(Ilustra\u00e7\u00e3o: Lara Albuquerque)<\/figcaption><\/figure>\nBento chegou ao centro da cidade caminhando estreito, at\u00e9 avistar seus amigos em frente ao Bar no Por\u00e3o. Acreditara nas palavras da ex-namorada, mas a loucura que lhe parecia essa hist\u00f3ria, a insensatez de algu\u00e9m matar o outro por conta de um relacionamento de anos atr\u00e1s, o fez crer e duvidar. N\u00e3o lhe faltavam exemplos de casos assim. N\u00e3o seria o primeiro nem o \u00faltimo, mas a rea\u00e7\u00e3o de Pablo como Let\u00edcia lhe apresentara, extrema, deveria ser mais pelo impacto causado nela do que a verdade proferida por ele. Nunca encontrara o malandro at\u00e9 o dia que este lhe abriu o superc\u00edlio, n\u00e3o o conhecia a ponto de julgar sua decis\u00e3o, mas o pr\u00f3prio fato dele abrir seu superc\u00edlio j\u00e1 dizia muita coisa. Ficara o alerta de Let\u00edcia, talvez fosse verdade, talvez n\u00e3o.<\/span><\/p>\nEm frente ao bar, abra\u00e7ou Caetano enquanto percorria o entorno procurando olhar algu\u00e9m que o jurara de morte, beijou Maya e cumprimentou o seguran\u00e7a. Enquanto desciam as escadas ouviu o amigo mencionar curioso o fato de n\u00e3o encontrar Hugo na portaria, mas imaginou que este poderia estar em outro posto e, ao sentir a energia que vinha daquele lugar lotado, onde vivera e amara tantas hist\u00f3rias, varreu seu pensamento para debaixo de uma janela de possibilidades.\u00a0 Era seu bar favorito, conhecia cada sentimento que compunha o ambiente, n\u00e3o seria ali que terminaria sua hist\u00f3ria, n\u00e3o agora.<\/span><\/p>\nBento mordiscava o canto da unha enquanto olhava atento a mudan\u00e7a no palco. Ainda n\u00e3o avistara Let\u00edcia e se perguntava se ela viria para o show da banda que ajudara a formar. Os m\u00fasicos da primeira deixavam o tablado ainda sob uma pequena onda de aplausos e, nesse momento, passou o atendente servindo cacha\u00e7a caseira produzida no fundo do quintal.<\/span><\/p>\n\u2014 Tr\u00eas, por favor. \u2013 berrou Caetano.<\/span><\/p>\nBento virou uma dose em um trago e pediu mais uma. Caetano fez o mesmo enquanto Maya mexia na bolsa.<\/span><\/p>\n\u2014 Aspirina?<\/span><\/p>\nCaetano aceitou o rem\u00e9dio e pegou uma para Bento tamb\u00e9m. Enquanto engolia, junto com um trago na cerveja, Bento viu Let\u00edcia caminhando apressada em dire\u00e7\u00e3o ao fundo do sal\u00e3o enquanto lhe olhava com reprova\u00e7\u00e3o.<\/span><\/p>\n\u2014 \u00d4xe! O que aconteceu dessa vez? \u2013 perguntou Caetano.<\/span><\/p>\nBento contou sobre a visita que recebera algumas horas atr\u00e1s enquanto percebia o clima pesar sobre os dois. Era como contar uma hist\u00f3ria distante, que n\u00e3o havia raz\u00e3o de existir pela pr\u00f3pria narrativa.<\/span><\/p>\n\u2014 E voc\u00ea n\u00e3o vai fazer nada? \u2013 perguntou Maya.<\/span><\/p>\n\u2014 C\u00ea t\u00e1 maluco, br\u00f3der! E como pode ficar assim, de boa? \u2013 completou Caetano.<\/span><\/p>\n\u2014 Depois que ela foi embora, eu pesquisei na internet o sobrenome do Pablo, o pai dele era o diretor do pres\u00eddio do vale. \u2013 Bento olhou para Caetano esperando uma rea\u00e7\u00e3o enquanto dava um gole na cerveja. E como esse n\u00e3o demonstrou nada, continuou \u2013 Era ele o diretor quando Hugo estava preso.<\/span><\/p>\nMaya n\u00e3o entendeu porra nenhuma.