“Mãezinha”: uma categoria local que põe em suspensão o ethos violento



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(Ilustração: Juliana Lima)

Dentro do espectro de relações morais das atividades delitivas no Grande Tancredo Neves (GTN), talvez nenhuma outra categoria local tenha mais capital simbólico positivado do que a “mãezinha”. Conversei com muitas mães cujos filhos estavam diretamente envolvidos com a prática de crimes, como assaltos ou tráficos de drogas e armas. 

Sâmia, 48 anos, tem que conviver com a iminência de sua casa ser invadida por criminosos rivais ao grupo de seu filho, Bernardo, que também é viciado em crack, e por isso rouba objetos dentro de casa e nas ruas. Ela me relata de uma vez em que varejistas do comércio de drogas foram à sua residência fazer a cobrança, dizendo que iriam matar o garoto caso ele não pagasse as dívidas com a “bocada”. Sâmia teve que desfalcar as despesas domésticas para salvar a vida do filho. Isso ocorreu muitas vezes, de diferentes formas. Quando, por exemplo, deixou empenhado o cartão do programa federal “Bolsa Família” com traficantes para que estes sacassem o dinheiro referente às dívidas de Bernardo. Sâmia me relata outros episódios em que não mataram Bernardo pelos pedidos clementes de indulgência que fazia diante dos “vacilos” do filho.

A “mãezinha” surge, muitas vezes, como personagem que consegue mediar relações criminais, pois sua força simbólica está justamente no fato de que os outros “bandidos” também têm suas “mãezinhas” e, portanto, se sensibilizam ao, psicologicamente, identificarem na situação algum aspecto de paralelismo emocional com suas histórias.

Certa vez, quando Bernardo roubou uma televisão para trocar por “pedra”, a própria Sandra o denunciou à polícia. Em vez de prendê-lo de imediato, os policiais sequestraram Bernardo e ameaçaram-no matar caso ele não denunciasse “bocas” onde os policiais pudessem negociar mercadorias políticas. 

Sâmia relembra o dia: “Ó, teve um fragrante, né. Só que veio um policial diferente, porque ele já sabia de tudo, onde é que tava a televisão, tudo. Mas saiu de bocada em bocada com ele, batendo, tomando droga, levando dinheiro. Isso aqui no Tranquedo, no Lagamar, no Castelão… Aí eles saíram derrubando bocada, tomando dinheiro, tomando a droga dos menino. Aí deixaram ele aculá e vieram me avisar. Tavam com ele, a cada passo que ele andava era uma chibatada que ele caía. Eu disse ‘Eu chamei pra buscar a televisão, e pra levar ele preso, né’. Aí levaram pro 13º [Distrito Policial]. Aí eu pedi: ‘pelo amor de Deus, deixa esse menino solto não, deixa ele preso que eu não aguento mais’”.

O desespero de Sâmia é recorrente na história de vida de muitas “mãezinhas” que têm que aprender a conviver com episódios violentos dentro de suas casas protagonizados por filhos envolvidos com atividades delitivas: “O meu filho mesmo eu não botei pra fora porque, enfim, eu tenho coração. Porque é filho, mas… depois do que ele já fez eu já tinha que ter botado pra fora”, finaliza.

Noutro dia do trabalho de campo, eu conversava com Papagaio em um dos territórios do GTN quando sua mãe surgiu na rua vindo da feira. Ele me contava sobre as agruras da prisão, quando interrompeu o diálogo para cumprimentar sua genitora: “Oi mãezinha, bença! Tô sossegado, tô só conversando com o rapaz aqui”, disse. Virando para mim, completou: “Essa foi a que sofreu mais eu tando preso. Eu quero isso pra minha, mãe? Quero mais não, né? Ela me perdoa de tudo o que eu fiz, porque no fundo ela sabe que eu tenho bom coração”. Este momento do nosso diálogo foi excepcional porque envolveu uma amorosidade de Papagaio que não parecia em nada com todo o resto da sua narrativa, recheado de eventos violentos, assassinatos, traumas, etc.

A “mãezinha”, para muitos “criminosos”, envolve uma dimensão semântica de afeto e respeito inigualáveis em relação a qualquer outro personagem do seu convívio social. Quando querem se lamentar de desilusões amorosas no campo das relações com mulheres, enfatizam, quase como um ditame popular: “Amor? Só de mãe!”.

