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{"id":1731,"date":"2014-12-16T15:35:48","date_gmt":"2014-12-16T18:35:48","guid":{"rendered":"http:\/\/revistaberro.com\/?p=1731"},"modified":"2023-05-31T17:40:13","modified_gmt":"2023-05-31T20:40:13","slug":"vida-e-morte-joao","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/revistaberro.com\/colunas\/impressoesmundanas\/vida-e-morte-joao\/","title":{"rendered":"Vida e morte, Jo\u00e3o!"},"content":{"rendered":"
\"\"
(Fotos: Chico C\u00e9lio)<\/figcaption><\/figure>\n

E quem era inocente hoje j\u00e1 virou bandido<\/em>
\nPra poder comer um peda\u00e7o de p\u00e3o todo fudido<\/em><\/p>\n

Banditismo por pura maldade<\/em>
\nBanditismo por necessidade<\/em>
\nBanditismo por uma quest\u00e3o de classe!<\/em>
\nBanditismo por uma quest\u00e3o de classe!<\/em>”<\/p>\n

(Chico Science e Na\u00e7\u00e3o Zumbi – Banditismo Por uma Quest\u00e3o de Classe<\/em><\/a>)<\/p>\n

\u201c\u00c9 verdade que o capitalismo manteve como constante a extrema mis\u00e9ria de tr\u00eas quartos da humanidade, pobres demais para a d\u00edvida, numerosos demais para o confinamento: o controle n\u00e3o s\u00f3 ter\u00e1 que enfrentar a dissipa\u00e7\u00e3o das fronteiras, mas tamb\u00e9m a explos\u00e3o dos guetos e favelas\u201d (Gilles Deleuze, Post-Scriptum sobre as Sociedades de Controle<\/em>).<\/p>\n

Fortaleza \u00e9 um po\u00e7o profundo de contrastes: quinta maior cidade do Brasil, com mais de 2,5 milh\u00f5es de habitantes (e uma Regi\u00e3o Metropolitana beirando 4 milh\u00f5es de moradores), tem o maior PIB do Nordeste (R$ 42 bilh\u00f5es\/IBGE), mas \u00e9 tamb\u00e9m a mais desigual da regi\u00e3o, com v\u00e1rios bols\u00f5es de pobreza espalhados por todo o seu territ\u00f3rio. Segundo o relat\u00f3rio mais recente da ONU sobre aglomerados urbanos (2012), foi considerada a quinta cidade mais desigual do mundo, onde 7% da popula\u00e7\u00e3o det\u00eam mais de um quarto (26%) de toda a riqueza do munic\u00edpio. Em um cen\u00e1rio t\u00e3o contrastante, a figura do \u201ccriminoso\u201d, do \u201cbandido social\u201d, aquele que n\u00e3o se resigna \u00e0s condi\u00e7\u00f5es miser\u00e1veis que a sociedade lhe imp\u00f5e, \u00e9 lugar-comum em qualquer periferia.<\/p>\n

\u201cSe fosse pedreiro, ganhava mil reais trabalhando o dia todo no sol quente. Se for pra trabalhar de servente, pintor, carpinteiro, o n\u00eago <\/em>num sai dali! Se quiser uma coisinha a mais tem que ir pro crime mesmo\u201d, diz Jo\u00e3o (nome fict\u00edcio), 31 anos, traficante de drogas na favela da Vila Cazumba, no bairro Cidade dos Funcion\u00e1rios, zona sul da capital cearense. Moreno, de estatura mediana, fala arrastada, unhas compridas, olhos amarronzados e expressivos, cheio de cicatrizes pelo corpo, conversamos com ele em seu barraco, h\u00e1 alguns meses. Se expressa com grandes gestos faciais. As m\u00e3os tamb\u00e9m falam bastante. Durante a prosa, alguns clientes apareceram, mas n\u00e3o foram atendidos. \u201cPera\u00ed mah<\/em>, t\u00f4 ocupado, t\u00f4 dando uma entrevista aqui\u201d, disse ele, com orgulho no tom de voz, enquanto fumava seu baseado bem \u00e0 vontade.<\/p>\n

