(Ilustra\u00e7\u00e3o: Lara Albuquerque)<\/figcaption><\/figure>\nErgui a cabe\u00e7a, olhei para o c\u00e9u e, a princ\u00edpio, cheguei a pensar que fosse um avi\u00e3o que atravessava a frente do sol, causando sombra t\u00e3o s\u00fabita na cal\u00e7ada. Mas era apenas um p\u00e1ssaro de muito alto voo. Gavi\u00e3o, talvez. Ou um urubu feiticeiro. Seria dif\u00edcil mesmo ser um avi\u00e3o. Antigamente, costumavam costurar o c\u00e9u todos os dias, v\u00e1rias vezes. Agora, nada deles, nem mesmo uma mem\u00f3ria do som do enorme motor. Melhor para os gavi\u00f5es e os urubus, que planavam pacificamente no azul infindo.<\/span><\/p>\nDobrei a esquina e comecei a subir a rua Professor C\u00e9sar Mouro. No asfalto novo, um novo buraco. Quando olhei para frente enxerguei logo K\u00e1tia descendo. Ela usava um la\u00e7o rosa, que segurava um lindo rabo-de-cavalo, e uma m\u00e1scara branca. Os olhos verdes desmaiados na tela do celular contra\u00edam-se em risos. J\u00e1 a boca, velada pela m\u00e1scara, era sem emo\u00e7\u00f5es. De celular no bolso, eu mantinha meus olhos voltados \u00e0 frente, ao meu destino, ao horizonte. E do meu horizonte, enquanto eu ia, vinha K\u00e1tia.<\/span><\/p>\nNossa aproxima\u00e7\u00e3o era inevit\u00e1vel como a mutabilidade das coisas, e quanto mais perto seu corpo chegava do meu, mais as d\u00favidas cresciam dentro de mim. O que fazer quando nos cruzarmos? Como n\u00e3o parecer derrotado nem tampouco esperan\u00e7oso? Talvez, em cima da hora, eu pegue o celular e finja n\u00e3o a ver… N\u00e3o! estarei sendo infantil demais. Quem sabe uma troca r\u00e1pida e muda de olhares, que transpare\u00e7a o respeito, a considera\u00e7\u00e3o, que ainda guardamos um pelo outro. E se, contudo, K\u00e1tia n\u00e3o tenha mais nada guardado em si. E se ela optou por simplesmente tocar a vida, sem reminisc\u00eancias. Faria papel de trouxa.<\/span><\/p>\nCatei, com a m\u00e3o direita, o celular do bolso. Abri aleatoriamente o arquivo de imagens, fiquei jogando as v\u00e1rias fotos para o lado. Elevando p\u00e1lpebras e retina, pesco\u00e7o im\u00f3vel, mirei-a curioso, admirei as pernas firmes dela alternando os passos no concreto abafado de outono. A figura de K\u00e1tia aumentava a cada segundo. Meus dedos suados manchavam a pel\u00edcula da tela. Pus de volta o aparelho no bolso. Foda-se! A encararia e diria, a voz abafada pela m\u00e1scara: oi-K\u00e1tia-tudo-bem-com-voc\u00ea-? Feito adulto. E depois seguiria caminhada rumo ao meu horizonte, onde ela jamais ter\u00e1 acesso livre novamente.<\/span><\/p>\nAl\u00e9m do la\u00e7o e da m\u00e1scara e das cal\u00e7as de gin\u00e1stica e do verde da \u00edris, K\u00e1tia usava fones nos ouvidos, e trocava mensagens num dedilhar hist\u00e9rico. De repente, ela levantou a cabe\u00e7a, como se buscasse no infinito alguma resposta, e pareceu tocar seus olhos nos meus. Meus passos n\u00e3o alteraram de velocidade, muito menos de compasso. Conservei-me altivo, seguro de minha pessoa. J\u00e1 ela quedou de volta sua aten\u00e7\u00e3o \u00e0 tela do celular, digitando a resposta que encontrara. Ser\u00e1 que chegou mesmo a me ver ou sua mente encontrava-se demasiado distante no momento do contato \u00f3ptico? E agora? E se na hora de cumpriment\u00e1-la ela simplesmente continuar seu trajeto de cabe\u00e7a baixa, evitando o incontorn\u00e1vel encontro? Vou me sentir humilhado? Deposto?<\/span><\/p>\nMinhas m\u00e3os ficaram mais \u00famidas nas palmas, frias tamb\u00e9m. Nos cruzar\u00edamos, afinal, depois de tantos meses, de tantos choros desatados, de tantas palavras engolidas com cacha\u00e7a e fuma\u00e7a de cigarro. Ent\u00e3o K\u00e1tia, em gesto t\u00e3o natural quanto o desfolhar da \u00faltima tarde, sem desgrudar do celular, atravessou a rua at\u00e9 a cal\u00e7ada outra. Surpreso, assassinei-a com o olhar instintivo de quem \u00e9 rejeitado, sem ponderar as consequ\u00eancias de ser pego em flagrante.<\/span><\/p>\nA mulher, entretanto, n\u00e3o manifestou rea\u00e7\u00e3o alguma, sen\u00e3o seguir descida pela rua Professor C\u00e9sar Mouro, oferecendo por ora a vis\u00e3o de suas costas, o castanho rabo-de-cavalo balan\u00e7ando entre as esc\u00e1pulas, os cotovelos flexionados permitindo que ela digitasse mensagens para algu\u00e9m t\u00e3o distante quanto a resposta encontrada no infinito segundos atr\u00e1s, quanto o toque de nossos olhos para sempre sumidos. Ou quanto o destino quase esquecido de minha ida. <\/span><\/p>\n\/\/\/<\/p>\n
Huggo Iora (pseud\u00f4nimo de Victor Hugo Pinheiro) nasceu em S\u00e3o Jos\u00e9, SC, no ano de 1992. Publicou dois livros de poesia: E sem demora… versos diversos num liquidificador <\/em>(Ed. Insular, 2018) e Balada Desafinada e outros concertos <\/em>(Ed. Autor, 2019). Contribuiu em revistas liter\u00e1rias como Mallarmargens, Ru\u00eddo Manifesto, Jornal Relevo, Arara Revista, entre outras. Atualmente, dedica-se aos contos.<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"Ergui a cabe\u00e7a, olhei para o c\u00e9u e, a princ\u00edpio, cheguei a pensar que fosse um avi\u00e3o que atravessava a frente do sol, causando sombra t\u00e3o s\u00fabita na cal\u00e7ada. Mas era apenas um p\u00e1ssaro de muito alto voo. Gavi\u00e3o, talvez. Ou um urubu feiticeiro. Seria dif\u00edcil mesmo ser um avi\u00e3o. Antigamente, costumavam costurar o c\u00e9u […]<\/p>\n","protected":false},"author":57,"featured_media":6362,"comment_status":"open","ping_status":"open","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"_mi_skip_tracking":false,"_monsterinsights_sitenote_active":false,"_monsterinsights_sitenote_note":"","_monsterinsights_sitenote_category":0,"footnotes":""},"categories":[21,19],"tags":[],"yoast_head":"\n
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