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{"id":156,"date":"2013-10-30T16:17:03","date_gmt":"2013-10-30T19:17:03","guid":{"rendered":"http:\/\/revistaberro.com\/?p=156"},"modified":"2015-06-09T17:20:13","modified_gmt":"2015-06-09T20:20:13","slug":"a-fortaleza-apavorada-e-o-que-ela-esconde","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/revistaberro.com\/colunas\/impressoesmundanas\/a-fortaleza-apavorada-e-o-que-ela-esconde\/","title":{"rendered":"A \u201cFortaleza Apavorada\u201d e o que ela esconde"},"content":{"rendered":"

(Ilustra\u00e7\u00e3o: Pawel Kuczynski<\/em>)<\/p>\n

Diariamente, pipoca nas manchetes e p\u00e1ginas dos ve\u00edculos de comunica\u00e7\u00e3o not\u00edcias de sequestros, roubos, assaltos, homic\u00eddios… A olhos vistos, percebe-se a escalada da viol\u00eancia nas metr\u00f3poles brasileiras. Natural. O pa\u00eds \u201ccresce\u201d, torna-se o sexto mais rico do mundo, mas, simultaneamente, mant\u00e9m-se como um dos mais desiguais na distribui\u00e7\u00e3o dessa riqueza. Paralelamente a isso, percebe-se a escalada do pensamento conservador e raso de que a viol\u00eancia se combate com mais policiais nas ruas e ainda mais repress\u00e3o.<\/p>\n

Oportunistas e metidos a espertalh\u00f5es engra\u00e7ados, apresentadores de programas policialescos, os programas-lixo, se aproveitam do fen\u00f4meno social da viol\u00eancia urbana e se elegem vereadores, deputados e senadores em todo o Brasil com um discurso superficial de \u201ccombate ao crime\u201d. Estes senhores da guerra exploram, apelam, espetacularizam e se lambuzam feitos porcos no chiqueiro com a viol\u00eancia que, em grande parte, dizima jovens nas periferias brasileiras. Pior: ao se elegerem para seus mandatos legislativos, nada fazem no sentido de apontar solu\u00e7\u00f5es ou, no m\u00ednimo, perspectiva de solu\u00e7\u00e3o \u00e0 \u00e1rea de seguran\u00e7a p\u00fablica<\/a>.<\/p>\n

N\u00e3o podemos perder de vista que quem mais morre nessa guerra s\u00e3o os jovens negros da periferia. A mortalidade de jovens negros entre 15 e 29 anos \u00e9 tr\u00eas vezes maior do que entre jovens brancos. Segundo estudo do IPEA de 2011, intitulado Din\u00e2mica Demogr\u00e1fica da Popula\u00e7\u00e3o Negra Brasileira<\/a>, o grau de vitimiza\u00e7\u00e3o da popula\u00e7\u00e3o negra \u00e9 assustador: h\u00e1 uma probabilidade 103,4% maior de um negro ser vitimado do que um branco. Quando se analisa s\u00f3 a faixa et\u00e1ria dos jovens de 15 a 25 anos, essa probabilidade aumenta para 127,6%. Com esses n\u00fameros alarmantes, constata-se que a viol\u00eancia homicida no Brasil tem rosto e cor: jovem, negro, morador da periferia das grandes cidades.<\/p>\n

\u00c9 como diz Edy Rock, dos Racionais MC\u00b4s, em Tempos Dif\u00edceis<\/a>: \u201cMenores carentes se tornam delinquentes e ningu\u00e9m nada faz pelo futuro dessa gente. A sa\u00edda \u00e9 essa vida bandida que levam roubando, matando, morrendo, entre si se acabando. Enquanto homens de poder fingem n\u00e3o ver, n\u00e3o querem saber, fazem o que bem entender. E assim… aumenta a viol\u00eancia. N\u00e3o somos n\u00f3s os culpados dessa consequ\u00eancia\u201d?<\/p>\n

