(Ilustra\u00e7\u00e3o: Lara Albuquerque)<\/figcaption><\/figure>\n\u201cSer\u00e1 que todos os dias s\u00e3o ocos?\u201d. Essa era a pergunta que Eleut\u00e9rio fazia, repetidas vezes. A sensa\u00e7\u00e3o, o vazio no peito, a seu ju\u00edzo, se alastrara, a ponto de sentir falta de o cora\u00e7\u00e3o bater; dos borborigmos, das v\u00edsceras se rebulindo por dentro. N\u00e3o se sentia mais. No entanto, um paradoxo, n\u00e3o queria arranjar explica\u00e7\u00e3o; distra\u00eda-se, num desligar constante, com medo de enfrentar a incerteza e, por conseguinte, a dor. Na verdade, n\u00e3o queria passar dias e dias ruminando o que lhe teria ocorrido, em que momento se perdera, para ser um sujeito ap\u00e1tico assim.<\/p>\n
Na inf\u00e2ncia, por exemplo, encantava-se com a beleza das flores, dos p\u00e1ssaros \u2013 e como amava flores e p\u00e1ssaros, os benditos seres irm\u00e3os. Tinha, inclusive, um de estima\u00e7\u00e3o, o Muri\u00e7oca, de t\u00e3o pequenino que era; vinha, no fim de tarde, pedir a ben\u00e7\u00e3o, chafurdar e bebericar uma mistura de \u00e1gua, p\u00e3o e massa de milho, que dona Luzia preparava. Via muita formosura nisso. Enternecia-se, com o olhar contemplativo e compassivo; e vagueava, de modo proposital \u2013 e felizmente perdido. Fosse o que fosse, e se penitenciava por isso, hoje n\u00e3o era tocado mais por nada. Tinha d\u00favida de sua exist\u00eancia, se era miragem num vasto deserto, quanto mais de Deus\u2026 Como um boi fuj\u00e3o, tocava na dire\u00e7\u00e3o de sabe-se l\u00e1 o qu\u00ea, com mais um bocado de obriga\u00e7\u00f5es que lhe pusessem nas costas, e ia.<\/p>\n
\u201cGanha o rumo do vento!\u201d. Essa era a determina\u00e7\u00e3o de seu pai, Licurgo; homem constrito, abatido, relapso de tudo. Falava e, com a boca cheia de b\u00edlis, respingava c\u00f3lera, desola\u00e7\u00e3o. O intuito prec\u00edpuo era ver o filho longe, fora de suas vistas, porque n\u00e3o teria de dividir o p\u00e3o, a casa e os parcos haveres. Mandava tomar o rumo do vento, quando, quase sempre, se aborrecia. Mandava tamb\u00e9m como conselho, descarrego; e o fazia nos m\u00edseros momentos de concilia\u00e7\u00e3o. Tentava domar a falta de tino de Eleut\u00e9rio, achava. \u201cToma tento, menino!\u201d. \u201cDeixa de frescura, avia!\u201d. Sem ver nem para qu\u00ea, dizia o que queria, a muque, e cortava a conversa com uma lapada nas costas, um \u201cvai-te embora, cabra!\u201d, de revirar o c\u00e9rebro.<\/p>\n
Eleut\u00e9rio, coitado, insistia em manter contato com o pai, que nunca lhe dera aten\u00e7\u00e3o. Achava-se, al\u00e9m de tudo, s\u00f3 no mundo, porque a av\u00f3, dona Luzia, j\u00e1 tinha dias pr\u00f3ximos para morrer, supunha. Com isso, mais um abandono, n\u00e3o teria a quem recorrer. Pensava que pensava racionalmente, mas isso, em si, era algum sentimento, e n\u00e3o compreendia.<\/p>\n
Tendo se apropriado de tal solid\u00e3o, por todos os infort\u00fanios de que desconfiava viver, entregara-se ao porvir. J\u00e1 n\u00e3o se alimentava que prestasse; o de-comer dependia de uma incomum coragem ou do suporte da av\u00f3. Morava com a av\u00f3, mas era como se morasse em outro bairro, ou mesmo outra cidade, de t\u00e3o dif\u00edcil o encontro. Pesava sobre as retinas de dona Luzia, sobre seus ombros cansados, a busca por alguma solu\u00e7\u00e3o.<\/p>\n
H\u00e1 meses Luzia n\u00e3o dormia, planejando conter o roj\u00e3o. Passou, ent\u00e3o, a montar uma casamata logo \u00e0 frente do quarto do neto. Velava seu isolamento, com o amor a se inserir, ali, por osmose \u2013 impressionava-se com a ideia de transpor essa for\u00e7a vital. Espalhava plantas e flores pela casa, at\u00e9 a rua; imprimia um caminho de luz. Arejou e p\u00f4s cor no que antes era \u00e1rido. Aos poucos, Eleut\u00e9rio frequentava o seu lar. Ia do quarto para a cozinha, da cozinha para a sala; e, se achegando, sem intermit\u00eancias ou press\u00f5es, reconquistava as min\u00facias do lugar.<\/p>\n
Um dia, como se despertasse do marasmo, reparou que um beija-flor havia entrado em casa e estava, a cerca de um metro, sorvendo o n\u00e9ctar da flor. Bailava no vento, suspenso. Brincava, serelepe, em acrobacias. Quedou-se sereno, com o ir e vir do beija-flor; uma infinidade a seu favor. Lembrou-se do Muri\u00e7oca; mas mais parecia um exuberante cavalo alado, vigoroso, imponente, conduzindo o tempo; um ser de luz, muito al\u00e9m do que pudesse conjecturar. Intuiu, de imediato, o que havia desprezado, a singeleza e a imensid\u00e3o. Foi \u00e0 cozinha; passos firmes, decididos. P\u00f4s o p\u00f3 do caf\u00e9 no filtro, depois na chaleira. Esperou apaixonado. Sorriu. Refletiu que talvez pudesse, agora, tomar as r\u00e9deas do imponder\u00e1vel; a gl\u00f3ria e o tempo.<\/p>\n
\/\/\/<\/p>\n
Adriano B. Esp\u00edndola Santos \u00e9 natural de Fortaleza, Cear\u00e1. Autor do livro <\/em>Flor no caos, pela Desconcertos Editora, 2018. Advogado humanista. Mestre em Direito. \u00c9 dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o cora\u00e7\u00e3o inquieto<\/em>.<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"\u201cSer\u00e1 que todos os dias s\u00e3o ocos?\u201d. Essa era a pergunta que Eleut\u00e9rio fazia, repetidas vezes. A sensa\u00e7\u00e3o, o vazio no peito, a seu ju\u00edzo, se alastrara, a ponto de sentir falta de o cora\u00e7\u00e3o bater; dos borborigmos, das v\u00edsceras se rebulindo por dentro. N\u00e3o se sentia mais. No entanto, um paradoxo, n\u00e3o queria arranjar […]<\/p>\n","protected":false},"author":27,"featured_media":5958,"comment_status":"open","ping_status":"open","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"_mi_skip_tracking":false,"_monsterinsights_sitenote_active":false,"_monsterinsights_sitenote_note":"","_monsterinsights_sitenote_category":0,"footnotes":""},"categories":[21],"tags":[],"yoast_head":"\n
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