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{"id":1993,"date":"2015-02-25T19:00:19","date_gmt":"2015-02-25T22:00:19","guid":{"rendered":"http:\/\/revistaberro.com\/?p=1993"},"modified":"2015-02-24T18:06:08","modified_gmt":"2015-02-24T21:06:08","slug":"a-memoria-do-tempo","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/revistaberro.com\/cultura-e-arte\/fotografia\/a-memoria-do-tempo\/","title":{"rendered":"A Mem\u00f3ria do Tempo"},"content":{"rendered":"

(Foto: Chico Albuquerque<\/em>)<\/p>\n

Drawlio Joca<\/b><\/em><\/p>\n

12 de setembro de 1894, rua Para\u00edso, c\u00e9lebre bairro de Santa Teresa no Rio de Janeiro. Nasce o dono da chamada voz orgulho do Brasil. Ainda se fazia long\u00ednqua a \u00e9poca em que a Bossa Nova instauraria um outro modo de cantar e o ent\u00e3o rec\u00e9m-nascido, por dote e pela habitualidade do seu tempo, entoaria em vida a l\u00edrica de sua Cora\u00e7\u00e3o Materno, tal e qual um rufar de tambores ou o soar das trombetas dos anjos e dos guardi\u00f5es, fosse ao vivo atrav\u00e9s da bo\u00eamia noturnal carioca ou singrando sua portentosa voz por meio das ondas da era do r\u00e1dio.<\/p>\n

Nalgum impreciso dia de 1952. No canto superior esquerdo do quadro, o olho de um homem de 35 anos v\u00ea o que tamb\u00e9m agora vejo. V. Celestino, desta forma, com o prenome abreviado, assim est\u00e1 inscrita na grande pe\u00e7a triangular de lona de algod\u00e3o, a designa\u00e7\u00e3o batismal da pequena embarca\u00e7\u00e3o. Seu dono, por assim denomin\u00e1-la, em \u00f3bvia homenagem ao singrante tenor, talvez desejasse que com tal for\u00e7a e eloq\u00fc\u00eancia sua nau singrasse bravamente os verdes mares. Mais abaixo, mas ainda \u00e0 esquerda do ret\u00e2ngulo, dois homens de costas para o nosso observador postam-se sentados no madeiro conhecido por pi\u00faba, importado da mata amaz\u00f4nica paraense especialmente para a constru\u00e7\u00e3o da embarca\u00e7\u00e3o, da qual desta n\u00e3o se pode ver o nome. Do mesmo pau de pi\u00faba, por certo o feitio da outra nau similar e na dire\u00e7\u00e3o da qual eles olham, a primeira, a jangada Vicente Celestino.<\/p>\n

O espectador, deslocando ent\u00e3o seu astuto olhar para a direita atrav\u00e9s do quadro, mas por um breve instante fugindo \u00e0 sua consci\u00eancia o primeir\u00edssimo plano, v\u00ea ainda neste dia j\u00e1 de um s\u00e9culo e de um mil\u00eanio passados, a fugaz passagem de um homem moreno que observa um outro, este por sua vez pregui\u00e7a, alonga suas pernas sobre esteira \u00e0 areia da praia e olha para o observante, sendo o \u00fanico a faz\u00ea-lo e a denunciar-lhe a oculta presen\u00e7a. Prosseguindo em sua criteriosa observa\u00e7\u00e3o, o rec\u00f4ndito desconhecido varre com seu olhar pertinaz toda a realidade exposta \u00e0 direita da cena, minuciosamente, com perspic\u00e1cia tal qual a do olhar eletr\u00f4nico de um poderoso escaner. V\u00ea ent\u00e3o aos p\u00e9s daquele mandriado que tamb\u00e9m o v\u00ea um instrumento de trabalho constru\u00eddo de forma rudimentar a partir de paus amarrados em uma grande pedra e utilizado pelos bravos homens do mar para fundear suas embarca\u00e7\u00f5es \u00e0 hora do ferrar panos: o toa\u00e7u. \u00c0 direita desta elementar \u00e2ncora, o sambur\u00e1, esp\u00e9cie de cesto trabalhado por m\u00e3os desta cena desconhecidas, que entrela\u00e7aram o cip\u00f3 de tal maneira abaloada, para que este utens\u00edlio sirva para guardar os frutos da pescaria. Mais feliz o inc\u00f3gnito obreiro, quando o objeto do seu trabalho retorna da lida no mar, nas palavras do desta feita tamb\u00e9m contente pescador – sambur\u00e1 cheio e roda afora. Transbordando de peixe, assim a cesta deve estar para a predile\u00e7\u00e3o de todos, sempre que os rolos de madeira vistos pelo nosso observador \u00e0 direita e abaixo da cena forem utilizados para deslizar a jangada de volta \u00e0 firmeza da terra.<\/p>\n