No entanto, toda essa viol\u00eancia, consequ\u00eancia de uma desigualdade social hist\u00f3rica e escandalosamente ignorada, s\u00f3 \u00e9 problema para a classe m\u00e9dia burguesa quando ela adentra o seu nicho social, ou seja, quando ela sai das ruas de terra batida e enlameadas do Tancredo Neves ou do Lagamar e invade, sem pedir licen\u00e7a, os condom\u00ednios de luxo da Aldeota, do Meireles, do Coc\u00f3, etc. \u201cAs grades do condom\u00ednio s\u00e3o pra trazer prote\u00e7\u00e3o, mas tamb\u00e9m trazem a d\u00favida se \u00e9 voc\u00ea que est\u00e1 nessa pris\u00e3o\u201d (O Rappa, Minha Alma<\/em>). “A burguesia odeia o povo justamente por causa de todo esse mal que ela lhe faz; ela o odeia porque v\u00ea na mis\u00e9ria, na ignor\u00e2ncia e na escravid\u00e3o desse povo sua pr\u00f3pria condena\u00e7\u00e3o. […] Ela odeia o povo porque ele lhe d\u00e1 medo\u201d (Mikail Bakunin, O imp\u00e9rio knuto-germ\u00e2nico e a revolu\u00e7\u00e3o social<\/em>).<\/p>\n

O movimento \u201cFortaleza Apavorada\u201d reflete perfeitamente essa quest\u00e3o. O problema, logicamente, n\u00e3o \u00e9 ir \u00e0s ruas reivindicar por seguran\u00e7a ou qualquer outra quest\u00e3o que incomode. Pelo contr\u00e1rio, ocupar, ou melhor, invadir, tomar conta das ruas para protestar \u00e9 essencial \u00e0s sociedades; \u00e9 o que as mant\u00eam vivas, pulsantes, org\u00e2nicas. Sem o povo nas ruas, as sociedades estagnam no conservadorismo e na manuten\u00e7\u00e3o das velhas ordens do poder. Mas o \u201cFortaleza Apavorada\u201d n\u00e3o quer mexer nas estruturas sociais. O \u201cFortaleza Apavorada\u201d quer ir tranquilo ao Iguatemi sem se deparar com algum \u201cbandido\u201d que roube seu Iphone 5. O \u201cFortaleza Apavorada\u201d quer mais policiais nas ruas e mais repress\u00e3o nas favelas. O \u201cFortaleza \u201cApavorada\u201d n\u00e3o quer que a viol\u00eancia social gerada pela quinta cidade mais desigual do mundo<\/a> respingue nele. N\u00e3o duvido nada que o \u201cFortaleza Apavorada\u201d queira tamb\u00e9m a redu\u00e7\u00e3o da maioridade penal. O “Fortaleza Apavorada” \u00e9 o movimento do pr\u00f3prio umbigo. N\u00e3o consegue enxergar al\u00e9m dele! O \u201cFortaleza Apavorada\u201d, em resumo, quer seguran\u00e7a para manter seu padr\u00e3o de vida burgu\u00eas sem ser importunado pelos exclu\u00eddos da cidade. Quando um movimento civil clama por seguran\u00e7a social, mas ignora completamente as causas da inseguran\u00e7a – desigualdade, exclus\u00e3o e marginaliza\u00e7\u00e3o sociais, criminaliza\u00e7\u00e3o da pobreza e da negritude, etc. – o que ele quer \u00e9 simplesmente manuten\u00e7\u00e3o de privil\u00e9gios. Ou n\u00e3o \u00e9?<\/p>\n

O pior \u00e9 que a l\u00f3gica de pensar que a quest\u00e3o da seguran\u00e7a se resolve com mais policiais e mais repress\u00e3o parte tamb\u00e9m do estado. Em nota p\u00fablica<\/a>, o Gabinete do Governo do Estado do Cear\u00e1 elencou \u201cmelhorias\u201d na seguran\u00e7a p\u00fablica cearense nos \u00faltimos anos: dobrou o n\u00famero de policiais, reequipou as pol\u00edcias com armamentos modernos, implantou a Academia de Pol\u00edcia… Na nota, nenhuma men\u00e7\u00e3o ao desequil\u00edbrio social alarmante que separa cruelmente os sonhos de vida do Jos\u00e9, da Vila Cazumba, para o Maur\u00edcio, da Aldeota.<\/p>\n