<\/span><\/p>\n\u2014 E o qu\u00ea que tem? \u2013 perguntou Caetano.<\/span><\/p>\nBento abriu um sorriso como quem esperava pela pergunta.<\/span><\/p>\n\u2014 O qu\u00ea que tem… Eu liguei pro Hugo e contei pra ele.<\/span><\/p>\n\u2014 Como assim gente? Hugo n\u00e3o \u00e9 o seguran\u00e7a? O qu\u00ea que tem a ver?<\/span><\/p>\nCaetano contou sobre a pris\u00e3o de Hugo e a injusti\u00e7a que sofreu no momento antes de ganhar \u00e0 liberdade.<\/span><\/p>\n\u2014 E o que ele disse? \u2013 perguntou Caetano.<\/span><\/p>\n\u2014 Nada.<\/span><\/p>\n\u2014 Como assim, nada?<\/span><\/p>\n\u00a0\u2014 No come\u00e7o ele n\u00e3o disse nada, mas a\u00ed eu contei sobre ele querer me matar, que viria aqui hoje atr\u00e1s de mim e que seria um bom motivo para ele acertar as contas.<\/span><\/p>\n\u2014 E o que ele disse? \u2013 intrometeu Maya.<\/span><\/p>\n\u2014 Disse para eu ficar tranquilo, que nada aconteceria comigo aqui no bar. \u2013 Bento deu um gole na cerveja, como quem d\u00e1 de ombros \u2013 Disse que o pai dele iria pagar pela injusti\u00e7a ainda essa noite.<\/span><\/p>\n\u2014 Mas eu n\u00e3o o vi na portaria. \u2013 protestou Caetano.<\/span><\/p>\n\u2014 Eu sei. Ele deve estar em outro lugar.<\/span><\/p>\n\u2014 E voc\u00ea n\u00e3o vai verificar? \u2013 perguntou Maya.<\/span><\/p>\nBento olhou os dois com o copo na metade do caminho para a boca.<\/span><\/p>\n\u2014 Vai ver se ele est\u00e1 aqui! \u2013 berrou Caetano enquanto Bento lhe olhava sem express\u00e3o \u2013 Vai logo!<\/span><\/p>\nBento deixou o copo sobre a mesa e abriu passagem at\u00e9 o banheiro. O seguran\u00e7a n\u00e3o era Hugo. Entrou meio cismado e, enquanto mijava, considerou suas possibilidades se ele n\u00e3o aparecesse. Talvez estivesse pr\u00f3ximo ao balc\u00e3o. O cara tamb\u00e9m n\u00e3o seria louco de tentar alguma coisa ali dentro. Talvez se esperasse o dia amanhecer, n\u00e3o encontraria ningu\u00e9m para o matar. Riu da sua conclus\u00e3o enquanto lavava as m\u00e3os e se olhava no espelho. Saiu do banheiro e caminhou em dire\u00e7\u00e3o ao caixa, perguntou para o dono se Hugo havia chegado.<\/span><\/p>\n\u2014 Ele n\u00e3o veio hoje \u2013 berrou para se fazer ouvir \u2013 Disse que tinha um probleminha pra resolver.<\/span><\/p>\nBento reconsiderou algumas certezas e voltou ao encontro dos seus amigos.<\/span><\/p>\n\u2014 O que foi? \u2013 perguntou Caetano.<\/span><\/p>\n\u2014 Hugo n\u00e3o veio.<\/span><\/p>\n\u2014 Qu\u00ea?<\/span><\/p>\n\u00ad\u2014 Seu Osvaldo disse que ele tinha um probleminha pra resolver.<\/span><\/p>\n\u2014 Probleminha? \u2013 estranhou Caetano \u2013 Ele disse mesmo que viria?<\/span><\/p>\n\u2014 Dizer que viria ele n\u00e3o disse, mas me falou pra ficar tranquilo que n\u00e3o aconteceria nada.<\/span><\/p>\nCaetano percebeu a preocupa\u00e7\u00e3o tomando conta do semblante do amigo. Certamente ele n\u00e3o havia contado com essa possibilidade, mas tamb\u00e9m concordava com a opini\u00e3o que Pablo n\u00e3o tentaria nada ali dentro.<\/span><\/p>\n\u2014 Relaxa, br\u00f3der. \u2013 deu um tapinha no ombro de Bento \u2013 Esse cara t\u00e1 blefando. Ele nem apareceu at\u00e9 agora, vai ver ele nem vem. E se o Hugo falou para n\u00e3o se preocupar, eu confio nele.