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{"id":5960,"date":"2020-04-23T15:48:26","date_gmt":"2020-04-23T18:48:26","guid":{"rendered":"http:\/\/revistaberro.com\/?p=5960"},"modified":"2020-05-12T11:19:00","modified_gmt":"2020-05-12T14:19:00","slug":"sem-tempo-para-amaciamento","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/revistaberro.com\/cultura-e-arte\/audiovisual\/sem-tempo-para-amaciamento\/","title":{"rendered":"Sem tempo para amaciamento"},"content":{"rendered":"
\"\"
(Ilustra\u00e7\u00e3o: Lara Albuquerque)<\/figcaption><\/figure>\n

Atendi o telefone e ouvi uma voz compenetrada:<\/p>\n

– O companheiro precisa falar com a Lourdes de Paula, o quanto antes…<\/p>\n

Ao saber da seriedade do que se tratava, a recupera\u00e7\u00e3o de uma delicada cirurgia, senti meu mundo tremer:<\/p>\n

– Pode deixar, meu irm\u00e3o, amanh\u00e3 mesmo passo na casa dela, \u00e9 s\u00f3 falar qual o melhor hor\u00e1rio.<\/p>\n

Refor\u00e7ar meu compromisso com uma pessoa t\u00e3o compromissada era mais que uma quest\u00e3o de honra, era uma quest\u00e3o de respeito, vergonha na cara e sobretudo amizade.<\/p>\n

Maria de Lourdes Negreiros de Paula, a Dona Eulinha, mais conhecida como Tia Lourdes, enfermeira, servidora p\u00fablica aposentada, sindicalista, militante feminista, ativista anticapitalista, que no ano de 2019 recebeu uma homenagem por meio de um v\u00eddeo document\u00e1rio curta-metragem de dire\u00e7\u00e3o de Alex Fedox. Tal document\u00e1rio se resulta de um trabalho de conclus\u00e3o de disciplina do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade de Fortaleza (UNIFOR).<\/p>\n

Antes de tratar da obra em si me sinto na obriga\u00e7\u00e3o de ressaltar a relev\u00e2ncia de Trabalhos de Conclus\u00e3o de Curso (TCC) e Trabalhos de Conclus\u00e3o de Disciplina (TCD) em formato de v\u00eddeo document\u00e1rio para a produ\u00e7\u00e3o audiovisual contempor\u00e2nea, facilitando acesso de dados, possibilitando pesquisas, dispon\u00edveis em plataformas como o Youtube. Muitos desses trabalhos n\u00e3o deixam nada a desejar diante de produ\u00e7\u00f5es do circuito profissional audiovisual, com criatividade e desenvoltura, abrangendo diversos temas como a reinser\u00e7\u00e3o de egressos do sistema penal brasileiro; mem\u00f3ria de engraxates da cidade de S\u00e3o Paulo; hist\u00f3ria do forr\u00f3 p\u00e9 de serra; experi\u00eancia de pessoas que receberam transplante de medula \u00f3ssea, s\u00f3 pra citar alguns.<\/p>\n

Junto a uma equipe plural, Alex Fedox entrega uma obra instigante e simpaticamentente questionadora, tal qual a personagem principal do document\u00e1rio. Sim, pra quem ainda n\u00e3o teve a oportunidade de conhec\u00ea-la, Tia Lourdes \u00e9 uma pessoa de humor afiado, aberta, gentil, solid\u00e1ria, mantendo o questionamento como toque essencial de sua doce e atrevida personalidade.<\/p>\n

Al\u00e9m de advindo da disciplina Cine experi\u00eancia 3 do curso e da universidade j\u00e1 citados, o document\u00e1rio sobre Tia Lourdes, que leva seu nome no t\u00edtulo, tamb\u00e9m \u00e9 uma produ\u00e7\u00e3o do Cine Molotov, cineclube e coletivo do campo audiovisual sediado em Fortaleza que enxerga nas produ\u00e7\u00f5es cinematogr\u00e1ficas e audiovisuais independentes um consider\u00e1vel vi\u00e9s para refletir sobre o mundo e a vida.<\/p>\n

