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{"id":6605,"date":"2021-01-11T09:10:59","date_gmt":"2021-01-11T12:10:59","guid":{"rendered":"http:\/\/revistaberro.com\/?p=6605"},"modified":"2020-12-21T18:19:54","modified_gmt":"2020-12-21T21:19:54","slug":"maezinha-uma-categoria-local-que-poe-em-suspensao-o-ethos-violento","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/revistaberro.com\/series\/antropologiadocrime\/maezinha-uma-categoria-local-que-poe-em-suspensao-o-ethos-violento\/","title":{"rendered":"\u201cM\u00e3ezinha\u201d: uma categoria local que p\u00f5e em suspens\u00e3o o ethos violento"},"content":{"rendered":"
\"\"
(Ilustra\u00e7\u00e3o: Juliana Lima)<\/figcaption><\/figure>\n

Dentro do espectro de rela\u00e7\u00f5es morais das atividades delitivas no Grande Tancredo Neves (GTN), talvez nenhuma outra categoria local tenha mais capital simb\u00f3lico positivado do que a \u201cm\u00e3ezinha\u201d. Conversei com muitas m\u00e3es cujos filhos estavam diretamente envolvidos com a pr\u00e1tica de crimes, como assaltos ou tr\u00e1ficos de drogas e armas.\u00a0<\/span><\/p>\n

S\u00e2mia, 48 anos, tem que conviver com a imin\u00eancia de sua casa ser invadida por criminosos rivais ao grupo de seu filho, Bernardo, que tamb\u00e9m \u00e9 viciado em crack, e por isso rouba objetos dentro de casa e nas ruas. Ela me relata de uma vez em que varejistas do com\u00e9rcio de drogas foram \u00e0 sua resid\u00eancia fazer a cobran\u00e7a, dizendo que iriam matar o garoto caso ele n\u00e3o pagasse as d\u00edvidas com a \u201cbocada\u201d. S\u00e2mia teve que desfalcar as despesas dom\u00e9sticas para salvar a vida do filho. Isso ocorreu muitas vezes, de diferentes formas. Quando, por exemplo, deixou empenhado o cart\u00e3o do programa federal \u201cBolsa Fam\u00edlia\u201d com traficantes para que estes sacassem o dinheiro referente \u00e0s d\u00edvidas de Bernardo. S\u00e2mia me relata outros epis\u00f3dios em que n\u00e3o mataram Bernardo pelos pedidos clementes de indulg\u00eancia que fazia diante dos \u201cvacilos\u201d do filho.<\/span><\/p>\n

A \u201cm\u00e3ezinha\u201d surge, muitas vezes, como personagem que consegue mediar rela\u00e7\u00f5es criminais, pois sua for\u00e7a simb\u00f3lica est\u00e1 justamente no fato de que os outros \u201cbandidos\u201d tamb\u00e9m t\u00eam suas \u201cm\u00e3ezinhas\u201d e, portanto, se sensibilizam ao, psicologicamente, identificarem na situa\u00e7\u00e3o algum aspecto de paralelismo emocional com suas hist\u00f3rias.<\/p><\/blockquote>\n

Certa vez, quando Bernardo roubou uma televis\u00e3o para trocar por \u201cpedra\u201d, a pr\u00f3pria Sandra o denunciou \u00e0 pol\u00edcia. Em vez de prend\u00ea-lo de imediato, os policiais sequestraram Bernardo e amea\u00e7aram-no matar caso ele n\u00e3o denunciasse \u201cbocas\u201d onde os policiais pudessem negociar mercadorias pol\u00edticas.\u00a0<\/span><\/p>\n

S\u00e2mia relembra o dia: \u201c\u00d3, teve um fragrante, n\u00e9. S\u00f3 que veio um policial diferente, porque ele j\u00e1 sabia de tudo, onde \u00e9 que tava a televis\u00e3o, tudo. Mas saiu de bocada em bocada com ele, batendo, tomando droga, levando dinheiro. Isso aqui no Tranquedo, no Lagamar, no Castel\u00e3o… A\u00ed eles sa\u00edram derrubando bocada, tomando dinheiro, tomando a droga dos menino. A\u00ed deixaram ele acul\u00e1 e vieram me avisar. Tavam com ele, a cada passo que ele andava era uma chibatada que ele ca\u00eda. Eu disse \u2018Eu chamei pra buscar a televis\u00e3o, e pra levar ele preso, n\u00e9\u2019. A\u00ed levaram pro 13\u00ba [Distrito Policial]. A\u00ed eu pedi: \u2018pelo amor de Deus, deixa esse menino solto n\u00e3o, deixa ele preso que eu n\u00e3o aguento mais\u2019\u201d.<\/span><\/p>\n

O desespero de S\u00e2mia \u00e9 recorrente na hist\u00f3ria de vida de muitas \u201cm\u00e3ezinhas\u201d que t\u00eam que aprender a conviver com epis\u00f3dios violentos dentro de suas casas protagonizados por filhos envolvidos com atividades delitivas: \u201cO meu filho mesmo eu n\u00e3o botei pra fora porque, enfim, eu tenho cora\u00e7\u00e3o. Porque \u00e9 filho, mas… depois do que ele j\u00e1 fez eu j\u00e1 tinha que ter botado pra fora\u201d, finaliza.<\/span><\/p>\n