Voltando \u00e0 conversa, enfatizou em tom de brincadeira, se espregui\u00e7ando na cama onde conversamos (n\u00e3o havia cadeiras no local): \u201cE agora t\u00f4 aqui \u00f3, ganhando minha c\u00e9da<\/em>, sem botar peso nem debaixo do sol quente\u201d, comparando sua ocupa\u00e7\u00e3o ao de um trabalhador da constru\u00e7\u00e3o civil. \u201cD\u00e1 n\u00e3o mah, pra trabalhar assim n\u00e3o. O sistema \u00e9 esse, \u00e9 cruel\u201d, resume, mostrando, grosso modo, porque muitos da favela escolhem o caminho do crime. \u201cSe eu fosse aquele cara que se humilha no sinal, por menos de um real, minha chance era pouca, mas se eu fosse aquele moleque de touca que engatilha e enfia o cano dentro da sua boca\u2026 (Racionais MC\u00b4s \u2013 Cap\u00edtulo 4 vers\u00edculo 3<\/em><\/a><\/span>). Consegue, em m\u00e9dia, dois mil reais por m\u00eas, mas \u201cj\u00e1 teve m\u00eas\u201d que tirou mais de tr\u00eas mil reais. Um dos rivais de Jo\u00e3o no com\u00e9rcio de drogas na Vila Cazumba, o Pistola (nome fict\u00edcio), que j\u00e1 trafica por ali h\u00e1 mais tempo, arrecada bem mais mensalmente, confessa ele.<\/p>\n

A casa onde Jo\u00e3o mora \u00e9 alugada por 250 reais; chegou ali h\u00e1 pouco tempo, fugido de um atentado no qual levou seis tiros (mostra as marcas de bala pelo corpo) e passou 35 dias no hospital. Quando saiu da interna\u00e7\u00e3o hospitalar, decidiu que n\u00e3o era mais hora de voltar pro Jardim Fluminense, comunidade no bairro Canindezinho, zona oeste de Fortaleza. Se instalou na Vila Cazumba. Foi o quinto atentado sofrido por Jo\u00e3o, que diz escapar por \u201clivramento de Deus\u201d. \u201cO n\u00eago<\/em> \u00e9 vivedor<\/em>, pivete!\u201d, se orgulha, batendo no peito.<\/p>\n

Jo\u00e3o tem uma hist\u00f3ria parecida com a de muitos outros Jo\u00e3os, Jos\u00e9s, Franciscos e Ant\u00f4nios espalhados pelo Brasil, principalmente nas metr\u00f3poles. Aos 8 anos, o pai levou-o para um bar e ele experimentou seu primeiro trago de cacha\u00e7a. O primeiro baseado veio um ano depois, aos 9. A fam\u00edlia era muito pobre, o pai alco\u00f3latra e a m\u00e3e catando lata de alum\u00ednio para sobreviver e alimentar os seis filhos. Jo\u00e3o, muito novo, ajudava a m\u00e3e tamb\u00e9m catando latas no Bonsucesso, bairro da zona oeste fortalezense. Os pais eram andarilhos; como n\u00e3o tinham casa pr\u00f3pria, mudavam constantemente de resid\u00eancia: passaram pelos bairros Jo\u00e3o XXIII, Serviluz, Lagamar, Castelo Encantado, Alto Alegre, Granja Portugal, Edson Queiroz, e pelas cidades vizinhas Caucaia e Maracana\u00fa. \u201cA situa\u00e7\u00e3o era braba<\/em>, n\u00f3s passava<\/em> fome. Tinha dia que num tinha o de comer<\/em>\u201d.<\/p>\n

