(Ilustra\u00e7\u00e3o: Lara Albuquerque)<\/figcaption><\/figure>\nSabrina tem o olhar de (des)afiar o ju\u00edzo. Desbaratina os sentidos. Falo de ati\u00e7ar os selvagens e aquietar as civilidades. \u00c9 mulher faceira em quem n\u00e3o se pode crer. Crer naquela menina pouca, que mal se sustentava nos palitinhos de pernas, subindo e descendo a rua, como se n\u00e3o houvesse amanh\u00e3. Eu n\u00e3o dava a m\u00ednima; com treze para quatorze anos, e ela com onze \u2013 uma diferen\u00e7a abissal, quando se \u00e9 pequeno \u2013, estava desautorizado, pelo chefe do grupo, a perder tempo com meninices. Queria ser aceito pelo bando exigente. Muitas vezes passava ao largo, a sibite baleada, com a excentricidade e com o poder de ser o que se quer \u2013 nisso eu a invejava.<\/span><\/p>\nEstud\u00e1vamos na Escola Estadual Rachel de Queiroz. Ela, no t\u00e9rreo; eu, no primeiro andar \u2013 porque os mais novos, afoitos, quando tocava o sino do recreio, sa\u00edam desembestados, e certamente o diretor quis, assim, evitar o choque e a confus\u00e3o. N\u00f3s, os maiores da s\u00e9tima, lev\u00e1vamos um bom tempo para arquitetar os deboches ao professor Pipi, \u00e0 coordenadora Margarida, \u00e0 Socorro da enfermaria \u2013 v\u00ea s\u00f3 a maldade, a Socorro, a santa Socorro, que comprava do pr\u00f3prio bolso gazes, talas, curativos, comprimidos, emplastros, pomadas, etc., etc., etc., e cuidava de n\u00f3s com um amor maternal.<\/span><\/p>\nNum desses trambiques, prendemos a Socorro no banheiro do p\u00e1tio. Disseram que estava com disenteria, de tanto ir e vir, no dia. Com a farra da molecada, correndo e gritando, n\u00e3o se ouviam os apelos da Socorro, que gritava: \u201cSocorro, socorro, me acudam!\u201d. Eu ri, confesso, porque achei inusitado, mas apertou o cora\u00e7\u00e3o \u2013 for\u00e7ava costume de ser \u201csujeito homem\u201d, em v\u00e3o. Havia um posto de controle blindando o local, cinco ou seis meninos. Resolvi sair, dar uma volta no outro gin\u00e1sio; queria espairecer, livrar minha consci\u00eancia. Foi quando presenciei, do alto do p\u00e9 de manga rosa, a mi\u00fada da Sabrina estabacar-se no ch\u00e3o. Veio forte feito as mangas gordas que ca\u00edam de l\u00e1, destruidoras. Sabrina permaneceu, por talvez um minuto \u2013 que parecia uma eternidade \u2013, desacordada. Desesperei-me com o fato ins\u00f3lito.<\/span><\/p>\nO dia n\u00e3o estava bom para deboches e afins. Peguei-a pelos bra\u00e7os e lembrei da enfermaria: precisava urgentemente da Socorro. Bati \u00e0 porta, e nada. Bati com mais for\u00e7a, e seu Lino, o faz-tudo, falou que n\u00e3o a via h\u00e1 horas, achava que teria sa\u00eddo. Com Sabrina atada ao colo, suando frio, conferi que n\u00e3o havia mais vigias na porta do banheiro. O sino havia tocado pouco antes, alertou-me Lino. Pronunciei, com a l\u00edngua embolada \u2013 insistente e nervoso \u2013, que Socorro estava no banheiro, trancada. Lino correu para pegar uma chave reserva e conseguiu abrir a tempo. Socorro estava ca\u00edda. Duas prostradas.<\/span><\/p>\nDesabei no choro, me senti culpado de tudo, \u201cuma besta fera insens\u00edvel\u201d, remo\u00eda em minha cabe\u00e7a. Lino perguntou o que teria acontecido, o porqu\u00ea do meu choro, ent\u00e3o me derramei: \u201cFui eu, Lino, fui eu que tranquei a Socorro a\u00ed! Fui eu!\u201d. O diretor Dem\u00f3stenes chegou no mesmo instante e tentou acudir Socorro. Lino tamb\u00e9m. Primeiro deixei Sabrina na enfermaria, dando sinais de recobrar a consci\u00eancia, para vir salvar Socorro, rec\u00e9m-sa\u00edda de uma cirurgia de redu\u00e7\u00e3o de est\u00f4mago.