(Ilustra\u00e7\u00e3o: Chappate<\/em>)<\/p>\n

O amigo que me contou o que relatarei a seguir n\u00e3o \u00e9 de inventar hist\u00f3ria. Depois de ouvi-la, acreditei que, sim, as coisas ainda podem se aprumar, se ajeitar, quem sabe. Conta que a hist\u00f3ria aconteceu domingo, no PV, no jogo do Le\u00e3o contra o Santa Cruz, de Recife. Foram ao cl\u00e1ssico nordestino em cinco. Na caranga a caminho do est\u00e1dio, entre os tricolores, um black bloc \u2013 \u201ccom vandalismo, sempre\u201d -, como gosta de dizer, e um policial, do Choque. Amigos. Aparentemente diferentes, essencialmente parecidos. Falavam da manifesta\u00e7\u00e3o do dia anterior, 7 de setembro, quando houve mais uma vez ataque violento aos manifestantes e diversas outras situa\u00e7\u00f5es de abuso policial. Os black blocs, por sua vez, na linha de frente, depredavam lojas, bancos, carros, no cora\u00e7\u00e3o da Aldeota, o bairro s\u00edmbolo da burguesia fortalezense.<\/p>\n

– Ei menin\u00e3o, te vi ontem descendo ali pela rua do Drag\u00e3o, j\u00e1 com a camisa reserva no ombro, disse o pol\u00edcia.<\/p>\n

– Foi mesmo mah? E tu tava aonde?, indagou o black bloc.<\/p>\n

– Viu aquelas viaturas escoradas ali perto do Semin\u00e1rio da Prainha?<\/p>\n

– Hanhan\u2026<\/p>\n

– Ent\u00e3o, tava ali e te vi descendo com outro bicho, j\u00e1 instigado.<\/p>\n

– Hahahahaha\u2026 Maxo, ontem a galera se garantiu. Destru\u00edmos v\u00e1rios bancos, \u201clojazonas\u201d de marca\u2026 Ooora cumpade, esses safados roubam direto da gente mah, \u00e9 s\u00f3 sugando\u2026 Tem que fazer alguma coisa pra eles se incomodarem, verem que o neg\u00f3cio t\u00e1 ruim pro lado deles, que o povo n\u00e3o aguenta mais essa opress\u00e3o, mah.<\/p>\n

– \u00c9\u00e9\u00e9\u2026 Esse bicho \u00e9 doido! Hehehe! Mas tu viu l\u00e1 que o comandante s\u00f3 mandou atacar mesmo naquela hora ali da Santos Dumont com Desembargador, n\u00e9? Deixou voc\u00eas na limpeza por um temp\u00e3o.<\/p>\n

– E tu tava atirando mah?<\/p>\n

– N\u00e3o, n\u00e3o. S\u00f3 com o escudo. Fiquei com a miss\u00e3o de fazer a prote\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

-Ei maxo, e se tu tivesse com a miss\u00e3o de atirar, tu disparava?<\/p>\n

– Ia fingir. Levantava a arma, fazia a posi\u00e7\u00e3o de tiro, mas s\u00f3 de \u201cag\u00e1\u201d.<\/p>\n

– \u00c9 mesmo \u00e9 mah?, disse o black bloc, levantando mais \u00e0 testa uma das sobrancelhas e encolhendo a outra, numa atitude de descren\u00e7a.<\/p>\n

– S\u00e9rio! \u00d3ia a\u00ed, esse bicho num acredita n\u00e3o.<\/p>\n

– Se voc\u00ea t\u00e1 dizendo, acredito mah, acredito!<\/p>\n

– Ei, maxo, vamos guardar o carango aonde? Aqui tem mais vaga n\u00e3o, cumpade. Lotado!, disse outro tricolor, interrompendo a conversa e j\u00e1 doido para tomar uma gelada na barraquinha da esquina, comendo, para acompanhar os goles, um churrasquim de gato.<\/p>\n

