes. Mas eu me vidrava mesmo era nos vaga-lumes e seu piscar de luzinhas m\u00e1gico.<\/p>\n

– Chega, Artur, vem ver um vaga-lume!<\/p>\n

E eu sa\u00eda de onde estivesse, em disparada, para apreci\u00e1-lo. E ficava ali, embasbacado, observando-o, at\u00e9 a hora em que ele cansava de se exibir para mim e ia embora.<\/p>\n

Na parte interna da morada, m\u00f3veis amadeirados, escuros e com acabamentos curvil\u00edneos remetiam a um estilo considerado d\u00e9mod\u00e9<\/em> nos dias de hoje. Foi num piso de taco de madeira onde dei meus primeiros passos, ainda cambaleantes, e depois, j\u00e1 craque na arte de andar, brinquei com meu cavalinho feito de cabo de vassoura.<\/p>\n

\"Vilas_Assar\u00e9III\"<\/a><\/span>Pr\u00f3ximo \u00e0 casa, na esquina, ficava a bodega do seu Canuto, onde meus pais compravam artigos dom\u00e9sticos e trocavam uma prosa costumeira. Havia tamb\u00e9m nas proximidades a bodega do seu Pedro: cacha\u00e7a, querosene e sab\u00e3o n\u00e3o faltavam nunca. A mulher de seu Pedro, dona Lurdes, vendia o melhor dindim da cidade. Foi ela quem provocou em mim o gosto por picol\u00e9s.<\/p>\n

A Escola Patativa do Assar\u00e9, onde aprendi o b\u00ea-a-b\u00e1<\/em>, ficava nas redondezas da pra\u00e7a da matriz, a principal da cidade. A nossa casa ficava a tr\u00eas quadras de l\u00e1. \u00c0s segundas-feiras, fervia naquele quarteir\u00e3o a feira de alimentos diversos (desde hortali\u00e7as a quebra-queixo), fumo de rolo, roupa e o com\u00e9rcio de artigos sertanejos (chap\u00e9us, gib\u00f5es, chicotes, peitorais, alpercatas: tudo em couro). A pra\u00e7a ficava abarrotada. Os poetas do sert\u00e3o, com suas rabecas e seus cord\u00e9is, vinham tamb\u00e9m de todas as partes. Esbarr\u00f5es eram frequentes. Vinha gente da serra de Santana, de Amaro, de Genezar\u00e9 e de Aratama. At\u00e9 de Saboeiro, Antonina do Norte e Tarrafas.<\/p>\n

Meus pais n\u00e3o me deixavam ir s\u00f3 \u00e0 feira. Claro! Era um meninote de apenas quatro, cinco anos no m\u00e1ximo. Um pingo de gente, de pele preta, grande sinal de nascen\u00e7a nas costas, cabelo de \u00edndio, parecendo cortado em cuia, boca e olhos mi\u00fados, curioso e medroso. Ia para l\u00e1 com mam\u00e3e. Quando ela ia, me levava porque percebia meu encanto com aquela miscel\u00e2nea toda da feira do Assar\u00e9. Tipos diversos. Ir \u00e0quela feira, que ficava a poucos quarteir\u00f5es de casa, era como dar a volta ao mundo. Tudo era novo \u2013 e tudo era m\u00e1gico!<\/p>\n

– Eita que t\u00e1 crescendo r\u00e1pido o minino, dona Ana! \u2013 dizia Galego, verdureiro onde mam\u00e3e sempre comprava as frutas e verduras l\u00e1 de casa, bagun\u00e7ando com seus dedos grossos e peludos os meus cabelos na altura da testa.<\/p>\n

– \u00c9…. Meu neguim! \u2013 dizia ela, toda orgulhosa com a cria, novamente bagun\u00e7ando meus cabelos \u00e0 altura da testa.<\/p>\n

Ap\u00f3s pegar as laranjas, beterrabas, bananas e hortali\u00e7as que Galego separava toda segunda-feira para ela, pegava na minha m\u00e3o e segu\u00edamos o passeio. Entre os tipos da feira, eu observava com mais aten\u00e7\u00e3o os sertanejos, aqueles cabras da pele engelhada pelo sol castigante do semi\u00e1rido, das m\u00e3os grossas e calejadas devido ao manejo do arado e da enxada no ro\u00e7ado. Trabalhadores! Enxugavam o suor da fronte com uma r\u00e1pida passada de m\u00e3o. A caba\u00e7a d\u00b4\u00e1gua amarrada \u00e0 cintura, a camisa de bot\u00e3o aberta na altura do peito e o ter\u00e7o envolto no pesco\u00e7o:<\/p>\n

– Me v\u00ea dois rolo pra m\u00f3di d\u00b4eu levar pro Saboeiro!<\/p>\n

Fumo de rolo \u2013 que era enrolado na palha do milho – e rapadura eram artigos imprescind\u00edveis \u00e0 feira. Quase sempre passeando entre os feirantes e clientes, l\u00e1 estava ele, com seu jeito gracioso, simples, prosador, po\u00e9tico: Patativa do Assar\u00e9. Toda segunda-feira, descia a serra de Santana, distrito de Assar\u00e9, e se misturava \u00e0 multid\u00e3o. Quando j\u00e1 estava na cidade, apenas atravessava a rua, pois sua casa em Assar\u00e9 fica em frente \u00e0 pra\u00e7a da matriz.<\/p>\n