<\/span><\/p>\nN\u00e3o demorou muito e, na escola, entrava a ambul\u00e2ncia, com a aguda sirene avisando da urg\u00eancia do caso. Socorro, como disse o diretor: \u201cEst\u00e1 entre a vida e a morte! Reze por ela, rapazinho, reze por ela!\u201d, e depositava um olhar pesado sobre mim, ressaltando a minha imensa culpa. Enquanto chorava, pegava nas m\u00e3os frias de Sabrina, que me olhava sem entender nada. Somente chorava. Sabrina, logo depois, foi levada por seus pais, em choque.<\/span><\/p>\nFui expulso da Escola Estadual Rachel de Queiroz, que tanto amava. Vi-me desolado, sem ch\u00e3o. Por longos meses fiquei sem not\u00edcias da Socorro, da Sabrina e do mundo. M\u00e3e me contou que Socorro estava internada, em estado delicado \u2013 por minha culpa! Foi o gatilho para a depress\u00e3o. Passei a ser o enfermo. Sabrina saiu do col\u00e9gio e das nossas vistas. Era do interior e voltou para a sua terra, em Mauriti. Tinha vindo para estudar e eu, ca\u00f3tico, doente, pensei repetidas vezes, \u201cperturbei seu destino\u201d. Considerei-me, por muito tempo, ser um babaca por assumir sozinho a culpa; penitenciei-me, desdenhei de mim, da minha coragem, da minha for\u00e7a e da capacidade de decis\u00e3o sobre as coisas. Tornei-me uma ilha vazia. Naquele instante, no fat\u00eddico instante, n\u00e3o tive coragem de delatar. Os pilantras s\u00e3o hoje seres perigos\u00edssimos: assaltante, estelionat\u00e1rio, homicida, traficante, etc., etc., etc.<\/span><\/p>\nDepois de seis anos ruminando na mente e na boca do povo, comendo o p\u00e3o que o diabo amassou (\u201co pirralho do c\u00e3o!\u201d), voltei aos estudos, bem longe do bairro, para n\u00e3o ser reconhecido. M\u00e3e, chorosa, dizia que a culpa n\u00e3o era minha e que eu tinha tudo para ser algu\u00e9m na vida. Acreditei. H\u00e1 cinco anos formado em Agronomia, caio em campo, cedo do dia, para recuperar o olhar de tanta gente esquecida nos cafund\u00f3s do sert\u00e3o. Redimo meu corpo com a gratid\u00e3o do povo. Numa dessas andan\u00e7as, encontrei Sabrina, por acaso. J\u00e1 n\u00e3o morava em Mauriti, mas em Limoeiro, na casa da av\u00f3 doente. Pegou-me pelo bra\u00e7o e disse: \u201cMo\u00e7o, sou eu, Sabrina, lembra de mim?!\u201d, com tanto entusiasmo que n\u00e3o carecia de perd\u00e3o. Agora, por sorte, andamos juntos, de m\u00e3os dadas, para refazer o caminho desperdi\u00e7ado. Da minha pequena, de pele dourada, da manga rosa, quero o gosto e o sumo, eternos. O poeta tra\u00e7ou nosso destino.<\/span><\/p>\n\/\/\/<\/p>\n
Adriano B. Esp\u00edndola Santos \u00e9\u00a0de Fortaleza, Cear\u00e1. Autor do livro <\/span><\/em>Flor no caos<\/span>, pela Desconcertos Editora, 2018. Advogado humanista. Mestre em Direito. \u00c9 dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o cora\u00e7\u00e3o inquieto.<\/span><\/em><\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"Sabrina tem o olhar de (des)afiar o ju\u00edzo. Desbaratina os sentidos. Falo de ati\u00e7ar os selvagens e aquietar as civilidades. \u00c9 mulher faceira em quem n\u00e3o se pode crer. Crer naquela menina pouca, que mal se sustentava nos palitinhos de pernas, subindo e descendo a rua, como se n\u00e3o houvesse amanh\u00e3. Eu n\u00e3o dava a […]<\/p>\n","protected":false},"author":27,"featured_media":5746,"comment_status":"open","ping_status":"open","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"_mi_skip_tracking":false,"_monsterinsights_sitenote_active":false,"_monsterinsights_sitenote_note":"","_monsterinsights_sitenote_category":0,"footnotes":""},"categories":[21],"tags":[],"yoast_head":"\n
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