\"Impress\u00f5esAos 12 anos, quando moravam no Serviluz, bairro da zona leste conhecido pela comunidade do Titanzinho, deixou de estudar e entendeu o que era o crime. \u201cFui buscar droga prum cara num canto combinado e ele me deu um qualquer\u201d. Foi s\u00f3 o primeiro passo, j\u00e1 que esse \u201cqualquer\u201d, segundo ele, era muito mais do que conseguia catando latas. Durante a adolesc\u00eancia, foi \u201cavi\u00e3o\u201d de v\u00e1rios traficantes nos lugares onde viveu. Aos 20, assinou carteira como servente, \u201ccavando buraco na tora<\/em>, o dia todim<\/em>, de 7 da manh\u00e3 \u00e0s 5 da tarde\u201d, casou-se e foi morar no Parque Santa Rosa, \u201conde entrei de vez pro crime\u201d. De l\u00e1, andarilho como os pais, mudou-se ainda para o Parque S\u00e3o Jos\u00e9 e o Jardim Fluminense. Por algum tempo, conciliou o trabalho de pedreiro com o crime: traficava e praticava assaltos, at\u00e9 o dia em que optou apenas pela atividade criminosa, que era mais lucrativa e lhe dava, sobretudo, reconhecimento social, que a pobreza lhe negava e o crime lhe trazia. Ao longo do casamento de 12 anos, teve tr\u00eas filhos, que hoje t\u00eam 11, 8 e 6 de idade. \u201cMoram com a m\u00e3e em Horizonte (Regi\u00e3o Metropolitana de Fortaleza). Depois que n\u00f3s se<\/em> separamo<\/em>, ela foi morar com os pais dela l\u00e1 e levou os pivete<\/em>\u201d. Jo\u00e3o manda um \u201cdinheirim\u201d pra eles todo m\u00eas, que tamb\u00e9m v\u00e3o visit\u00e1-lo com frequ\u00eancia na Vila Cazumba. \u201cEles t\u00eam que estudar\u201d, diz esperan\u00e7oso, fazendo olhos de nuvens, que \u00e9 quando o olhar vagueia e vai ao fant\u00e1stico, ao indiz\u00edvel; \u00e9 quando enxergamos mais longe.<\/p>\n

A fam\u00edlia toda sabe da sua ocupa\u00e7\u00e3o. \u201cTentei esconder da minha m\u00e3e, mas teve uma hora que n\u00e3o teve jeito, pivete\u201d. Nesse \u00ednterim, abra\u00e7ou o alcoolismo, como o pai, e viciou-se no crack. \u201cEra aviciado<\/em> na pedra, fumava no cachimbo e na lata, mas gra\u00e7as a Deus consegui sair dessa desgra\u00e7a. Hoje, dou s\u00f3 meus tequim<\/em> (na coca\u00edna) no final de semana mesmo, vez ou outra\u201d.<\/p>\n

Vivendo no mundo do crime e sob suas regras, Jo\u00e3o j\u00e1 teve tamb\u00e9m que se valer de uma das faces mais perversas da atividade: o homic\u00eddio! Ou matava ou morria! S\u00e3o seis ao todo. \u201cA honestidade do bandido \u00e9 a palavra. Quem n\u00e3o tem palavra \u00e9 pirangueiro<\/em>. E pirangueiro<\/em> morre logo. \u00c9 o certo pelo certo, pivete<\/em>. O errado tem que ser cobrado\u201d, diz ele, friamente, sem parecer sentir remorso pelas vidas tiradas. “\u00c9 uma guerra onde s\u00f3 sobrevive quem atira, quem enquadra a mans\u00e3o, quem trafica, infelizmente o livro n\u00e3o resolve, o Brasil s\u00f3 me respeita com um rev\u00f3lver” (Fac\u00e7\u00e3o Central – Isso Aqui \u00e9 uma Guerra<\/em><\/a><\/span>). De fato, o crime tem um movimento pr\u00f3prio, \u00e0 margem das leis, escapando largamente \u00e0s normas jur\u00eddicas estabelecidas. H\u00e1 um c\u00f3digo de conduta t\u00e1cito, oral, repassado de gera\u00e7\u00e3o em gera\u00e7\u00e3o. Aquele que n\u00e3o o segue, geralmente perde a vida! A atividade do crime, aliada ao fetiche consumista, desumaniza qualquer um. \u201cNa lei da selva, consumir \u00e9 necess\u00e1rio, compre mais, compre mais, supere o seu advers\u00e1rio, seu status<\/em> depende da trag\u00e9dia de algu\u00e9m; \u00e9 isso: capitalismo selvagem!\u201d (Racionais MC\u00b4s, Mano na porta do bar<\/em><\/a><\/span>).<\/p>\n

