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{"id":3420,"date":"2016-08-25T10:41:39","date_gmt":"2016-08-25T13:41:39","guid":{"rendered":"http:\/\/revistaberro.com\/?p=3420"},"modified":"2016-08-23T15:59:27","modified_gmt":"2016-08-23T18:59:27","slug":"o-fuxico","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/revistaberro.com\/literatura\/o-fuxico\/","title":{"rendered":"O fuxico"},"content":{"rendered":"

(Des\u00eain: Ramon Sales<\/em>)<\/p>\n

Por <\/em>Augusto Azevedo<\/strong><\/p>\n

– Sabe rezar?<\/p>\n

Naquelas circunst\u00e2ncias esse era o \u00fanico questionamento que o defensor conseguia fazer. Tudo tinha ido longe demais e por mais que aquele renomado advogado n\u00e3o estivesse ali na condi\u00e7\u00e3o de favor, pois estava sendo pago e assessorado por companheirxs do acusado e ativistas envolvidos no caso, a defesa estava sendo inviabilizada pela aberta persegui\u00e7\u00e3o que seu cliente sofria.<\/p>\n

– Fica frio, doutor, voc\u00ea j\u00e1 fez tudo que p\u00f4de – falou o acusado, estranhamente conformado com a situa\u00e7\u00e3o, fazendo recomenda\u00e7\u00f5es referentes \u00e0s a\u00e7\u00f5es em prol da sua liberdade, mas expressou acima de tudo gratid\u00e3o, pelo que estava sendo feito por ele, e preocupa\u00e7\u00e3o, pois sabia que n\u00e3o era s\u00f3 a sua vida que tinha se tornado um inferno a partir do seu processo de incrimina\u00e7\u00e3o e pris\u00e3o.<\/p>\n

Quando um dos melhores advogados criminalistas da regi\u00e3o pede para seu cliente rezar, sabendo que uma injusta condena\u00e7\u00e3o ocorreria \u00e9 porque o neg\u00f3cio tinha ficado irrevers\u00edvel. N\u00e3o era s\u00f3 aquele jovem, estudante, trabalhador, r\u00e9u prim\u00e1rio, arrimo de fam\u00edlia, menor de vinte e um anos, que estava sendo condenado, era todo um posicionamento social. A diverg\u00eancia estrutural ligada \u00e0 perman\u00eancia ou ao fim do Estado parecia se esmagar naquela situa\u00e7\u00e3o, onde o Estado existia e estava condenando um inocente, como milhares de inocentes s\u00e3o condenados ao encarceramento, mas naquele caso era um verdadeiro cala-boca, uma demonstra\u00e7\u00e3o de despropor\u00e7\u00e3o de for\u00e7a das inst\u00e2ncias repressivas em detrimento aos movimentos sociais, que al\u00e9m de perdidos na aus\u00eancia de horizonte pol\u00edtico, imerso \u00e0 dissimula\u00e7\u00e3o burocr\u00e1tica, n\u00e3o faziam outra coisa a n\u00e3o ser reagir \u00e0s iniciativas que conduziam ao seu exterm\u00ednio. Muita coisa foi feita para a liberdade do rapaz, no entanto at\u00e9 pra libertar um preso pol\u00edtico o ego dxs envolvidxs e o interesse institucional fortaleciam a penaliza\u00e7\u00e3o do acusado. Uma sociedade estruturada na bandidagem n\u00e3o pouparia esfor\u00e7o para punir o pior bandido j\u00e1 criado nos \u00faltimos anos.<\/p>\n

O simplismo impregnado nas leituras pol\u00edticas n\u00e3o permitia que situa\u00e7\u00f5es expl\u00edcitas de persegui\u00e7\u00f5es ideol\u00f3gicas fossem apreciadas e respondidas de modo s\u00e9rio, consequente. Na real, o apre\u00e7o pela vaidade e o compromisso com a pr\u00f3pria conta banc\u00e1ria tornavam s\u00e1dicos euf\u00f3ricos e progressistas ambiciosos na mesma coisa, independente do ponto de vista, dos mitos coordenativos, da cor da camisa ou da bandeira, ambos defendiam arrega\u00e7adamente o mesmo projeto, a mesma sociabilidade.<\/p>\n