<\/span><\/p>\n\u00ad\u2014 Confia? \u2013 Maya estava incr\u00e9dula \u2013 Confiar como? Se foi nesse mesmo bar que ele segurou Bento enquanto o outro fugia? \u2013 perguntou a Caetano. Virou-se para Bento e continuou \u2013 Se eu fosse voc\u00ea, ficaria bem esperto. Tanto com Pablo, quanto com o Hugo.<\/span><\/p>\n\u2014 Ele n\u00e3o sabia quem era, Maya. \u2013 argumentou Caetano.<\/span><\/p>\n\u00ad\u2014 Como n\u00e3o sabia? Eu mesma vi quando ele bateu no Bento. Contei pra voc\u00eas. Ele n\u00e3o quis foi botar a m\u00e3o no playboy, preferiu segurar voc\u00ea! \u2013 espetou o dedo no peito de Bento.<\/span><\/p>\nOs amigos se entreolharam.<\/span><\/p>\n\u2014 Que nada Maya, \u2013 come\u00e7ou Bento a fim de acalm\u00e1-la \u2013 eu liguei para ele depois.\u00a0 Ele me disse que, na hora, o intuito dele foi separar a briga. Nem pensou em nada…<\/span><\/p>\n\u2014 Como n\u00e3o pensou, Bento? \u2013 interrompeu a garota \u2013 S\u00e9rio mesmo que acredita nisso? Olha pra mim! T\u00e1 vendo minha cor? \u2013 Maya encarava Bento nos olhos enquanto apontava para o pr\u00f3prio bra\u00e7o \u2013 T\u00e1 vendo? \u00c9 igual a sua, cara! Quem voc\u00ea acha que ele seguraria primeiro?<\/span><\/p>\nO clima pesou e Bento deu um trago na cacha\u00e7a enquanto virava-se para espiar o palco. Let\u00edcia acabara de subir para assumir o baixo e sua energia ali em cima aquebrantava todos os seus medos. Recordou-se da primeira vez que a viu tocar, quando ela ainda morava com os pais e teve que cantar o instrumento no volume m\u00ednimo do amplificador para n\u00e3o acord\u00e1-los, a noite de sexo e todos os outros anos que vieram depois. Pensou em como ela havia se apaixonado por um cara como Pablo e passou o resto do show se reapaixonando por ela.<\/span><\/p>\nCom o passar do tempo e o t\u00e9rmino da apresenta\u00e7\u00e3o, o clima foi amenizando. Caetano voltara a fazer seus coment\u00e1rios insolentes e os tr\u00eas riram ao lembrar a noite do teatro.<\/span><\/p>\n\u2014 Do qu\u00ea voc\u00eas est\u00e3o rindo, hein? \u2013 Let\u00edcia apareceu esbarrando em Bento enquanto perguntava.<\/span><\/p>\n\u2014 Desse idiota! \u2013 respondeu Caetano apontando para o amigo.<\/span><\/p>\n\u2014 Sempre! \u2013 virou-se para Bento e continuou \u2013 Voc\u00ea n\u00e3o me escuta nunca, n\u00e9?<\/span><\/p>\nEle sorriu.<\/span><\/p>\n\u2014 Custava ter ficado em casa hoje? Ter ido para qualquer outro lugar?<\/span><\/p>\n\u2014 E eu perderia voc\u00ea no palco?<\/span><\/p>\n\u2014 Voc\u00ea nem sabia que eu ia tocar. \u2013 protestou.<\/span><\/p>\n\u2014 E eu n\u00e3o te conhe\u00e7o, n\u00e9?<\/span><\/p>\nAgora foi a vez de Let\u00edcia sorrir. Depois virou para Caetano e Maya e perguntou:<\/span><\/p>\n\u2014 O que esse trouxa aprontou dessa vez?<\/span><\/p>\nMaya, entre risadas, contou da ida ao teatro antes de chegarem ao bar no dia em que Pablo bateu em Bento. Contou de como ele havia se misturado aos atores e foi arrastado at\u00e9 o palco para fazer parte da pe\u00e7a. De como fizeram piada com ele e ainda lhe jogaram um copo cheio de sangue fict\u00edcio na cara. Ficou vermelho e com frio, e assumiu o papel de bobo que lhe deram sem ao menos contestar. E diante dos protestos de Bento, que afirmava que a experi\u00eancia havia sido legal, Maya teve que concordar que o acontecimento valeu a noite, e que ap\u00f3s a pe\u00e7a, o p\u00fablico mais empolgado veio o cumprimentar achando que era ator.