Jo\u00e3o carrega nas costas quatro delitos previstos no C\u00f3digo Penal: artigos 33 (tr\u00e1fico de drogas), 121 (homic\u00eddio), 155 (roubo\/furto) e 157 (assalto a m\u00e3o armada). Apesar de ser apenas mais um criminoso aos olhos da Justi\u00e7a e de grande parte da sociedade, ele parece saber por que est\u00e1 ali, naquela condi\u00e7\u00e3o, e o que de fato move o mundo: \u201cO dinheiro \u00e9 cruel, pivete<\/em>, o cara rouba, mata e destr\u00f3i por causa dele. O que manda na mente do ser humano \u00e9 o real, \u00e9 a c\u00e9da. <\/em>N\u00f3s num precisava trabalhar n\u00e3o mah<\/em>. Era pra n\u00f3s poder<\/em> andar de cavalo, ter \u00e1gua limpa, plantar, comer, ficar deitado numa rede\u2026 n\u00e9 assim que o Racionais (MC\u00b4s, Vida Loka \u2013 parte II<\/em><\/a><\/span>) fala? Mas o homem \u00e9 ambicioso, ele estragou tudo, como o Fac\u00e7\u00e3o (Central, O Homem estragou tudo<\/em><\/a><\/span>) diz\u201d. \u201cMenores carentes se tornam delinquentes e ningu\u00e9m nada faz pelo futuro dessa gente. A sa\u00edda \u00e9 essa vida bandida que levam roubando, matando, morrendo, entre si se acabando. Enquanto homens de poder fingem n\u00e3o ver, n\u00e3o querem saber, fazem o que bem entender. E assim… aumenta a viol\u00eancia. N\u00e3o somos n\u00f3s os culpados dessa consequ\u00eancia\u201d?<\/em> (Racionais MC\u00b4s \u2013 Tempos Dif\u00edceis<\/em><\/a><\/span>).<\/p>\n

Ainda que convicto de sua escolha, Jo\u00e3o tem tamb\u00e9m consci\u00eancia dos riscos pr\u00f3prios da atividade criminosa: \u201cT\u00f4 brincando com a vida, meu futuro \u00e9 a morte ou cadeia, pivete<\/em>\u201d. Numa de suas sa\u00eddas para assaltar, em mar\u00e7o de 2014, ao lado de um parceiro, encostaram a moto que ocupavam e bateram com o cano do rev\u00f3lver no vidro do carro que iriam assaltar. Foram respondidos com v\u00e1rios tiros partindo do ve\u00edculo. Nele, vinha o tenente da Pol\u00edcia Militar de Pernambuco, Wesley S\u00e1vio de S\u00e1 Alves, que passava f\u00e9rias em Fortaleza. O caso, ocorrido no bairro nobre Coc\u00f3, repercutiu em v\u00e1rios notici\u00e1rios das imprensas cearense e pernambucana (leia aqui<\/a><\/span>). O tenente foi liberado ao acusar leg\u00edtima defesa, mesmo tendo atirado mais algumas vezes em Jo\u00e3o quando ele j\u00e1 estava ca\u00eddo no ch\u00e3o, agonizando. Jo\u00e3o e seu comparsa morreram ali mesmo, na cal\u00e7ada, antes mesmo da chegada dos primeiros socorros. Estava certo ao prever sua sina: \u201c\u00e9 morte ou cadeia, pivete<\/em>\u201d: morte! O tr\u00e1gico \u00e9 que a morte do \u201cbandido\u201d tem sempre o aval da sociedade, como se sua vida n\u00e3o valesse nada e sua morte fosse sempre desejada.<\/p>\n

Lembro que uma das coisas que mais me marcaram na conversa com o Jo\u00e3o foi o fato dele, mesmo com tanta viol\u00eancia fazendo parte de sua vida cotidiana, ainda sonhar: \u201cT\u00f4 cansado desse mund\u00e3o a\u00ed, pivete<\/em>. Ainda quero viver em paz!\u201d, disse ele, fazendo novamente olhos de nuvens. Que assim seja, Jo\u00e3o. Que agora esteja!<\/p>\n

*Publicado na<\/em> Revista Berro \u2013 Ano 01 \u2013 Edi\u00e7\u00e3o 03 \u2013 Dezembro\/Janeiro 2015<\/strong><\/em><\/a> (aqui<\/em>, <\/span>vers\u00e3o PDF<\/span><\/strong><\/em><\/a>)<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

“E quem era inocente hoje j\u00e1 virou bandido Pra poder comer um peda\u00e7o de p\u00e3o todo fudido Banditismo por pura maldade Banditismo por necessidade Banditismo por uma quest\u00e3o de classe! 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