A personifica\u00e7\u00e3o da luta projetou a ascens\u00e3o de muitos oportunistas, desencadeou embates, rachas; fortaleceu monstros, consagrou med\u00edocres, tornou a demagogia categoria do exerc\u00edcio pol\u00edtico. As alternativas pol\u00edticas arrojadas, nutridas pela valoriza\u00e7\u00e3o da autonomia e das diferen\u00e7as eram convertidas em amea\u00e7a terrorista e aquelxs que camuflavam suas identidades eram personificadxs naquilo que h\u00e1 de pior, de mal, de ruim, de amea\u00e7ador, de apavorantemente desestabilizador. A nega\u00e7\u00e3o da identidade e da autoria apresentava caminhos outros de confronto, por\u00e9m um jovem estava preso, sendo injustamente acusado pela Justi\u00e7a; esta se desapegava da conhecida morosidade, se mostrando valente para impedir que o meio social por ela representado fosse contaminado com exemplos al\u00e9m do que estava programaticamente estabelecido.<\/p>\n

Diferente de outras ocasi\u00f5es, o Judas escolhido pra ser malhado n\u00e3o teve apenas as vaciladas e insucessos da vida particular expostos, al\u00e9m da execra\u00e7\u00e3o p\u00fablica que destinava o sujeito a um isolamento social sem o menor direito de se retratar, se defender, se explicar. Era prevista uma fatal condena\u00e7\u00e3o por tentativa de homic\u00eddio, respaldada por uma confiss\u00e3o forjada a partir do potencial de uma sala escura, abafada e fedorenta, com incessantes sess\u00f5es de choques el\u00e9tricos, coronhadas, golpes de palmat\u00f3ria, pimba de boi, em todas as partes do corpo que a anatomia j\u00e1 p\u00f4de especular… e perguntas.<\/p>\n

O oficial da pol\u00edcia militar que sofrera a tentativa de homic\u00eddio finalmente conseguia falar; seu maxilar ainda estava inflamado, longe de permitir que ele pronunciasse as palavras com nitidez, por\u00e9m, ainda com a boca cheia de pinos e com ajuda de familiares e amigos gravou e postou um v\u00eddeo na internet, agradecendo as preces de melhoras e os apelos de justi\u00e7a. Nas pr\u00f3ximas elei\u00e7\u00f5es, com apoio de tr\u00eas ou quatro comerciantes e alguma considera\u00e7\u00e3o do pessoal do batalh\u00e3o vai dar para ser eleito vereador. Nenhum colega milico, assim como nenhum apresentador de programa policial, estava com a visibilidade do oficial, que antes de poder falar, ainda internado no hospital militar, colaborou de modo veemente para a pris\u00e3o de seu(s) algoz(es), utilizando caneta esferogr\u00e1fica e bloco de notas.<\/p>\n

Tirando algumas express\u00f5es de resist\u00eancia, org\u00e2nicas ou n\u00e3o, o modo como a sociedade em geral se relaciona com uma autoridade reflete o atraso da humanidade, que transbordando de vaidade e subservi\u00eancia louva o que se imp\u00f5e como superior. Viol\u00eancia policial sempre ocorreu de modo intenso nas grandes cidades do pa\u00eds, o Esquadr\u00e3o da Morte fez escola, influenciando tudo que era jagun\u00e7o, meganha matador, miliciano – e de uns tempos pra c\u00e1 a viol\u00eancia promovida por esses agentes do Estado s\u00f3 se alastrou; mas quando um policial \u00e9 assassinado, mesmo por um colega de farda, como acontece muitas vezes, o terror \u00e9 instaurado e a movimenta\u00e7\u00e3o s\u00f3 se cessar\u00e1 quando o n\u00famero de mortes for convenientemente suficiente. Inobstante, para pessoas que cobram moral indiferente a qualquer raz\u00e3o, qualquer ato de equil\u00edbrio, sensatez, muito pior do que executar um agente policial era expor sua fragilidade, seu lado indefeso de ser humano.<\/p>\n