Guardaram o carro pr\u00f3ximo \u00e0 Bar\u00e3o do Rio Branco, a poucos quarteir\u00f5es do PV. No caminho, diziam da import\u00e2ncia do Le\u00e3o ganhar aqueles tr\u00eas pontos, uma vez que os resultados da rodada tinham sido todos favor\u00e1veis. Depois de algumas cervas, entraram. Casa cheia, na\u00e7\u00e3o tricolor fazendo uma festa bonita. O Fortaleza pressionou o Santinha o primeiro tempo quase todo. Mas o gol n\u00e3o veio. Pior, Assisinho, melhor jogador, ainda saiu machucado. No intervalo, chupando um marujinho cada um, que \u00e9 de lei, o black bloc e o pol\u00edcia retomaram o di\u00e1logo sobre o dia anterior:<\/p>\n

– Pois \u00e9, maxo\u2026 E os infiltrados, tem um bocado viu. O n\u00eago se liga!, disparou o revolucion\u00e1rio black bloc.<\/p>\n

– T\u00f4 ligado. \u00c9 pra pol\u00edcia saber pra onde a galera t\u00e1 indo, o que t\u00e3o planejando. Tinha da PM, da Federal, da Civil\u2026<\/p>\n

– Vixi, cumpade. V\u00e1rios, n\u00e9, mah?<\/p>\n

– \u00d3! V\u00e1rios!<\/p>\n

– Ei, maxo, nas horas l\u00e1 do p\u00e2nico, quando voc\u00eas v\u00eam pra cima mesmo, tu tem que dar o toque pro n\u00eago da rota de fuga, mah. Pra num rodar, n\u00e9, cara?, brincou s\u00e9rio o black bloc, com o sorriso escorregando pro canto da boca.<\/p>\n

– Hehehehe. T\u00f4 ligado. Esse bicho\u2026. \u00c9 uma onda!, disparou o pol\u00edcia.<\/p>\n

– T\u00f4 falando \u00e9 serio, baitola!, enfatizou o revolucion\u00e1rio, abrindo mais os olhos e fazendo um grande gesto de m\u00e3os.<\/p>\n

– Pode crer, vai dar certo. A gente conversa.<\/p>\n

– Leva o celular na pr\u00f3xima, maxo. Esquece n\u00e3o! Hehehe!<\/p>\n

O pol\u00edcia balan\u00e7ou a cabe\u00e7a positivamente e riu t\u00edmido. \u00c0quele momento, pensou na contradi\u00e7\u00e3o que \u00e9 trabalhar naquela corpora\u00e7\u00e3o. Queria mesmo era estar do outro lado. Mas n\u00e3o. A vida \u00e9 nua e crua. Pede, ami\u00fade, pragmatismo. Ele precisa se sustentar, pagar a presta\u00e7\u00e3o do carro e a ra\u00e7\u00e3o do cachorro, al\u00e9m de ajudar a m\u00e3e nas despesas dom\u00e9sticas. Precisa daquele dinheiro, mesmo que ele venha manchado de viol\u00eancia e de militarismos dos quais discorda. No entanto, o paradoxo o incomoda; tira-lhe, \u00e0s vezes, at\u00e9 mesmo o sono.<\/p>\n

Recome\u00e7a o segundo tempo. O Le\u00e3o continua pressionando. Faz dois gols antes dos vinte minutos. A torcida vibra feliz. O black bloc e o pol\u00edcia se abra\u00e7am efusivamente. Tiram a camisa, e sacodem-na para o alto, ao ritmo da torcida: Le\u00e3\u00e3\u00e3oooo, n\u00f3s gostamos de voc\u00ea, n\u00f3s gostamos de voc\u00ea, n\u00f3s gostamos de voc\u00ea\u2026<\/p>\n

Ao fim da partida, com vit\u00f3ria do Tricolor de A\u00e7o, comemoram comendo um feij\u00e3o verde regado a cervejas. O pol\u00edcia n\u00e3o bebe cerveja, mas come que \u00e9 uma beleza. Perto de chegarem aos seus lares, no caminho, combinam o surfe semanal.<\/p>\n

– Maxo, no Port\u00e3o tem altas! E se n\u00e3o tiver l\u00e1, tem no Titan ou no Vizinho. N\u00e9 n\u00e3o, Paiacas?, diz o black bloc, fazendo um gesto incisivo de queixo, apontando para um terceiro tricolor, como que pedindo uma confirma\u00e7\u00e3o das \u201caltas\u201d ondas.<\/p>\n