Samurai, traficante varejista de drogas, me contou que sua mãe é “obreira” de uma das muitas igrejas neopentecostais do bairro e, como sabe da ocupação do filho, “ela ora muito por mim”, diz. Inclusive quando intui “revelações de deus”, avisa ao filho previamente sobre episódios que podem colocar em risco sua vida. Há um evento em que Samurai acredita ter sido salvo por um presságio de sua mãe. Não consigo inferir até que ponto a história é verossímil ou apenas um arroubo oratório de Samurai para positivar ainda mais a dimensão representativa de sua “mãezinha”:  Um dia desses ela chegou pra mim falando que os cara ia levar uns tiro no beco, mah. Eu cheguei aqui e vi um elemento bem ali, né. Aí eu falei: ‘Aquele elemento lá oh… no escuro’. Eu vim tirar a moto daqui, quando vim tirar a moto, os cara começou a atirar. Trá, trá, trá… Saí vuado. Chega nem respirava, parceiro, ó. Olha aí minha mãe, ó… minha mãe falou comigo, ó. Foi da igreja.”

A mãe de Raposão também é ciente das atividades que o filho desenvolve: tráficos de arma e drogas e assaltos. Ele comenta sobre os cuidados maternos e a opção de não visitá-lo no presídio quando ele esteve encarcerado. Segundo Raposão, a maior preocupação dela é que ele seja assassinado: “Ela disse: ‘Meu filho, cuidado pra não morrer’. Aí eu explico: ‘Mãe, tô só tentando quitar umas coisas aqui, levantar minha goma, meu geral, né? Uma casinha, isso e aquilo outro’. Aí ela: ‘Meu filho, a gente aceita você do jeito que você é, mas quando você for preso a gente num vai te visitar não’”.

Percebo que ao trazerem à tona a categoria “mãezinha”, há uma dimensão de transcendência subjetiva que põe em suspensão, como em caráter de liminaridade, o ethos violento e viril do qual se valem os agentes pobres para construírem suas personalidades criminais. Na pesquisa de campo, nestes momentos, quando falaram das mães, com a ressalva de raras exceções, na maioria das vezes eles se mostraram mais sensíveis às afetividades humanas, e às narrativas de amorosidade, respeito e carinho. 

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A série Antropologia do crime no Ceará é publicada semanalmente no #siteberro. Veja abaixo os textos anteriores. 

artur@revistaberro.com / revistaberro@revistaberro.com

i. A dimensão ética na pesquisa de campo

ii. Pesquisando o “mundo do crime” e inserindo-se no “campo”

iii. Grande Tancredo Neves: formação dos territórios

iv. As relações sociais das camadas populares

v. A feira como arte da oralidade popular

vi. O favelês cearense

vii. Estabelecidos e outsiders: a favela dentro da favela

viii“Trabalhadores” e “bandidos”: entre separações e aproximações

ix. Sistema de relações sociais do crime: uma rede de ações criminais hierárquicas

x. “O dinheiro fala mais alto, [com ele] se torna mais fácil de fazer justiça”: A violência do aparelho judiciário

xi. “Não confio na polícia”: A relação de descrença entre a classe trabalhadora e os policiais

xii. A economia da corrupção que move a relação entre polícia e “bandidos”

xiii. “O crime nunca vai acabar por causa da polícia”: a participação policial decisiva nas relações criminais

xiv. Tecnopolítica da punição: A função econômica do encarceramento

xv. Estado punitivo-penal e a produção social da delinquência

xvi“Cadeia é uma máquina de fazer bandido”

xvii. A “escolha” é uma escolha? Compreendendo o ingresso nas relações criminais

xviii. Consumo, dinheiro e sexo: a tríade hedonista da carreira criminal

xix. Traumas, complexos e a luta por reconhecimento (parte I)

xx. Traumas, complexos e a luta por reconhecimento (parte II)

xxi. “Fura até o colete dos homi”: As armas como símbolo dominante

xxii. Os códigos morais da criminalidade favelada (parte I)

xxiii. Os códigos morais da criminalidade favelada (parte II)