– Antes tivessem matado! Fazer isso com o major; acabaram com a vida dele – diziam.<\/p>\n

O oficial, s\u00edmbolo da corpora\u00e7\u00e3o, articulado com o governador, assim como com outros companheiros de oficialato e seus subordinados n\u00e3o envolvidos com maracutaias, tinha sofrido violento atentado na praia da Tabuba (onde habitualmente ia em suas folgas), em um fim de tarde, quando sa\u00eda do mar ap\u00f3s uma sess\u00e3o de kitesurf<\/em>. Seus malfeitores utilizaram a pipa do pr\u00f3prio equipamento n\u00e1utico para encobrir a cabe\u00e7a do oficial e deix\u00e1-lo sem as m\u00ednimas condi\u00e7\u00f5es de rea\u00e7\u00e3o. Ap\u00f3s a surra, bordoadas e areia enfiada em sua garganta e olhos, foi colocado dentro de uma caminhonete 4 x 4, levado a uma rua vazia daquelas bandas e teve dizeres como: porco, gamb\u00e9, vingan\u00e7a, al\u00e9m de diversas letras \u201ca\u201d dentro de circunfer\u00eancias escritos em seu t\u00f3rax, abdome, costas; o que apontava que a a\u00e7\u00e3o tinha sido premeditada e executada com suma frieza. Tiveram que convocar um perito em grafismos para identificar atrav\u00e9s de fotos as palavras escritas no corpo do major em letras garrafais. O destemido oficial, mesmo com corpo dominado pelo acocho da pisa, persistia em se contorcer, dificultando a efetua\u00e7\u00e3o do que tentou ser escrito em sua pr\u00f3pria pele, mas a miss\u00e3o de registrar o horror j\u00e1 tinha sido cumprida e, bem antes da convoca\u00e7\u00e3o do perito em grafismos, tudo que era grupo de apologia \u00e0 viol\u00eancia policial do aplicativo de comunica\u00e7\u00e3o instant\u00e2nea mais utilizado j\u00e1 tinha recebido as imagens que insinuavam que as supostas amea\u00e7as \u00e0 honra da Pol\u00edcia Militar eram s\u00e9rias. Antes das emissoras de r\u00e1dio e televis\u00e3o e jornais denunciarem o crime, tudo que era de rede social j\u00e1 tinha disseminado o epis\u00f3dio e tudo que era de fascista, membros e bajuladores de inst\u00e2ncias de repress\u00e3o em geral se mostravam dispostos a responder \u00e0quele atentado contra a integridade de quem mantinha a ordem social. Enquanto os apresentadores de programas sensacionalistas gozavam de tanta euforia expondo o caso, os setores democr\u00e1ticos da sociedade apresentavam obscuramente sua incapacidade de encarar o embate e o quanto a apatia e o individualismo podem tornar partes distintas absurdamente semelhantes.<\/p>\n