Essa mulher, Tia Lourdes, al\u00e9m das barreiras impostas contra seu g\u00eanero por uma sociedade baseada no patriarcado, doentiamente machista, iniciou sua milit\u00e2ncia pol\u00edtica ainda nos \u201canos de chumbo\u201d. Mesmo correndo os graves riscos do per\u00edodo ditatorial Tia Lourdes intensificou sua luta contra o autoritarismo, sempre em prol da liberdade.<\/p>\n

O document\u00e1rio exp\u00f5e o que ningu\u00e9m \u201cse mete a besta\u201d em negar: Tia Lourdes jamais ser\u00e1 passado, ela \u00e9 presente consciente e perspectiva de futuro para al\u00e9m do mundo do dinheiro, pois at\u00e9 hoje, apesar da idade, continua travando sua peleja contra os absurdos da sociedade capitalista, comparecendo em manifesta\u00e7\u00f5es, colaborando em campanhas, vivenciando experi\u00eancias contr\u00e1rias a uma das coisas em que ela mais lutou contra em sua vida: a pelegagem.<\/p>\n

No document\u00e1rio Tia Lourdes<\/em> se pode presenciar acontecimentos em que muitos sentir\u00e3o a vontade de resgatar aquela sens\u00edvel senhora, no vislumbre de invadir a tela para proteg\u00ea-la, por\u00e9m quem a conhece, mesmo de longe, sabe que ela n\u00e3o tem nada de fr\u00e1gil. Parte do p\u00fablico ver\u00e1 Tia Lourdes, uma senhora de idade, em situa\u00e7\u00f5es em que essa mesma parte se nega veementemente a enfrentar, por medo, despolitiza\u00e7\u00e3o, irresponsabilidade, pregui\u00e7a, descren\u00e7a e uma s\u00e9rie de outras caracter\u00edsticas das quais ela n\u00e3o sofre.<\/p>\n

A obra, dentre outros pontos, aborda como pessoas idosas encaram a desvaloriza\u00e7\u00e3o dos mais vividos, desvaloriza\u00e7\u00e3o essa que al\u00e9m de renegar saberes exclui idosos da vida social, enxergando nesses apenas uma fonte de aproveitamento e extors\u00e3o.<\/p>\n

Al\u00e9m da grana das pens\u00f5es e aposentadorias e da am\u00e1vel disposi\u00e7\u00e3o pra assumir a cria\u00e7\u00e3o de crian\u00e7as dispensadas pelos pr\u00f3prios pais, qual interesse a sociedade tem em rela\u00e7\u00e3o aos seus idosos? Tia Lourdes sabe, mas diferente de muita gente ela \u201cd\u00e1 os toques\u201d, n\u00e3o guarda pra si o que pensa, expressa o que sabe sem pudores, sem temer machucar o \u00edmpeto dos desencorajados, nem tampouco contrariar os mon bijou<\/em> \u2013 nas palavras da pr\u00f3pria Tia Lourdes, a \u201cturma do amaciamento\u201d.<\/p>\n

Militante do grupo Cr\u00edtica Radical, companheira de membros desse grupo desde o in\u00edcio dos anos 1980, Tia Lourdes entende a necessidade da luta cotidiana para subverter esse mundo ca\u00f3tico regido pela l\u00f3gica do ac\u00famulo de alguns que determina o definhamento de milh\u00f5es de pessoas.<\/p>\n

Como n\u00e3o poderia deixar de ser o curta exp\u00f5e parte da trajet\u00f3ria de uma vida de lutas que o agora n\u00e3o esgotou, pois Maria de Lourdes Negreiros de Paula desconhece a desist\u00eancia e do jeito que pode d\u00e1 continuidade ao que defende e no que acredita.<\/p>\n

Sempre com seus companheiros, participando ativamente de estudos te\u00f3ricos, assim como de a\u00e7\u00f5es diretas, a milit\u00e2ncia de Tia Lourdes \u00e9 mais que um s\u00edmbolo de luta, \u00e9 um exemplo de vida.<\/p>\n