Terra. Entre terra e mar balou\u00e7a a vida destes argonautas. Terra, a seguran\u00e7a continuamente conquistada e renegada, numa esp\u00e9cie de movimento circular que busca o porto seguro, mas retorna sempre ao incerto, fugaz calmaria que cede sucessivamente ao intr\u00e9pido e incontrol\u00e1vel desejo de navegar. Terra. Em sua morada, o pescador descansa do balan\u00e7o mar\u00edtimo novamente se balou\u00e7ando em sua rede de dormir, como numa dan\u00e7a m\u00edtica da qual seu corpo n\u00e3o consegue se apartar. Ainda que aportado, balou\u00e7am todos os seus \u00f3rg\u00e3os, todas as suas c\u00e9lulas, todo o seu esp\u00edrito neste bailado do mar, na contumaz embriaguez de sua maresia, no insofism\u00e1vel murm\u00fario de suas ondas. Tudo presente em seu \u00e2mago, gravado para sempre na mem\u00f3ria de sua pele.<\/p>\n

Terra, retomando a realidade imediatamente observ\u00e1vel, o observante v\u00ea ainda a sua direita algum casario que serve de morada e descanso para os pescadores. Adiante um majestoso coqueiro que ocupa precisamente o ter\u00e7o oposto ao peso maior da composi\u00e7\u00e3o, conferindo-lhe equil\u00edbrio. Ao fundo e quase a perder de vista, coqueiral e dunas. Acima e abra\u00e7ando tudo o que \u00e9 vis\u00edvel por este atento olhar, um c\u00e9u limpo, c\u00e9u de brigadeiro, t\u00edpico destas terras setentrionais de sol impiedoso. Deste febo poderoso e brilhante vem toda a luz que ilumina e resplandece a cena. Luz que torna poss\u00edvel que a partir de um preciso ato do observador e de sua alquimia, vejamos ainda hoje tudo o que ele neste outro tempo v\u00ea. Mesma luz que abrasa e marca a pele de todo aquele que ali vive, outorgando-lhes para sempre a tez amorenada.<\/p>\n

Tornando velozmente sua consci\u00eancia ao primeir\u00edssimo plano, o espectador observa diante de si a figura de um pescador portando chap\u00e9u de palha e roupas de algod\u00e3ozinho de primaz brancura, mas ali tingido a castanho-escuro a partir do corante natural que larga da fervura da casca do cajueiro. Antes, durante e depois do ato terminante que embora h\u00e1 muito j\u00e1 o tenha feito, na cronologia desta narrativa, ainda realizar\u00e1 nosso observador, o pescador trabalharia na constru\u00e7\u00e3o de sua embarca\u00e7\u00e3o. O feitio consistia na \u00e9poca em prender os troncos de pi\u00faba da jangada atrav\u00e9s de tornos, esp\u00e9cie de grandes pregos de madeira feitos de pau-ferro, por ser este um lenho de extrema dureza. Os tornos eram transpassados transversalmente aos paus de pi\u00faba a marretadas, unindo-os.<\/p>\n