Noutro dia do trabalho de campo, eu conversava com Papagaio em um dos territ\u00f3rios do GTN quando sua m\u00e3e surgiu na rua vindo da feira. Ele me contava sobre as agruras da pris\u00e3o, quando interrompeu o di\u00e1logo para cumprimentar sua genitora: \u201cOi m\u00e3ezinha, ben\u00e7a! T\u00f4 sossegado, t\u00f4 s\u00f3 conversando com o rapaz aqui\u201d, disse. Virando para mim, completou: \u201cEssa foi a que sofreu mais eu tando preso. Eu quero isso pra minha, m\u00e3e? Quero mais n\u00e3o, n\u00e9? Ela me perdoa de tudo o que eu fiz, porque no fundo ela sabe que eu tenho bom cora\u00e7\u00e3o\u201d. Este momento do nosso di\u00e1logo foi excepcional porque envolveu uma amorosidade de Papagaio que n\u00e3o parecia em nada com todo o resto da sua narrativa, recheado de eventos violentos, assassinatos, traumas, etc. <\/span><\/p>\n

A \u201cm\u00e3ezinha\u201d, para muitos \u201ccriminosos\u201d, envolve uma dimens\u00e3o sem\u00e2ntica de afeto e respeito inigual\u00e1veis em rela\u00e7\u00e3o a qualquer outro personagem do seu conv\u00edvio social. Quando querem se lamentar de desilus\u00f5es amorosas no campo das rela\u00e7\u00f5es com mulheres, enfatizam, quase como um ditame popular: \u201cAmor? S\u00f3 de m\u00e3e!\u201d.<\/span><\/p><\/blockquote>\n

Samurai, traficante varejista de drogas, me contou que sua m\u00e3e \u00e9 \u201cobreira\u201d de uma das muitas igrejas neopentecostais do bairro e, como sabe da ocupa\u00e7\u00e3o do filho, \u201cela ora muito por mim\u201d, diz. Inclusive quando intui \u201crevela\u00e7\u00f5es de deus\u201d, avisa ao filho previamente sobre epis\u00f3dios que podem colocar em risco sua vida. H\u00e1 um evento em que Samurai acredita ter sido salvo por um press\u00e1gio de sua m\u00e3e. N\u00e3o consigo inferir at\u00e9 que ponto a hist\u00f3ria \u00e9 veross\u00edmil ou apenas um arroubo orat\u00f3rio de Samurai para positivar ainda mais a dimens\u00e3o representativa de sua \u201cm\u00e3ezinha\u201d:\u00a0 <\/span>\u201c<\/b>Um dia desses ela chegou pra mim falando que os cara ia levar uns tiro no beco, mah. Eu cheguei aqui e vi um elemento bem ali, n\u00e9. A\u00ed eu falei: \u2018Aquele elemento l\u00e1 oh… no escuro\u2019. Eu vim tirar a moto daqui, quando vim tirar a moto, os cara come\u00e7ou a atirar. <\/span>Tr\u00e1, tr\u00e1, tr\u00e1<\/span><\/i>… Sa\u00ed vuado. Chega nem respirava, parceiro, \u00f3. Olha a\u00ed minha m\u00e3e, \u00f3… minha m\u00e3e falou comigo, \u00f3. Foi da igreja.\u201d<\/span><\/p>\n

A m\u00e3e de Rapos\u00e3o tamb\u00e9m \u00e9 ciente das atividades que o filho desenvolve: tr\u00e1ficos de arma e drogas e assaltos. Ele comenta sobre os cuidados maternos e a op\u00e7\u00e3o de n\u00e3o visit\u00e1-lo no pres\u00eddio quando ele esteve encarcerado. Segundo Rapos\u00e3o, a maior preocupa\u00e7\u00e3o dela \u00e9 que ele seja assassinado: \u201cEla disse: \u2018Meu filho, cuidado pra n\u00e3o morrer\u2019. A\u00ed eu explico: \u2018M\u00e3e, t\u00f4 s\u00f3 tentando quitar umas coisas aqui, levantar minha goma, meu geral, n\u00e9? Uma casinha, isso e aquilo outro\u2019. A\u00ed ela: \u2018Meu filho, a gente aceita voc\u00ea do jeito que voc\u00ea \u00e9, mas quando voc\u00ea for preso a gente num vai te visitar n\u00e3o\u2019\u201d.<\/span><\/p>\n