O oficial que sofreu a viol\u00eancia, antes de se tornar s\u00edmbolo da persegui\u00e7\u00e3o de jovens pertencentes a coletivos anticapitalistas, era um verdadeiro empecilho nas tram\u00f3ias e trambiques da pr\u00f3pria corpora\u00e7\u00e3o, pegando no p\u00e9 de tudo que era policial corrupto, do meganha morta-fome que amea\u00e7ava pequenos comerciantes pra conseguir refei\u00e7\u00f5es sem pagar aos oficiais agraciados com propinas mensais para o acobertamento de presepadas lucrativas como tr\u00e1fico de armas e drogas; do samango bombado envolvido com gangueragem ao agente gra\u00fado, cabo eleitoral de parlamentar. Ningu\u00e9m passava ileso aos olhos do oficial metido e reparador. Ent\u00e3o o melhor a ser feito era dar trabalho para esse sujeito t\u00e3o aficionado por fazer a coisa certa. Entregar a ele xs vagabundxs baderneirxs parecia resolver o problema e ele n\u00e3o se acanhou de aceitar o cargo de desarticulador de movimentos sociais desgarrados de interesses institucionais. De fiscal de comportamento e conduta de PMs virou perseguidor de manifestantes, embora o \u00f3dio dos policiais que ele tanto importunou n\u00e3o tivesse evaporado.<\/p>\n

As desaven\u00e7as e trocas de acusa\u00e7\u00f5es na internet entre o lado de c\u00e1 e o lado de l\u00e1 ganharam maior notoriedade, sobretudo para o lado de l\u00e1, quando, duma hora para outra, apareceu comentando e respondendo postagens oficialmente a PM, como um inimagin\u00e1vel reacion\u00e1rio, defendendo seu lado sem amea\u00e7as, coa\u00e7\u00f5es ou constrangimentos… vis\u00edveis. O candidato ideal para controlar a democracia.<\/p>\n

Em um sentido amplo, n\u00f3s falamos demais. Falou demais o acusado quando, empolgado, n\u00e3o poupou sua disposi\u00e7\u00e3o cr\u00edtica reprovando as atitudes de persuas\u00e3o e banimento exercidas pelo Estado por meio de seus sic\u00e1rios fardados, quando argumentava naquele grupo virtual. Tamb\u00e9m agiu como um falador incontrol\u00e1vel quem encaminhou registros de imagens daquelas conversas, fornecendo armamento ao inimigo, projetando a si e a outros como alvos. Alguns questionamentos vislumbrando a desmilitariza\u00e7\u00e3o da pol\u00edcia, o retardamento no envio de textos na conversa por conta da inoper\u00e2ncia da operadora telef\u00f4nica e uma desgra\u00e7ada troca de artigos definidos foram suficientes para a incrimina\u00e7\u00e3o j\u00e1 come\u00e7ar bem sucedida. A mais-que-perfeita reuni\u00e3o de equ\u00edvocos.<\/p>\n

– \u00c9 preciso acabar com a PM! Morte ao Estado!<\/p>\n

Essas express\u00f5es usadas por muitos que entendem a condi\u00e7\u00e3o militarizada da pol\u00edcia como est\u00edmulo e legitimidade de sua trucul\u00eancia e a nega\u00e7\u00e3o da subservi\u00eancia ao Estado como l\u00facido princ\u00edpio de resist\u00eancia poderiam ser compreendidas como meros devaneios ou vibra\u00e7\u00f5es de internet, talvez se n\u00e3o fossem antecedidas pela despretensiosa indaga\u00e7\u00e3o de um dos participantes do grupo de discuss\u00e3o:<\/p>\n

– E o major l\u00e1, fascipopulista, o que a gente faz com ele?<\/p>\n

Quem fez a impress\u00e3o da conversa no aplicativo de comunica\u00e7\u00e3o instant\u00e2nea e a disseminou? O dono do fuxico nunca mant\u00e9m o dom\u00ednio de sua obra.<\/p>\n

Augusto Azevedo \u00e9\u00a0empreendedor da \u00e1rea de Organiza\u00e7\u00f5es Sociais, atualmente se encontra envolvido em estudos sobre aproveitamento de recursos h\u00eddricos com Peter Brabeck-Letmathe<\/span><\/em><\/strong><\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

(Des\u00eain: Ramon Sales) Por Augusto Azevedo – Sabe rezar? Naquelas circunst\u00e2ncias esse era o \u00fanico questionamento que o defensor conseguia fazer. 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