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{"id":3694,"date":"2016-12-08T10:00:57","date_gmt":"2016-12-08T13:00:57","guid":{"rendered":"http:\/\/revistaberro.com\/?p=3694"},"modified":"2016-12-05T10:11:56","modified_gmt":"2016-12-05T13:11:56","slug":"um-curta-metragem-de-furia-em-primeira-pessoa","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/revistaberro.com\/literatura\/conto\/um-curta-metragem-de-furia-em-primeira-pessoa\/","title":{"rendered":"Um curta-metragem de f\u00faria em primeira pessoa"},"content":{"rendered":"

(Pintura:\u00a0Regina Parra<\/em>)<\/p>\n

Por<\/em> Rodrigo Novaes de Almeida<\/em><\/strong><\/p>\n

“Say what again! I dare you! I double dare you, motherfucker!”<\/em><\/p>\n

[Diga isso de novo! Eu te desafio! Eu te duplo desafio, seu filho da puta!]<\/p>\n

(Pulp Fiction<\/em>, de Quentin Tarantino, EUA, 1994)<\/p>\n

 <\/p>\n

Cap\u00edtulo 1 \u2014 A blitzkrieg<\/strong><\/p>\n

Eu era uma crian\u00e7a que desejava crescer logo, odiava n\u00e3o ser levado a s\u00e9rio pelos adultos. Eu enxergava o desd\u00e9m nos seus olhos. Tinha vontade de matar todos eles. O sentimento mudou um pouco aos doze anos, quando ganhei de dia da crian\u00e7a minha primeira arma de fogo. A pistola era maior do que o meu antebra\u00e7o. N\u00e3o sei o motivo de lembrar disso agora. Estou escondido nesse quarto, faz um calor filho da puta, o ar abafado, escuto os caras l\u00e1 fora me ca\u00e7ando. Roubei um t\u00e1xi, o desgra\u00e7ado do taxista tentou pegar alguma coisa debaixo do banco, dei uma coronhada na cabe\u00e7a dele e arranquei ele do carro. Gritava “meu tresoit\u00e3o! meu tresoit\u00e3o!” Enfiei a m\u00e3o debaixo do banco e o berro estava l\u00e1. Ot\u00e1rio. Perdeu, alem\u00e3o. S\u00f3 que duzentos metros \u00e0 frente a rua estava interditada por tr\u00eas viaturas. Larguei o carro na pista e corri. N\u00e3o conhe\u00e7o a regi\u00e3o. Nem sei o nome do bairro. Lugar fodido de gente fodida. Ruas praticamente desertas. Cruzei com quatro desgra\u00e7ados, queriam dinheiro. Dei um tiro na cabe\u00e7a de cada um. P\u00e1, p\u00e1, p\u00e1, p\u00e1. Peguei a grana deles, umas notas de duzentos vermelhas que nunca vi. Depois entrei numa ca\u00e7amba de caminh\u00e3o. Ele parou nalgum lugar, desci, entrei num pr\u00e9dio, atravessei um p\u00e1tio, esp\u00e9cie de jardim interno, sa\u00ed noutra rua deserta, foi quando peguei o t\u00e1xi, quero dizer, roubei. Agora me acharam, quebraram os vidros das janelas, a fuma\u00e7a \u00e9 pra sufocar e meus olhos ardem pra caralho. N\u00e3o enxergo mais porra nenhuma. Liguei um foda-se e estou dando tiro no erro pra ver se levo alguns comigo. Perdi pra blitzkrieg<\/em> desses filhos da puta de farda. J\u00e1 era.<\/p>\n

Cap\u00edtulo 2 \u2014 A goteira<\/strong><\/p>\n

Acordei de madrugada com o barulho de goteira no banheiro. O ralo do apartamento de cima entupiu de novo. O merdinha do s\u00edndico n\u00e3o faz porra nenhuma, o zelador \u00e9 um filho da puta que finge trabalhar, est\u00e1 sempre na portaria conversando com a mo\u00e7a da limpeza. Os dois devem foder escondidos na escada do pr\u00e9dio. Perdi o sono. Peguei a garrafa de Red Label, tomei um trago e fui limpar a Beretta. Removi o carregador e coloquei ele sobre a mesa de jantar. Esvaziei a c\u00e2mara e puxei o ferrolho pra tr\u00e1s. A goteira continuava l\u00e1 no banheiro. Caralho. Liguei o laptop e deixei tocando umas m\u00fasicas do Leonard Cohen no Youtube. Acionei pra baixo as travas laterais da arma, depois separei o ferrolho da arma\u00e7\u00e3o, pressionei pra frente a mola e a guia de mola e retirei o cano. Aquela tarefa e a m\u00fasica me acalmaram um pouco. N\u00e3o tive pressa de terminar a limpeza. Por fim, a arma montada novamente, usei uma flanela pra remover o excesso de \u00f3leo. Cuido bem dela. Coloquei mais uma dose de u\u00edsque, peguei o computador e fui pro sof\u00e1. Abri outra janela do navegador da internet. Xv\u00eddeos. Nada de novinha ou velha demais. Bati pra uma chupada atr\u00e1s de uma \u00e1rvore em um parque. Banal. Era um v\u00eddeo tosco feito com celular. Coloquei o laptop de lado e liguei a tev\u00ea. O barulho da goteira me incomodava e me deixava mais puto com os merdas do condom\u00ednio. Pensei no cara que apaguei semana passada. Era s\u00f3 um rosto. \u00c9 s\u00f3 um rosto sempre. N\u00e3o quero saber nem o nome do sujeito, se tem fam\u00edlia, se \u00e9 bicha, motivos de encomendar sua morte nem pensar. Foda-se. Recebo os vinte mil e passar bem. S\u00f3 um taxista desgra\u00e7ado que apaguei na raiva por causa de tr\u00eas pratas. Eu n\u00e3o estava num bom dia. Agora espero clarear pra tocar l\u00e1 no apartamento do s\u00edndico.<\/p>\n

