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{"id":315,"date":"2014-03-26T16:12:50","date_gmt":"2014-03-26T19:12:50","guid":{"rendered":"http:\/\/revistaberro.com\/?p=315"},"modified":"2021-03-15T17:42:48","modified_gmt":"2021-03-15T20:42:48","slug":"ensaio-sobre-a-simplicidade","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/revistaberro.com\/colunas\/impressoesmundanas\/ensaio-sobre-a-simplicidade\/","title":{"rendered":"Ensaio sobre a simplicidade"},"content":{"rendered":"

\"\"(Pulo da Ponte Velha, no Po\u00e7o da Draga – Fotos: Revista Berro)<\/em><\/p>\n

“… Entendo bem o sotaque das \u00e1guas.<\/em>
\n Dou respeito \u00e0s coisas desimportantes e aos seres desimportantes.<\/em>
\n Prezo insetos mais que avi\u00f5es.<\/em>
\n Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos m\u00edsseis.<\/em>
\n Tenho em mim esse atraso de nascen\u00e7a.<\/em>
\n Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos.<\/em>
\n Tenho abund\u00e2ncia de ser feliz por isso.<\/em>
\n Meu quintal \u00e9 maior do que o mundo…”<\/em>
\n(O apanhador de desperd\u00edcios – Manoel de Barros)<\/em><\/strong><\/p>\n

Dia desses, logo ap\u00f3s acordar com o canto dos bem-te-vis que diariamente v\u00eam \u00e0 minha janela, me divertia lendo as travessuras do Fradim. Estava na sala, rindo com as estripulias do personagem em quadrinhos do Henfil, quando um dos bem-te-vis do jardim adentrou sem cerim\u00f4nia a casa e pousou sobre o m\u00f3vel onde ficam alguns livros. N\u00e3o sei o que procurava, mas n\u00e3o se alongou muito tempo. Mirou-me, soltou um sonoro e agudo \u201cbem-te-viiiii\u201d e voou para trepar-se na samambaia da varanda.<\/p>\n

Vendo aquilo, larguei o Fradim sobre a mesa por um instante, e passei a divagar sobre a visita do p\u00e1ssaro. Por mais que tenha sido r\u00e1pida, senti uma coisa boa com a presen\u00e7a daquele bicho ali, livre, dentro de casa. Ri t\u00edmido, feliz pela visita inesperada, troquei dois dedos de prosa comigo mesmo, naquela linguagem muda que todos trazemos conosco, e em seguida voltei os olhos \u00e0 leitura: a essa altura o Fradim sofria com as dana\u00e7\u00f5es do Baixim.<\/p>\n

Noutro dia desses, choveu forte em Fortaleza. Passeava com o Bono, meu amigo-cachorro, quando o tor\u00f3 teve in\u00edcio. Nos protegemos embaixo de uma marquise, n\u00e3o sem antes tomar alguns pingos no rosto. Estava com o celular no bolso e supunha que, se me atrevesse a enfrentar aquela enxurrada, iria danificar o aparelho. Um, cinco, dez minutos… E nada do temporal passar. Comecei a pensar na maravilha que seria aquele banho de chuva; esta que parecia dan\u00e7ar com o vento forte que soprava as folhas do p\u00e9 de azeitona.<\/p>\n

– Preto, bora sair por a\u00ed na chuva correndo, bora?<\/p>\n

Ele me olhou feliz e, na sua express\u00e3o, vi que ele disse \u201csim!\u201d N\u00e3o pensei duas vezes. Dane-se o celular!<\/p>\n

– Ent\u00e3o, bora, Preto, bora!<\/p>\n

\"DSC_0038\"<\/a>
Bono brincando no jardim<\/em><\/figcaption><\/figure>\n

E sa\u00edmos em disparada, rindo largamente os dois sob aquele temporal. Bono abria a bocarra para sentir a chuva tocando sua l\u00edngua. Talvez estivesse com sede da caminhada pr\u00e9-chuva. Me sentia ainda mais feliz com a euforia dele, que pulava de tanta alegria com aquele banho que ca\u00eda do c\u00e9u. Demos um longo e apertado abra\u00e7o. Ele me olhava e eu via nas suas fei\u00e7\u00f5es uma gratid\u00e3o \u00e0quela demonstra\u00e7\u00e3o de for\u00e7a da natureza! Cachorros – na verdade os bichos em geral – t\u00eam uma sensibilidade muito maior que a nossa para sentir essas coisas. N\u00f3s, que vivemos em cidades grandes, abdicamos do prazer de um banho de chuva. Muitas vezes, fugimos dela, como se f\u00f4ssemos de a\u00e7\u00facar. Eu e Bono passeamos bastante pelo bairro sob aquela enxurrada, depois fomos pra casa e brincamos de bola ainda com o tor\u00f3 troando.<\/p>\n

N\u00e3o satisfeito, peguei minha bike e sa\u00ed, sozinho, a esmo, pelo bairro, ca\u00e7ando bicas e pedalando de bra\u00e7os abertos, como que pra receber de bom grado aquelas gotas volumosas que lavavam n\u00e3o s\u00f3 meu corpo. Gritava feito louco \u2013 \u201cuhuuuuu\u201d -, comemorava estar vivendo aquilo. Algumas bicas mais pareciam cachoeiras! Naquele dia, n\u00e3o tomei mais banho, porque realmente n\u00e3o quis; a \u00e1gua da Cagece n\u00e3o seria p\u00e1reo para limpar mais do que a \u00e1gua da chuva.<\/p>\n