A guerra civil nas favelas do Brasil \u2013 e Fortaleza n\u00e3o escapa \u00e0 regra \u2013 vai ricochetear cada vez mais na classe m\u00e9dia, porque essa guerra fratricida j\u00e1 n\u00e3o cabe mais apenas nas periferias. Ela transbordou para os bairros \u201cnobres\u201d com o aprofundamento da sociedade do consumo. \u201c\u00c9 verdade que o capitalismo manteve como constante a extrema mis\u00e9ria de tr\u00eas quartos da humanidade, pobres demais para a d\u00edvida, numerosos demais para o confinamento: o controle n\u00e3o s\u00f3 ter\u00e1 que enfrentar a dissipa\u00e7\u00e3o das fronteiras, mas tamb\u00e9m a explos\u00e3o dos guetos e favelas\u201d (Gilles Deleuze, Post-Scriptum sobre as Sociedades de Controle<\/em>). O Jos\u00e9 da Vila Cazumba quer tamb\u00e9m o tablet que o Mauricinho da Aldeota tem. Quer tamb\u00e9m o carro, as roupas de grife e o mesmo padr\u00e3o de vida. A l\u00f3gica da sociedade atual, do espet\u00e1culo, \u00e9 extremamente perversa, principalmente porque idealiza padr\u00f5es de consumo e de comportamento a todos, mas restringe o acesso \u00e0s \u201cbenesses\u201d dessa sociedade patol\u00f3gica a uma casta privilegiada.<\/p>\n

\u201cA primeira fase da domina\u00e7\u00e3o da economia sobre a vida social acarretou, no modo de definir toda realiza\u00e7\u00e3o humana, uma evidente degrada\u00e7\u00e3o do ser para o ter. A fase atual, em que a vida social est\u00e1 totalmente tomada pelos resultados acumulados da economia, leva a um deslizamento generalizado do ter<\/em> para o parecer<\/em>\u201d, diz Guy Debord, em seu cl\u00e1ssico A sociedade do espet\u00e1culo<\/em>. Por meio da embriaguez causada pelo fetiche das apar\u00eancias aliada \u00e0s iniquidades sociais hist\u00f3ricas, \u00e9 o movimento do n\u00e3o-vivo, da nega\u00e7\u00e3o da vida real, da busca pelo parecer que acarreta a viol\u00eancia.<\/p>\n

Portanto, est\u00e1 evidente que o caminho para a paz social \u00e9 o da desconstru\u00e7\u00e3o da ordem s\u00f3cio-simb\u00f3lica e imag\u00e9tica (as imagens t\u00eam poder!) que nos est\u00e1 imposta; do rompimento total com o atual estado das coisas; da supera\u00e7\u00e3o da l\u00f3gica do consumo de ilus\u00f5es; da emancipa\u00e7\u00e3o do homem da l\u00f3gica mercantil; da constru\u00e7\u00e3o da vida em sociedade calcada na ess\u00eancia, n\u00e3o na apar\u00eancia. Enfim, enquanto n\u00e3o se superar essa sociedade e todos os seus v\u00edcios delet\u00e9rios, a paz social t\u00e3o sonhada n\u00e3o passar\u00e1 de um simulacro maquiado de UPPs, policiais em Hilux, academias de pol\u00edcia ou coisas que as valham.<\/p>\n

\u201c\u00c9 pela paz que eu n\u00e3o quero seguir admitindo\u201d! (O Rappa – Minha Alma\/ A Paz Que Eu N\u00e3o Quero)<\/p>\n

*Artigo publicado tamb\u00e9m na<\/em> Adital<\/strong><\/a>.<\/p>\n