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{"id":3028,"date":"2016-04-19T10:48:00","date_gmt":"2016-04-19T13:48:00","guid":{"rendered":"http:\/\/revistaberro.com\/?p=3028"},"modified":"2016-04-08T12:03:13","modified_gmt":"2016-04-08T15:03:13","slug":"comprar-e-morrer-em-ruido-branco-de-don-delillo","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/revistaberro.com\/literatura\/cronica\/comprar-e-morrer-em-ruido-branco-de-don-delillo\/","title":{"rendered":"Comprar e morrer em “Ru\u00eddo Branco” de Don DeLillo"},"content":{"rendered":"

(Foto: divulga\u00e7\u00e3o<\/em>)<\/p>\n

Por<\/em>\u00a0Tomaz Amorim<\/em><\/strong><\/p>\n

Ru\u00eddo Branco<\/em> tem um tom surreal, fant\u00e1stico, entre a fantasia e a fic\u00e7\u00e3o cient\u00edfica. Mas a narra\u00e7\u00e3o \u00e9 implacavelmente objetiva. O pouco espa\u00e7o dos sentimentos \u00e9 apresentado atrav\u00e9s de um vi\u00e9s exclusivamente anal\u00edtico. O pr\u00f3prio medo \u00e9 uma equa\u00e7\u00e3o a ser resolvida. A morte \u00e9 um evento desagrad\u00e1vel, como uma festa do escrit\u00f3rio, que se quer evitar. O tom surreal vem do que alguns pensadores chamaram de virada ontol\u00f3gica no capitalismo: n\u00e3o apenas o sujeito foi coisificado, reduzido \u00e0s meras tarefas mec\u00e2nicas de produzir e consumir, como o objeto, a mercadoria, foi erguida ao n\u00edvel do sujeito. A mercadoria fala, canta, dan\u00e7a, seduz, como a cadeira de Marx ou a vassoura de Goethe. As latas de Coca-Cola agora t\u00eam escritas em cada uma um nome pr\u00f3prio roubado de seus consumidores. DeLillo descreve da seguinte forma o saque de dinheiro em um caixa eletr\u00f4nico: \u201cOndas de al\u00edvio e gratid\u00e3o flu\u00edram sobre mim. O sistema tinha aben\u00e7oado a minha vida. Eu senti seu apoio e aprova\u00e7\u00e3o. O hardware do sistema, o servidor central trancado em alguma sala em alguma cidade distante. Que intera\u00e7\u00e3o prazerosa. Eu senti que algo de um valor pessoal profundo, mas n\u00e3o dinheiro, n\u00e3o isso, de forma alguma, tinha sido autenticado e confirmado\u201d. Os objetos s\u00e3o a transcend\u00eancia do sujeito quase irremediavelmente – n\u00e3o fossem os primeiros – imanente. Esta invers\u00e3o-dissolu\u00e7\u00e3o tamb\u00e9m se manifesta na rela\u00e7\u00e3o entre os grupos sociais. N\u00e3o h\u00e1 diferen\u00e7a entre classes: um tipo de classe m\u00e9dia aparece como \u00fanico estrato social. As outras diferen\u00e7as de grupos: entre adultos e crian\u00e7as, homens e mulheres, tamb\u00e9m s\u00e3o achatadas em um meio gen\u00e9rico sem diferen\u00e7a. As crian\u00e7as debatem sobre a morte e a ci\u00eancia e o sentido em mesmo n\u00edvel que os adultos. \u00c0s vezes, com superioridade. Os pap\u00e9is sociais se mant\u00eam, mas apenas maquinalmente, como categorias ocas: cumpre-se o papel de marido ou de filha como um empregado cumpre o papel de faxineiro ou escriv\u00e3o.<\/p>\n