A tudo isto assiste atentamente nosso espectador neste breve instante deste dia j\u00e1 perdido no tempo. Que olhar pervagante \u00e9 esse que olha para todas estas coisas num \u00e1timo? Que consci\u00eancia \u00e9 essa que a tudo v\u00ea no tempo de um raio? Que sentimento \u00e9 esse que determina o instante crucial desta cena? Zuuuuum! Zune o zunido do choque da ferramenta com o ar. Tens\u00e3o m\u00e1xima na cena: eis o momento decisivo! O contumaz observador ouve, sente e v\u00ea o pescador deslocar rapidamente a marreta atrav\u00e9s do espa\u00e7o e do tempo e no preciso instante em que o melhor desenho de tudo isto que at\u00e9 agora aqui narramos se faz, Chico Albuquerque aciona o disparador de sua c\u00e2mara obscura e eterniza este momento, tornando-o uma fotografia, um documento.<\/p>\n

Depois de ouvir o som sutil do disparo do obturador de seu instrumento, o fot\u00f3grafo ainda ouviria na fra\u00e7\u00e3o de segundo seguinte, o estampido resultante da colis\u00e3o da marreta com o pau-ferro. A partir da\u00ed, o que ele fez e o que todos os atores de sua cena se puseram a fazer, n\u00e3o cabe mais na narrativa desta sua fotografia. Dentro de sua c\u00e2mara, no inimagin\u00e1vel intervalo de tempo entre o primeiro e o segundo som, j\u00e1 estava gravada em seu fotograma a imagem latente.<\/p>\n

2015. O tempo. Mais de sessenta anos passados, encontro-me aqui debru\u00e7ado sobre esta fotografia de Seu Chico realizada na lend\u00e1ria praia do Mucuripe e ponho-me a pensar sobre o of\u00edcio de um fot\u00f3grafo, seu particular tempo de observa\u00e7\u00e3o, sua forma de olhar para o mundo, todos os seus momentos decisivos e ainda sobre as tantas hist\u00f3rias de vida silenciosamente guardadas em seus instant\u00e2neos. A partir da reconstitui\u00e7\u00e3o po\u00e9tica que aqui fiz do momento da realiza\u00e7\u00e3o desta fotografia, situando sua historicidade, descrevendo seus aspectos e suas particularidades, uma impressionante quantidade de informa\u00e7\u00f5es p\u00f4de ser obtida dentro da leitura descritiva de apenas uma \u00fanica imagem. Eis a grande import\u00e2ncia que a fotografia tem como fonte de pesquisa.<\/p>\n

O mestre se foi, mas permanece a sua obra especialmente relevante para nossa mem\u00f3ria iconogr\u00e1fica. Tudo o que dela pode se extrair fortalece a identidade e as reminisc\u00eancias do nosso povo.<\/p>\n

O fot\u00f3grafo se ocupa de registrar realidades que est\u00e3o em constante processo de transforma\u00e7\u00e3o e preserv\u00e1-las enquanto documento visual. Fotografia \u00e9 a mem\u00f3ria do tempo que se esvai.<\/p>\n

A crescente import\u00e2ncia de um trabalho de fotografia se d\u00e1 na raz\u00e3o direta da evolu\u00e7\u00e3o do tempo. O que hoje nos parece comum, corriqueiro e at\u00e9 banal, muitas vezes guarda um sentido no qual est\u00e1 inscrita nossa pr\u00f3pria hist\u00f3ria.<\/p>\n

*Fonte de pesquisa: Antero Ferreira Bezerra, Seu Tutuca, nascido em 1921 em Canoa Quebrada no Cear\u00e1 – certamente \u00e0 \u00e9poca uma dessemelhante praia – autodidata, alfaiate por of\u00edcio, orquid\u00f3filo por satisfa\u00e7\u00e3o, meu av\u00f4, deu ci\u00eancia a este texto com preciosas informa\u00e7\u00f5es sobre a vida dos homens do mar<\/em>.<\/p>\n

Drawlio Joca \u00e9 fot\u00f3grafo<\/b><\/em><\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

(Foto: Chico Albuquerque) Drawlio Joca 12 de setembro de 1894, rua Para\u00edso, c\u00e9lebre bairro de Santa Teresa no Rio de Janeiro. Nasce o dono da chamada voz orgulho do Brasil. 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