<\/span><\/p>\nLet\u00edcia sorriu e enla\u00e7ou Bento em um abra\u00e7o. Ficou com eles, entre idas e vindas \u00e0s amigas da banda, para o pr\u00f3ximo show.\u00a0<\/span><\/p>\nAo t\u00e9rmino da noite, saindo do bar, Let\u00edcia comentou sobre o n\u00e3o comparecimento de Pablo. Bento deu de ombros enquanto olhava para o c\u00e9u, um azul escuro, desbotando nas bordas do horizonte.<\/span><\/p>\n\u2014 Quer carona? \u2013 perguntou Let\u00edcia.<\/span><\/p>\nBento negou depois de olhar para os amigos.<\/span><\/p>\n\u2014 Posso deixar voc\u00eas no terminal. \u2013 insistiu ela.<\/span><\/p>\nBento agradeceu, mas preferiu seguir com eles at\u00e9 o ponto de \u00f4nibus. Let\u00edcia despediu-se e entrou no carro acompanhada por uma garota enquanto ele sorria ao v\u00ea-la partir.<\/span><\/p>\n\u2014 Voc\u00ea \u00e9 apaixonado por ela, n\u00e9? \u2013 perguntou Maya.<\/span><\/p>\n\u2014 J\u00e1 fui mais \u2013 disse enquanto mantinha o sorriso \u2013 mas agora, olhando ela partir, sinto que foi um amor pra vida toda, e s\u00f3.<\/span><\/p>\nCaminharam at\u00e9 a esquina e viraram \u00e0 direita. Duas ruas depois Caetano virou-se para tr\u00e1s e viu o \u00f4nibus vindo.<\/span><\/p>\n\u2014 Pode ir, br\u00f3der. \u2013 disse Bento.<\/span><\/p>\n\u2014 Que nada, n\u00f3s vamos esperar o seu. \u2013 Maya concordou com a cabe\u00e7a.<\/span><\/p>\n\u2014 Eu pego qualquer um pro terminal.<\/span><\/p>\nNisso, o \u00f4nibus que Bento esperava virou \u00e0 esquina no final da rua.<\/span><\/p>\n\u2014 Tranquilo, br\u00f3der. Vai l\u00e1. \u2013 abra\u00e7ou o amigo em um aconchego apertado e lhe beijou o rosto. Maya abra\u00e7ou os dois e despediu-se, Caetano a seguiu.<\/span><\/p>\nEmbarcaram enquanto Bento via o que esperava parado no sem\u00e1foro. O \u00f4nibus arrancou e ouviu-se um barulho de tiro. Bento no ch\u00e3o e, do outro lado da rua, escondido atr\u00e1s dos carros parados, Hugo filmava tudo.\u00a0<\/span><\/p>\n\/\/\/<\/p>\n
Este conto \u00e9 o oitavo e \u00faltimo da s\u00e9rie <\/em>\u201cBerros, tragos e aspirinas\u201d, de Arthur Yuka, que foi publicada em epis\u00f3dios semanais.<\/em><\/p>\nI:\u00a0Barba ensopada de sangue<\/a><\/span><\/em><\/p>\nII:<\/em> Sem culpa<\/a><\/em><\/span><\/p>\nIII:\u00a0At\u00e9 que provem o contr\u00e1rio<\/a><\/span><\/em><\/p>\nIV:\u00a0A \u00faltima ceia<\/a><\/span><\/em><\/p>\nV:\u00a0Let\u00edcia n\u00e3o sabe decidir<\/span><\/a><\/em><\/p>\nVI:\u00a0Ti\u00ea<\/span><\/a><\/em><\/p>\nVII: A visita<\/a><\/span><\/em><\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"Bento chegou ao centro da cidade caminhando estreito, at\u00e9 avistar seus amigos em frente ao Bar no Por\u00e3o. Acreditara nas palavras da ex-namorada, mas a loucura que lhe parecia essa hist\u00f3ria, a insensatez de algu\u00e9m matar o outro por conta de um relacionamento de anos atr\u00e1s, o fez crer e duvidar. N\u00e3o lhe faltavam exemplos […]<\/p>\n","protected":false},"author":50,"featured_media":6371,"comment_status":"open","ping_status":"open","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"_mi_skip_tracking":false,"_monsterinsights_sitenote_active":false,"_monsterinsights_sitenote_note":"","_monsterinsights_sitenote_category":0,"footnotes":""},"categories":[49,28],"tags":[],"yoast_head":"\n
Berros, tragos e aspirinas | Revista Berro<\/title>\n \n \n \n \n \n \n \n \n \n \n \n\t \n\t \n\t \n \n \n \n \n \n\t \n\t \n\t \n