A vida pendular dos personagens balan\u00e7a entre a alegria do consumo e o medo da morte. A presen\u00e7a constante do segundo em todas as suas manifesta\u00e7\u00f5es poss\u00edveis – cat\u00e1strofe ambiental (airborne toxic event), complica\u00e7\u00f5es de sa\u00fade (envenenamento por Nyodene D.), morte do companheiro (Jack e Babette), esporte radical (sentar-se numa sala com cobras venenosas) – contrasta com o calor reconfortante, sempre \u00e0 m\u00e3o, das compras. A mercadoria \u00e9 invulner\u00e1vel a morte. \u201cAqui [no mercado] n\u00f3s n\u00e3o morremos, n\u00f3s compramos\u201d. O consumidor que se banha nas compras sente que adquire por um curto per\u00edodo sua imortalidade. Eis o car\u00e1ter viciante do consumo: readquirir aquele efeito que se esvai r\u00e1pido demais. A droga fict\u00edcia, Dylar, que promete afastar definitivamente o medo da morte, \u00e9 a tentativa frustrada de tornar permanente o efeito curto do v\u00edcio de comprar. H\u00e1 algo nesta prosa da colagem dada\u00edsta, a sobreposi\u00e7\u00e3o em um mesmo plano de elementos de origens distintas. Literariamente, substantivos com origens sem\u00e2nticas muito afastadas seguem um ao outro sem constrangimento, preposi\u00e7\u00e3o ou verbo de liga\u00e7\u00e3o. Mas aqui o choque de elementos de origens distintas \u00e9 mais calculado: objetos pertencentes a esferas opostas da vida humana \u00e9 que s\u00e3o listados como equivalentes. \u201cO vazio, o senso de escurid\u00e3o c\u00f3smica. MasterCard, Visa, American Express\u201d. A menina que dorme profundamente \u00e9 observada por longos minutos pelo narrador que espera tirar do seu balbucio puro e infantil algum tipo de uma mensagem: Toyota Celica.<\/p>\n

A universidade, local de trabalho do narrador-protagonista Jack Gladney, aparece como espa\u00e7o em que professores-celebridade inventam \u00e1reas de estudo. Hitler Studies, Elvis Studies. Da mesma forma com que a mercadoria passa seus efeitos inorg\u00e2nicos ao consumidor, o objeto de estudo passa seu poder de fascina\u00e7\u00e3o para o professor pesquisador. Jack diz que o reitor \u201csugeriu fortemente que eu ganhasse peso. Ele queria que eu crescesse para fora em um Hitler\u201d. Mas os fatos e a reflex\u00e3o que adviriam do estudos destas figuras hist\u00f3ricas s\u00e3o tratados com a mesma profundidade que as reportagens fabricadas dos tabloides comprados por Babette na fila do supermercado. Tudo pode trazer uma explica\u00e7\u00e3o-reprodu\u00e7\u00e3o do mundo: acidentes de carro, embalagens, a forma com que uma fam\u00edlia assiste televis\u00e3o. Na pluralidade infinita dos pontos de vista, desaparece qualquer resqu\u00edcio de referente hist\u00f3rico ou material. Mas n\u00e3o o real – a morte – como a gigantesca nuvem venenosa que se abate sobre a cidade, subitamente, lembra. A apresenta\u00e7\u00e3o da academia n\u00e3o \u00e9 apenas sarc\u00e1stica, mas tamb\u00e9m melanc\u00f3lica. Ela toma a inova\u00e7\u00e3o \u00e0s vezes exagerada na amplia\u00e7\u00e3o de objetos de estudo como sintoma de um esgotamento da pr\u00f3pria possibilidade de pensar. O professor Murray comenta: \u201cEu entendo a m\u00fasica, eu entendo os filmes, eu at\u00e9 vejo como os quadrinhos podem nos dizer coisas. Mas tem professores inteiros nesse lugar que n\u00e3o leem outra coisa que caixas de cereal\u201d. Jack responde: \u201c\u00c9 a \u00fanica vanguarda que temos\u201d.\u00a0 Como no resto dos dilemas apresentados do romance, n\u00e3o h\u00e1 busca reflexiva de solu\u00e7\u00e3o, apenas descri\u00e7\u00e3o semi-desinteressada e salto para o pr\u00f3ximo. \u201c\u00c9 incr\u00edvel quantas pessoas ensinam nos dias de hoje. (…) H\u00e1 um professor para cada pessoa. Toda pessoa que eu conhe\u00e7o ou \u00e9 professora ou estudante. O que voc\u00ea acha que isso significa\u201d?<\/p>\n

\n

Tomaz Amorim tem 28 anos, nasceu e cresceu na cidade de Po\u00e1, \u00e0s margens da Grande S\u00e3o Paulo. \u00c9 poeta, faz doutorado em literatura e pensa misturadamente sobre tr\u00eas coisas: arte, amor e justi\u00e7a social; e \u00e9 autor do blog\u00a03 par\u00e1grafos de cr\u00edtica<\/a>.\u00a0<\/em><\/strong><\/p>\n<\/div>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

(Foto: divulga\u00e7\u00e3o) Por\u00a0Tomaz Amorim Ru\u00eddo Branco tem um tom surreal, fant\u00e1stico, entre a fantasia e a fic\u00e7\u00e3o cient\u00edfica. Mas a narra\u00e7\u00e3o \u00e9 implacavelmente objetiva. O pouco espa\u00e7o dos sentimentos \u00e9 apresentado atrav\u00e9s de um vi\u00e9s exclusivamente anal\u00edtico. O pr\u00f3prio medo \u00e9 uma equa\u00e7\u00e3o a ser resolvida. 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