Percebo que ao trazerem \u00e0 tona a categoria \u201cm\u00e3ezinha\u201d, h\u00e1 uma dimens\u00e3o de transcend\u00eancia subjetiva que p\u00f5e em suspens\u00e3o, como em car\u00e1ter de liminaridade, o <\/span>ethos<\/span><\/i> violento e viril do qual se valem os agentes pobres para constru\u00edrem suas personalidades criminais. Na pesquisa de campo, nestes momentos, quando falaram das m\u00e3es, com a ressalva de raras exce\u00e7\u00f5es, na maioria das vezes eles se mostraram mais sens\u00edveis \u00e0s afetividades humanas, e \u00e0s narrativas de amorosidade, respeito e carinho.\u00a0<\/span><\/p>\n

\/\/\/<\/p>\n

A s\u00e9rie\u00a0Antropologia do crime no Cear\u00e1<\/strong><\/a><\/span>\u00a0\u00e9 publicada semanalmente no #siteberro. Veja abaixo os textos anteriores.\u00a0<\/em><\/p>\n

artur@revistaberro.com \/ revistaberro@revistaberro.com<\/p>\n

i.\u00a0A dimens\u00e3o \u00e9tica na pesquisa de campo<\/a><\/span><\/em><\/p>\n

ii.\u00a0Pesquisando o \u201cmundo do crime\u201d e inserindo-se no \u201ccampo\u201d<\/a><\/span><\/em><\/p>\n

iii.<\/em>\u00a0Grande Tancredo Neves: forma\u00e7\u00e3o dos territ\u00f3rios<\/em><\/a><\/span><\/p>\n

iv.<\/em>\u00a0As rela\u00e7\u00f5es sociais das camadas populares<\/em><\/a><\/span><\/p>\n

v.\u00a0A feira como arte da oralidade popular<\/a><\/span><\/em><\/p>\n

vi.<\/em>\u00a0O favel\u00eas cearense<\/em><\/a><\/span><\/p>\n

vii.<\/em>\u00a0Estabelecidos e outsiders: a favela dentro da favela<\/em><\/a><\/span><\/p>\n

viii<\/em>.\u00a0\u201cTrabalhadores\u201d e \u201cbandidos\u201d: entre separa\u00e7\u00f5es e aproxima\u00e7\u00f5es<\/a><\/em><\/span><\/p>\n

ix.\u00a0Sistema de rela\u00e7\u00f5es sociais do crime: uma rede de a\u00e7\u00f5es criminais hier\u00e1rquicas<\/a><\/span><\/em><\/p>\n

x.\u00a0\u201cO dinheiro fala mais alto, [com ele] se torna mais f\u00e1cil de fazer justi\u00e7a\u201d: A viol\u00eancia do aparelho judici\u00e1rio<\/span><\/a><\/em><\/p>\n

xi.<\/em>\u00a0\u201cN\u00e3o confio na pol\u00edcia\u201d: A rela\u00e7\u00e3o de descren\u00e7a entre a classe trabalhadora e os policiais<\/span><\/em><\/a><\/p>\n

xii.\u00a0A economia da corrup\u00e7\u00e3o que move a rela\u00e7\u00e3o entre pol\u00edcia e \u201cbandidos\u201d<\/a><\/span><\/em><\/p>\n

xiii.\u00a0\u201cO crime nunca vai acabar por causa da pol\u00edcia\u201d: a participa\u00e7\u00e3o policial decisiva nas rela\u00e7\u00f5es criminais<\/a><\/span><\/em><\/p>\n

xiv.\u00a0Tecnopol\u00edtica da puni\u00e7\u00e3o: A fun\u00e7\u00e3o econ\u00f4mica do encarceramento<\/a><\/span><\/em><\/p>\n

xv.\u00a0Estado punitivo-penal e a produ\u00e7\u00e3o social da delinqu\u00eancia<\/a><\/span><\/em><\/p>\n

xvi<\/em>.\u00a0\u201cCadeia \u00e9 uma m\u00e1quina de fazer bandido\u201d<\/a><\/em><\/span><\/p>\n

xvii.\u00a0A \u201cescolha\u201d \u00e9 uma escolha? Compreendendo o ingresso nas rela\u00e7\u00f5es criminais<\/em><\/a><\/span><\/p>\n

xviii.\u00a0Consumo, dinheiro e sexo: a tr\u00edade hedonista da carreira criminal<\/a><\/em><\/span><\/p>\n

xix.\u00a0Traumas, complexos e a luta por reconhecimento (parte I)<\/a><\/em><\/span><\/p>\n

xx.\u00a0Traumas, complexos e a luta por reconhecimento (parte II)<\/a><\/em><\/span><\/p>\n

xxi.\u00a0\u201cFura at\u00e9 o colete dos homi\u201d: As armas como s\u00edmbolo dominante<\/em><\/a><\/span><\/p>\n

xxii.\u00a0Os c\u00f3digos morais da criminalidade favelada (parte I)<\/em><\/a><\/span><\/p>\n

xxiii. Os c\u00f3digos morais da criminalidade favelada (parte II)<\/em>\u00a0<\/a><\/span><\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

Dentro do espectro de rela\u00e7\u00f5es morais das atividades delitivas no Grande Tancredo Neves (GTN), talvez nenhuma outra categoria local tenha mais capital simb\u00f3lico positivado do que a \u201cm\u00e3ezinha\u201d. 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