\"Casas<\/a><\/span>Patativa era g\u00eanio… E gente! Das melhores! Sua simplicidade era admir\u00e1vel, assim como sua sabedoria. Devido \u00e0 amizade do poeta com meu pai e com minha m\u00e3e, que era professora de Isabel, neta dele, fomos diversas vezes \u00e0 sua casa em Assar\u00e9 e uma vez \u00e0 sua morada na serra de Santana. A casa era simples: taipa e terra batida. Mas a vida deles ali na serra era digna. N\u00e3o havia barriga roncando de fome; se chovesse, a ro\u00e7a dava conta do sustento. Por isto mesmo, a chuva era a coisa mais aguardada ao longo do ano. Na seca braba<\/em>, o sertanejo se virava como podia: tanajuras, tejos, pebas e pre\u00e1s iam pro forno. Naquele dia, fomos convidados para um almo\u00e7o farto: mugunz\u00e1, galinha caipira, milho assado, banana ma\u00e7\u00e3, melancia, pamonha, jerimum, canjica, cuscuz. Tudo criado, plantado e colhido ali mesmo. Antes do almo\u00e7o, quase como um ato ritual\u00edstico, Patativa e os seus entornaram uma ter\u00e7a de cacha\u00e7a, naqueles copos americanos. Glut<\/em>! De uma vez s\u00f3, sem fazer careta!<\/p>\n

– \u00c9 pra m\u00f3di abr\u00ed o apititi \u2013 disse um dos parentes do poeta que estavam em volta da mesa.<\/p>\n

Da casa de Patativa ao lado da pra\u00e7a da matriz, em Assar\u00e9, onde fui mais vezes, carrego flashes<\/em> de mem\u00f3ria mais vivos, mais detalhados. A cadeira de balan\u00e7o na sala, onde ele gostava de se balan\u00e7ar enquanto enrolava seu fumo, j\u00e1 com as m\u00e3os tr\u00eamulas pelo peso da idade, mas com a habilidade de quem sabia o que estava fazendo; o grande pote de barro sobre o jirau, onde ficava a \u00e1gua que dona Belinha, mulher de Patativa, me servia num caneco de flandre; a moringa; a grande panela de barro; o bule onde era servido o caf\u00e9 (meus pais adoravam o caf\u00e9 de dona Belinha!); as fotografias familiares antigas, mais parecendo pinturas, decorando as paredes da casa; e, logicamente, toda a prosa, toda a poesia, toda a oralidade extasiante do maior poeta popular de todos os tempos. Eu, minino v\u00e9i, nem compreendia a grandeza de Patativa \u00e0 \u00e9poca, mas adorava ouvir as rimas e melodias daquela cantoria, sob a voz nasalada, tel\u00farica e verdadeira do poeta.<\/p>\n

Em 1990, meu pai, que era banc\u00e1rio, foi transferido para Reden\u00e7\u00e3o, no Maci\u00e7o de Baturit\u00e9. Fomos embora do Assar\u00e9, mas aqueles anos vividos ali reverberam em mim ainda hoje. Voltamos l\u00e1 algumas vezes, visitamos Patativa. Ele veio nos visitar certa vez, em meados dos 90, quando j\u00e1 mor\u00e1vamos em Fortaleza. As lembran\u00e7as do Assar\u00e9 n\u00e3o est\u00e3o guardadas na mem\u00f3ria \u00e0 toa. Sempre que amea\u00e7o esquec\u00ea-las, elas v\u00eam \u00e0 tona para me reavivar e mostrar a beleza da simplicidade e da sabedoria sertaneja: plantar, colher, comer… viver! Com prosa – e poesia!<\/p>\n

Vida eterna a Patativa do Assar\u00e9! Porque tem gente que n\u00e3o morre nunca!<\/strong><\/em><\/p>\n

\"Patativa\"<\/a>
(Xilogravura\/ilustra\u00e7\u00e3o: Arievaldo Viana)<\/figcaption><\/figure>\n

Mas por\u00e9m vou lhe cont\u00e1,<\/em>
\n as coisa aqui como \u00e9,<\/em>
\n sou fio do Cear\u00e1,<\/em>
\n nasc\u00ed aqui no Assar\u00e9,<\/em>
\n …<\/em>
\n Nesta b\u00f4a terra nossa<\/em>
\n quando \u00e9 tempo de invernada<\/em>
\n bota girmum chega a ro\u00e7a<\/em>
\n fica toda encaro\u00e7ada<\/em>
\n …<\/em>
\n N\u00e3o sendo tempo de fome<\/em>
\n sinh\u00f4 dout\u00f4 pode cr\u00ea,<\/em>
\n nesta terra o cabra come<\/em>
\n at\u00e9 a barriga inch\u00ea,<\/em>
\n nem carne, nem macarr\u00e3o,<\/em>
\n mas por\u00e9m mio e feij\u00e3o<\/em>
\n e farinha \u00e9 a vontade,<\/em>
\n ningu\u00e9m come da ra\u00e7\u00e3o<\/em>
\n como se faz na pens\u00e3o<\/em>
\n l\u00e1 das rua da cidade<\/em>
\n …<\/em>
\n T\u00f4 lhe contando a certeza<\/em>
\n das coisa do meu sert\u00e3o,<\/em>
\n aqui ningu\u00e9m tem riqueza<\/em>
\n mas por\u00e9m tem munta a\u00e7\u00e3o<\/em>”
\n(Patativa do Assar\u00e9 \u2013 Ilustrismo Senh\u00f4 Dout\u00f4<\/em>)<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

(Ilustra\u00e7\u00f5es: Kl\u00e9visson Viana, na HQ Lampi\u00e3o… Era o cavalo do tempo atr\u00e1s da besta da vida; 1998, SP, Hedra) Foi no Assar\u00e9, Cariri cearense, que vivi os primeiros anos da minha inf\u00e2ncia. 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