– Tem viu, menino. Altas! Vale demais, mah. M\u00e1quina de ondas. \u00c9 um crowd, mas tem onda pra todo mundo. De rocha! E com uma forma\u00e7\u00e3o irada!<\/p>\n

– Pois, ent\u00e3o, vamo nessa. A gente se fala a\u00ed, disse o pol\u00edcia, \u00e0 beira de casa, apertando as m\u00e3os dos tricolores e, em seguida, entrando no jardim e acarinhando o seu cachorro, que o esperava ansioso e saltitante, balan\u00e7ando o rabo.<\/p>\n

O sonho do pol\u00edcia \u00e9 sair da pol\u00edcia, para acabar de vez com as crises existenciais que o paradoxo da sua condi\u00e7\u00e3o lhe imp\u00f5e. Caiu de paraquedas num vespeiro, e, para melhor passar, teve de transigir \u00e0s ordens das vespas. Mas n\u00e3o v\u00ea a hora de livrar-se definitivamente das picadas. Quer morar numa casa tranquila, perto da praia, aonde possa ir andando surfar, com espa\u00e7o para cultivar seus p\u00e9s de planta, brincar com os cachorros e, quem sabe um dia, correr com os filhos. Como gosta muito de crian\u00e7as \u2013 tem sobrinhos e os quer um bem danado -, sonha com o dia em que n\u00e3o ver\u00e1 mais nenhuma delas fazendo malabarismos no sinal para sobreviver ou reclamando fome embaixo das marquises dos viadutos. Quer viver em paz, sem precisar pegar em armas, pegando ondas. S\u00e3o geralmente essas coisas que se confidencia quando p\u00f5e a cabe\u00e7a no travesseiro e conversa com seus bot\u00f5es, antes de pegar no sono.<\/p>\n

O sonho do black bloc, anarquista, \u00e9 lutar pelo fim do capitalismo, para que as pessoas possam viver verdadeiramente livres do fetiche da apar\u00eancia, verdadeiramente livres das opress\u00f5es invis\u00edveis, mas que oprimem. Quer uma casa perto da praia, aonde possa surfar sempre, com espa\u00e7o para cultivar seu pomar, sua hortinha, seus p\u00e9s de planta, inclusive sua ganja. Quer viver em paz, com sabedoria e simplicidade, pegando ondas. \u201cEm paz\u201d n\u00e3o quer dizer que n\u00e3o queira tamb\u00e9m lutar por uma nova sociedade, justa e livre. Mastiga esses pensamentos soltos no primeiro sono, aquele de leve, quando ficamos em cima do muro, entre a crueza do consciente e as profundezas mais enigm\u00e1ticas do inconsciente.<\/p>\n

O black bloc e o pol\u00edcia, no frigir dos ovos, s\u00e3o aparentemente diferentes, mas essencialmente parecidos. Enxerindo-me a fazer uma releitura de Sartre, diria que a ess\u00eancia precede a apar\u00eancia.<\/p>\n

* Artur Pires \u00e9 amigo pra toda hora do black bloc e do pol\u00edcia.<\/strong><\/em><\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

(Ilustra\u00e7\u00e3o: Chappate) O amigo que me contou o que relatarei a seguir n\u00e3o \u00e9 de inventar hist\u00f3ria. Depois de ouvi-la, acreditei que, sim, as coisas ainda podem se aprumar, se ajeitar, quem sabe. Conta que a hist\u00f3ria aconteceu domingo, no PV, no jogo do Le\u00e3o contra o Santa Cruz, de Recife. Foram ao cl\u00e1ssico nordestino […]<\/p>\n","protected":false},"author":2,"featured_media":137,"comment_status":"open","ping_status":"open","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"_mi_skip_tracking":false,"_monsterinsights_sitenote_active":false,"_monsterinsights_sitenote_note":"","_monsterinsights_sitenote_category":0,"footnotes":""},"categories":[20,5],"tags":[],"yoast_head":"\n