Tia Lourdes talvez ainda seja t\u00e3o mal entendida como o pr\u00f3prio grupo Cr\u00edtica Radical, que distante do populismo da pol\u00edtica brasileira, segue fortalecendo sua fundamenta\u00e7\u00e3o anticapitalista e sem abandonar pautas emergenciais, como no papel que desempenhou mobilizando a sociedade contra a demiss\u00e3o de 700 trabalhadores do Hospital das Cl\u00ednicas e da Maternidade Escola da Universidade Federal do Cear\u00e1 \u2013 UFC, pauta essa negligenciada por quase todas as for\u00e7as de esquerda da cidade de Fortaleza; ou saindo em defesa do Parque do Coc\u00f3. O grupo, a partir do erguimento do S\u00edtio Brotando a Emancipa\u00e7\u00e3o, passa por uma nova fase de sua exist\u00eancia vivenciando seus prop\u00f3sitos de uma sociedade plenamente livre do dinheiro, em que nada \u00e9 mercadoria.<\/p>\n

Para o Cr\u00edtica Radical, a esquerda reformista acaba refor\u00e7ando a sociedade vigente ao se negar a identificar no capitalismo o causador de tanto atraso e viol\u00eancia; para a esquerda reformista o Cr\u00edtica Radical \u00e9 uma afronta, pois se nega a pirangar voto e a se sujeitar \u00e0s s\u00f3rdidas alian\u00e7as com setores sociais historicamente de direita.<\/p>\n

Nem mito, nem caricatura esquerdista, nem l\u00edder, nem representante de ningu\u00e9m, Tia Lourdes \u00e9 uma revolucion\u00e1ria \u2013 emancipacionista, como ela e o Cr\u00edtica Radical preferem ser compreendidos \u2013 e embora tudo leve a crer que a pr\u00e1xis revolucion\u00e1ria tenha caducado ela segue, muito bem referenciada por conceitos que n\u00e3o se diminuem em meio \u00e0 conformidade burguesa, muito menos frente aos pressupostos da esquerda fracassada. Tia Lourdes \u00e9 povo que resiste, reage e transcende. Conforme nossos ancestrais ela \u00e9 vida.<\/p>\n

Essa \u00e9 a \u201cminha Tia\u201d, que respeito conforme minhas tias consangu\u00edneas que jamais me abandonaram e que s\u00e3o emo\u00e7\u00e3o e raz\u00e3o de muito do que me disponho a fazer. Essa \u00e9 a \u201cnossa Tia\u201d.<\/p>\n

Um dos melhores presentes que recebi na vida foi o convite de Alex Fedox para participar da edi\u00e7\u00e3o desse document\u00e1rio, que fala um pouco da luta que \u00e9 paix\u00e3o e que conquista a aten\u00e7\u00e3o de quem se aproxima.<\/p>\n

Tia, tomara que a senhora goste, muito obrigado por cuidar de mim e me acoitar em seus bra\u00e7os e em seu lar em parte das persigas que sofri, por exemplo, nas quase infinitas hist\u00f3rias do Liceu do Cear\u00e1 que fizemos parte. Obrigado por me ensinar tanto e me acolher nos acampamentos reivindicat\u00f3rios dos anos de 1990 e 2000, como no acampamento no Pa\u00e7o Municipal em Fortaleza no ano de 1998, onde eu a conheci, que teve como uma de suas vit\u00f3rias a garantia de comunidades fruto de ocupa\u00e7\u00e3o de terra na \u00e1rea urbana da capital do Cear\u00e1, como a comunidade Rosalina. Obrigado por procurar entender a juventude, obrigado por defender nossas companheiras e companheiros.<\/p>\n

O melhor disso tudo \u00e9 que da minha visita \u00e0 sua casa ap\u00f3s aquela delicada cirurgia \u00e0 escrita desses dizeres j\u00e1 se foram quase vinte anos e eu nunca vou esquecer que ela me garantiu que tudo ia ficar bem, como ficou.<\/p>\n

Assistam, compartilhem, critiquem, discutam: Tia Lourdes<\/span><\/a><\/strong><\/em><\/p>\n

\/\/\/<\/p>\n

Augusto Azevedo \u00e9 estudioso da fenomenologia referente ao que \u00e9 conhecido vulgarmente como pobres de direita<\/em><\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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