Joana B\u00ea<\/strong><\/em><\/p>\nDeitada no escuro, Ana fazia pequenos balan\u00e7os das pequenas decis\u00f5es do dia. Desde muito cedo \u2013 e como a maioria das pessoas \u2013 escutava sua fam\u00edlia (em especial sua madrinha) dizer que nossas escolhas nos definem. Nesse exato momento, Ana tenta entender como ter tomado ch\u00e1 ou como n\u00e3o ter atendido aquele telefonema a definia. Quase sorria displicente, mas o que pensava n\u00e3o tinha tanta for\u00e7a para mexer tantos m\u00fasculos faciais. Era s\u00f3 uma sombra de desd\u00e9m.<\/p>\n
Nesse movimento de retroceder ao dia, mexendo no celular onde se lia \u201c2 chamadas n\u00e3o atendidas\u201d, Ana pensava nas pequenas decis\u00f5es, nas \u201cgrandes e poderosas escolhas\u201d da vida. Escolheu limpar a mensagem do visor.<\/p>\n
Mexeu um pouco mais no celular. Correndo os dedos por entre os n\u00fameros, desenhou uma seq\u00fc\u00eancia quase que autom\u00e1tica. A mem\u00f3ria de um n\u00famero antigo correu rapidinho nas teclas e uma nova combina\u00e7\u00e3o aparecia no visor \u2013 uma combina\u00e7\u00e3o que ela nem tinha mais na agenda.<\/p>\n
Ana pensou se ainda seria esse o n\u00famero. Talvez fosse, mas o certo \u00e9 que n\u00e3o importava muito se era ou n\u00e3o. Mesmo que a voz do outro lado continuasse a soar como antes, n\u00e3o havia mais palavras que se encaixassem. Apagou os n\u00fameros tranquilamente, se mexeu um pouco no escuro, se levantou para ir ao banheiro e ao mijar, com sua calcinha lil\u00e1s com branco no meio das canelas, pensou em algo meio inc\u00f4modo.<\/p>\n
Voltou um pouco apressada para o escuro, subiu na cama, criou um raio de luz apertando novamente as teclas do seu celular fajuto e discou. Talvez ainda fosse o mesmo.<\/p>\n
Chama, chama, chama, chama, chama, chama, \u201cal\u00f4\u201d.<\/p>\n
Ana prende a respira\u00e7\u00e3o. Ainda era o mesmo n\u00famero. Naquela hora, Ana mergulha no imenso buraco onde ecoava os conselhos da madrinha, um buraco que se abria como um po\u00e7o abaixo dela, escuro e \u00famido. Finalmente, e n\u00e3o mais quase-sorrindo, Ana entendeu. N\u00e3o era simplesmente a escolha do ch\u00e1 que era importante, n\u00e3o era a escolha de n\u00e3o atender a chamada do amigo, n\u00e3o era a escolha de ir ao parque na quarta que a definia. O que a definia em boa parte era o caf\u00e9 que ela n\u00e3o tomou por conta do ch\u00e1, a festinha que deixar\u00e1 de ir por causa da liga\u00e7\u00e3o perdida e, principalmente, era aquela voz no telefone que continuava a atender no mesmo n\u00famero que a definia.<\/p>\n
Compreendeu que, muito possivelmente, era a soma de todas as coisas que n\u00e3o foi e de todas as pessoas deixadas pra tr\u00e1s que a definia. As perdas a faziam ser Ana que deitava no escuro e levantava a ponta dos p\u00e9s ao estar sentada na privada. Ana era o digitar de um n\u00famero perdido na lembran\u00e7a, esquecido ap\u00f3s tantas pequenas escolhas feitas. Ana era certo desd\u00e9m, certo quase-sorriso.<\/p>\n
Aquela voz do outro lado da linha era Ana.<\/p>\n
\u201cAl\u00f4\u201d, ele continuava. \u201cQuem \u00e9?\u201d<\/p>\n
Ana tentava recordar quanta coisa havia deixado pra tr\u00e1s, quanta gente perdida no tempo e no espa\u00e7o… \u201cQuem ocupou o lugar de fulano?! Por qu\u00ea?! Quando comecei a pensar que n\u00e3o existia canto na minha vida pra todo mundo que me cruza?!\u201d, pensava de forma acelerada e se gostando menos a cada segundo que corria.<\/p>\n
\u201cAl\u00f4! Quem \u00e9?!\u201d<\/p>\n
Ana n\u00e3o sabia responder.<\/p>\n
Escolheu o n\u00e3o-sorrir.<\/p>\n
Joana B\u00ea \u00e9 historiadora, acredita em luta de classes, mas n\u00e3o acha astrologia besteira<\/strong><\/em><\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"Joana B\u00ea Deitada no escuro, Ana fazia pequenos balan\u00e7os das pequenas decis\u00f5es do dia. Desde muito cedo \u2013 e como a maioria das pessoas \u2013 escutava sua fam\u00edlia (em especial sua madrinha) dizer que nossas escolhas nos definem. Nesse exato momento, Ana tenta entender como ter tomado ch\u00e1 ou como n\u00e3o ter atendido aquele telefonema […]<\/p>\n","protected":false},"author":3,"featured_media":351,"comment_status":"open","ping_status":"open","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"_mi_skip_tracking":false,"_monsterinsights_sitenote_active":false,"_monsterinsights_sitenote_note":"","_monsterinsights_sitenote_category":0,"footnotes":""},"categories":[21],"tags":[],"yoast_head":"\n
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