Cap\u00edtulo 3 \u2014 O tresoit\u00e3o<\/strong><\/p>\n

Era feriado de Natal e eu viajava com mulher e filha pequena. Foram seis horas suando frio dentro do \u00f4nibus, nervoso pra caralho. Ainda por cima, a patroa tinha que comentar antes de embarcarmos, ao ver um inspetor de pol\u00edcia, que passou por revista uma vez naquela mesma rodavi\u00e1ria, que se zangou por terem aberto sua mala e visto suas calcinhas, “algumas j\u00e1 bastante velhas” \u2014 ralhou ela \u2014, “o que encontrariam ali?”, “armas, drogas?”, “nem bebo, um saco, viu!” E assim fiquei nervoso, nervoso pra caralho, me esfor\u00e7ando pra que ela n\u00e3o percebesse, e comecei a andar prum lado e pro outro, vendo se algum \u00f4nibus estava prestes a ser revistado por algum inspetor de pol\u00edcia. Tenho carro, \u00e9 um t\u00e1xi, e n\u00e3o pego estrada com ele. Aproveitei pra deixar na revis\u00e3o. Melhor assim, pensei. Ent\u00e3o embrulhei como se fosse pra presente o livro falso que servia de cofre com o tresoit\u00e3o do meu pai dentro, e guardei tudo numa mala com muitos presentes. Desejava aquele bicho preto fosco desde garoto. Aos doze ou treze anos descobri por acaso uma chave que abria a gaveta da escrivaninha do velho. A arma ficava l\u00e1 e a chave passou a ser um segredinho meu naqueles nem t\u00e3o inocentes anos. E agora que ele tinha morrido o tresoit\u00e3o era finalmente meu. Mam\u00e3e, concentrada em seu luto, nem soube de nada e, se soubesse \u2014 ou sentisse falta daquele rev\u00f3lver que nunca gostou que o meu pai mantivesse em sua casa \u2014, certamente sentiria al\u00edvio por eu ter tirado ele de l\u00e1. Era um tresoit\u00e3o antigo mas funcionava bem. Certa vez, sozinho em casa, eu tinha uns dezessete anos, coloquei m\u00fasica alta, televis\u00e3o berrando, fechei janelas e pow!, um cheiro de p\u00f3lvora do caralho no quarto. Fiquei de pau duro e, resultado, bati uma punheta. E este foi um Natal de merda, triste, o pai morto h\u00e1 duas semanas, a m\u00e3e sob efeito de medica\u00e7\u00e3o forte, os sobrinhos melequentos, filhos do meu irm\u00e3o, tocando o terror debaixo da mesa da ceia, um calor filho da puta e a comida estragando em cima da mesa, a tia gorda reclamando do governo, um primo o tempo inteiro tirando naco de comida de entre os dentes com o dedo, enfim, um Natal de merda e eu feliz pra cacete porque aquele tresoit\u00e3o antigo do meu pai agora era meu. No final das contas, correu tudo uma maravilha, sem revistas na rodovi\u00e1ria e nenhum imprevisto na estrada. Guardei o cofre camuflado de livro na parte de cima do meu arm\u00e1rio, sem a arma dentro. Ela est\u00e1 embaixo do meu assento no t\u00e1xi. Por via das d\u00favidas, sabe?<\/p>\n

Rodrigo Novaes de Almeida<\/strong> nasceu no Rio de Janeiro, em 1976, e vive em S\u00e3o Paulo. \u00c9 escritor e jornalista. Autor de Raps\u00f3dias \u2014 Primeiras hist\u00f3rias breves<\/strong><\/em> (contos, 2009), A saga de Lucifere<\/strong><\/em> (novela, 2009), Carnebruta<\/strong><\/em> (contos, 2012) e A constru\u00e7\u00e3o da paisagem<\/strong><\/em> (cr\u00f4nicas, 2012).<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

(Pintura:\u00a0Regina Parra) Por Rodrigo Novaes de Almeida “Say what again! I dare you! I double dare you, motherfucker!” [Diga isso de novo! Eu te desafio! 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