Noutro dia desses, numa noite de lua cheia, junto com alguns amigos, fizemos uma trilha noturna \u00e0s margens do rio Pacoti, que desemboca ali na praia da Cofeco, tamb\u00e9m conhecida como Abreul\u00e2ndia. Enfiamos o p\u00e9 na lama do mangue, nos embiocamos mata adentro, subimos nas \u00e1rvores do manguezal com seus galhos \u00famidos, escalamos dunas que nos proporcionavam vistas incr\u00edveis, nos banhamos no Pacoti ao tempo em que \u00e9ramos banhados pela luz amarelada da lua, que espelhava seu dourado na superf\u00edcie do rio\u2026 Toda a trilha em sil\u00eancio! Cada um com sua viagem<\/em>! Mas sem perder de vista o vi\u00e9s tribal, de grupo, que nos unia fortemente naquele momento. Na volta, uma chuva torrencial nos presenteou com sua abund\u00e2ncia.<\/p>\n

\"DSC_0791\"<\/a>
Galera em peso pulando da Ponte Velha<\/em><\/figcaption><\/figure>\n

Os tr\u00eas relatos s\u00e3o fatos muito simples, aos quais muitos d\u00e3o de ombros, j\u00e1 n\u00e3o veem import\u00e2ncia. Os olhos dos moradores das metr\u00f3poles se acostumaram a banalizar o simples. Tolos!, como se o simples fosse banal. Apegam-se \u00e0s obviedades da apar\u00eancia; preferem a vida de pl\u00e1stico e concreto: artificial! N\u00e3o conseguem mais ver sopro de vida na simplicidade de um p\u00f4r-do-sol visto da duna da Sabiaguaba, donde se contempla todo o ecossistema do Coc\u00f3; de embrenhar-se no mangue da mesma Sabi, e depois banhar-se de rio ou de mar; de tomar um banho de mangueira no jardim de casa e, \u00e0 luz do sol, brincar de fazer arco-\u00edris com os jatos d\u00b4\u00e1gua; de admirar um beija-flor bicando um bouganville ou uma rolinha fazendo seu ninho no arbusto do quintal; de cultivar um jardim colorido e meter a m\u00e3o na terra para plantar e acompanhar o crescimento dos brotos; de ir pular da ponte velha no Po\u00e7o da Draga; de um banho de cachoeira; de um vento bom soprando sua brisa; de silenciar diante da natureza para ouvi-la\u2026<\/p>\n

Os habitantes dos grandes centros urbanos, com a correria fren\u00e9tica do dia-a-dia, perderam o contato com o simples da vida. Com aquilo que de sagrado todos trazemos conosco. N\u00e3o o sagrado num sentido dogm\u00e1tico-religioso. N\u00e3o \u00e9 isso! Mas, sim, como a liga\u00e7\u00e3o profunda que todos n\u00f3s, humanos, temos com o restante da natureza e seus elementos! “Quem experimenta a beleza est\u00e1 em comunh\u00e3o com o sagrado”, disse Rubem Alves. Nem de longe isso \u00e9 papo de bicho-grilo. Aos poucos, abandonou-se a lufada de bem-estar advinda da simplicidade. Mas ela, teimosa e resistente, continua em cada um! Isso n\u00e3o \u00e9 pieguice, \u00e9 uma busca: temos que inicialmente procur\u00e1-la dentro de n\u00f3s para depois a captarmos no cotidiano. Nessas horas percebo o quanto ainda precisamos aprender com muitas das gentes simples e s\u00e1bias do sert\u00e3o e de etnias ind\u00edgenas e abor\u00edgenes espalhadas por esse mund\u00e3o.<\/p>\n

Quando, generalizadamente \u2013 pobres, ricos, pretos e brancos -, percebermos que a verdadeira riqueza do nosso estar no mundo repousa numa vida simples, sem consumismo e sem apego \u00e0s apar\u00eancias, finalmente a utopia de uma humanidade igualit\u00e1ria estar\u00e1 ao nosso alcance. \u201c\u00c9 muito simples: o essencial \u00e9 invis\u00edvel aos olhos\u201d, j\u00e1 disse a raposa ao Pequeno Pr\u00edncipe.<\/p>\n

…<\/p>\n

Ah, naquele dia, da visita do bem-te-vi \u00e0 minha sala, que falei no comecim desse texto, fui depois dar uma olhada nas plantas e a samambaia da varanda estava seca, sem umidade na sua terra, pedindo \u00e1gua. Devia ser isso o que o p\u00e1ssaro estava querendo me dizer!<\/p>\n

\/\/\/<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

(Pulo da Ponte Velha, no Po\u00e7o da Draga – Fotos: Revista Berro) “… Entendo bem o sotaque das \u00e1guas. Dou respeito \u00e0s coisas desimportantes e aos seres desimportantes. Prezo insetos mais que avi\u00f5es. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos m\u00edsseis. Tenho em mim esse atraso de nascen\u00e7a. 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