Cartas a Ardilla: Pandemia



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(Ilustração: Lara Albuquerque)

Pandemia, 28 de março de 2020

Estimado Ardilla,

Hoje me lembrei de quando eu era criança e andava de bicicleta com a minha irmã pelas ruas de um dos muitos bairros onde moramos. Esta sensação de liberdade infantil é a melhor que posso sentir. Aqui, já começamos a quarentena e eu sinto muito ter lido Camus logo nos primeiros dias — clichê de escritores fracassados… eu não perco a mania de ser previsível e miseravelmente sensível. Os corpos me fazem eco e eu sonho com cadáveres quase todos os dias. Para você, que nunca gostou muito do Surrealismo, te pergunto: como viver sem ele diante de tudo isso?

Nestes dias, escrevo poemas ruins, preparo comidas estranhas e faço amor por telefone. Confesso que o último já não me deixa tão constrangida como no início e fico pensando… não era mesmo verdade que nos transformaríamos em máquinas? Talvez, agora, eu entenda mais os luditas, ou talvez seja só excesso de confusão. Isso de estar presa é para os fortes, já tinha ouvido algo de alguém do Carandiru.

Ontem eu vi um gato amarelo. Não sei se você lembra que quando eu tinha crises de gastrite nervosa, eu sempre dizia que carregava gatos no estômago. Escrevi isso, quero que você leia porque eu sei que fará sentido pra você.

uma alegria pálida

amarela

como a cor do gato

na janela

no estômago

na casa-cela

Sim, tive inveja do gato. Agora, enquanto escrevo esta carta sem saber se os Correios já estão funcionando, algumas pessoas batem palmas e outras cantam o Hino Nacional das varandas de suas casas. Elas fazem isso todos os dias, enquanto eu leio livros eletrônicos e todos os textos terríveis que chegam para edição.

Eu conheci uma pessoa. O nome dele é Angel. Ele mora na calçada em frente e gosta de mortadela. Outro dia eu perguntei pra ele se o diabo ia, finalmente, nos carregar. Ele sorriu, não disse nada. Seu sorriso carente de dentes me deu vontade de abraço. Não nos abraçamos. Há uns dias ele não aparece. Ontem eu comi mortadela, mas não sei se sonharei com o diabo. Espero que sim, os dias estão muito monótonos por aqui.

Espero que esta carta chegue bem ao seu destino. Sinto um pavor imenso. Não durmo. Mas sigo acreditando que nos encontraremos e comeremos uma grande e brilhosa maçã vermelha no ventre de algum parque em um belo dia de outono.

Cuídate mucho,

                                      Amanda 

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Este texto é o segundo da série Cartas a Ardilla, de Vanessa Dourado.

Leia o primeiro: Cartas a Ardilla: Cuba


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