A eficácia simbólica das facções



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(Ilustração: Lara Albuquerque)

Tão pujante quanto o discurso público que demoniza as facções criminais é a sua mística grupal, seu poder mágico de atração. Como, então, compreender a adesão voluntária e massiva de muitos jovens das periferias brasileiras às falanges do “crime”? 

No seu texto Psicologia das massas e análise do eu, Freud considera que o liame que engloba os agentes em um coletivo – como uma facção, por exemplo – tem natureza libidinal: “o indivíduo entra no grupo sob condições que lhe permitem anular os recalques de suas moções pulsionais inconscientes”. Para o criador da psicanálise, a problemática da psicologia das massas está umbilicalmente ligada à nova espécie de sofrimento psicológico na modernidade, ou seja, o mal-estar da civilização traz em seu bojo a decadência do indivíduo enquanto instância de autorregulação psíquica devido às injunções e castrações sociais. Face ao seu desmantelamento psíquico, o indivíduo procura nos grupos a segurança ontológica que não encontra mais em si. A facção representa, portanto, o objeto que se configura como o ideal do eu, e é através de uma identificação recíproca e coletiva que ela se mantém com toda sua força simbólica. 

Trazendo a discussão para o campo da sociologia, Teresa Caldeira, em Cidade de muros: crime, segregação e cidadania, acredita que o ingresso de jovens numa socialidade violenta faccionados em grupos criminais tem relação inescapável com o a falência e a “privatização” do sistema judiciário, com os abusos e extralegalidades policiais, com a exclusão socioeconômica dos grandes centros urbanos, com a decadência da ocupação dos espaços públicos e com o colapso das instituições de representação do estatismo. 

Antônio Rafael Barbosa, em As armas do crime: reflexões sobre o tráfico de drogas no Rio de Janeiro, vai buscar em Deleuze e Guattari uma análise para os bandos criminais. Segundo aquele autor, as facções são fascinantes aos agentes pauperizados porque atualizam, à sua maneira, as propriedades de um rizoma: “o deslize de seus elementos uns sobre os outros, suas conexões que dissolvem os pontos e posições em favor das linhas, seu furtar-se às noções de medida, seu ‘molde’ que permite que ele seja rompido em qualquer lugar e volte a se refazer de outro modo”. Barbosa faz a ressalva, entretanto, de que, apesar da característica rizomática, as facções também comportam seu modelo de poder arbóreo, sua forma-Estado. 

De acordo com Carolina Grillo, em Coisas da Vida no Crime: Tráfico e roubo em favelas cariocas,  (2013), ao reivindicarem para si o monopólio legítimo da violência dentro um espaço físico-geográfico demarcado e controlado por uma gestão armada, vigilante e punitiva, as facções assumem sua forma-Estado. Segundo a autora, a eficácia simbólica das facções reside justamente em sua propriedade de transcendência, tal qual uma entidade supramaterial que engloba todo o poder, prestígio e honra que, então, se espraia imanentemente entre todos os “bandidos”. Esse simbolismo, diz Grillo, é homólogo às crenças em um poder sobrenatural nas sociedades ágrafas. Da mesma maneira que a posse “sobre a terra e objetos sagrados fora, em tantas sociedades e fases históricas, inalienável por serem os deuses e espíritos os seus proprietários originais; o direito de exploração comercial do território pelo tráfico é também inalienável porque pertence verdadeiramente à facção”. 

A característica de transcendência das facções foi também percebida por Karina Biondi ao analisar o Primeiro Comando da Capital, em Junto e misturado: uma etnografia do PCC. A autora conta que muitos dos seus interlocutores concebiam o PCC como um poder transcendente que não é passível de localização, mas está acima deles (“o comando está acima de tudo”, dizem os partícipes) e, desse lugar indizível, exerce o controle sobre seus integrantes, tal qual um deus onisciente. É, pois, a conexão de cada faccionado com essa “força” transcendente que possibilita os laços coletivos que formam a unidade. A autora sublinha que no PCC convivem uma rede rizomática e também a forma-Estado, numa leitura similar à de Barbosa. Mas, na análise de Biondi, o rizoma e a arborescência não se opõem como dois modelos antagônicos que ocorrem em dimensões ou tempo-espaços distintos; eles atuam em simultaneidade: enquanto um age como decalque transcendente para frear o rizoma, o outro atua como processo imanente que desmantela o modelo da árvore-raiz. Dessa maneira, ao tempo em que o PCC tenta consolidar uma organização contra-Estado, não cessam de pulular em sua estrutura idiossincrasias que contêm em si agenciamentos próprios à forma-Estado. 

Todavia, ao pensar a eficácia simbólica das facções me apoio sobretudo na teoria geral da magia de Marcel Mauss, e acessoriamente no conceito homônimo de Lévi-Strauss – este autor foi bastante influenciado por aquele. Antes de retomar o diálogo com estes autores, queria pontuar que os agenciamentos das facções assentam-se principalmente para intento de sua eficiência em um processo contínuo de rotinização e ritualização da violência. Stanley Tambiah, em seu estudo Leveling crowds: ethnonationalist conflicts and collective violence in South Asia, sobre os conflitos étnicos no sul da Ásia, argumentava que “the concepts of routinization and, more important, ritualization of collective violence may help us to perceive some of the organized, anticipated, programmed […] and phases of seemingly spontaneous, chaotic, and orgiastic actions of the mobs as aggressor and victimizer”.

Voltando a Mauss, em Esboço de uma teoria geral da magia, penso que a magia desses atos consiste na dinâmica de que eles “são capazes de produzir algo mais do que convenções: são eminentemente eficazes; são criadores, eles fazem”. Produzem crença generalizada de sua eficácia sui 238 generis em todos os partícipes. Na distinção que faz entre ritos religiosos e ritos mágicos, Mauss destaca que os que envolvem magia são amiúde ilícitos, proibidos e punidos, vistos como maléficos, e que é, dessa forma, a interdição destes últimos que marca o antagonismo entre os dois tipos de rito. Ora, nada mais próximo às ritualizações violentas próprias às facções, também proibidas e interditadas, vistas como “coisas do mal”. A eficácia simbólica das facções repousa, portanto, na interpretação maussiana que aqui faço, justamente no seu caráter de algo proibido, ilícito, um malefício social. 

Dialogando com Lévi-Strauss,  em A eficácia simbólica, é como se a eficácia simbólica que atua no par feiticeiro-doente se sublimasse na relação facção-faccionado. A facção é a transcendência ativa que resulta na imanência dos processos de objetivação-subjetivação do faccionado. A relação entre as duas instâncias não vai ser a cura propriamente, como no caso feiticeiro-doente, mas a assunção de um poder simbólico que confere ao membro autoconfiança psíquica e segurança ontológica a partir da projeção mágica que ele deposita na facção. A assimilação dessas experiências afetivas e subjetivas é reatualizada constantemente a cada nova ritualização, e estabelece parte significativa do sistema de crença coletiva dos partícipes no valor transcendente do bando. Em suma, a facção, nesse exemplo, toma o lugar do xamã como reorganizadora da cosmologia interna do grupo. 

Todavia, de maneira prática, o que são as facções? Não cabem aqui respostas teleológicas. No entanto, gosto da tentativa de definição do sociólogo Luiz Fábio Paiva, em “Aqui não tem gangue, tem facção”: As transformações sociais do crime em Fortaleza, ao pensar as vicissitudes que as facções provocaram em território cearense nos últimos anos: “Reconheço os limites da categoria nativa ‘facção’, mas parto do seu reconhecimento social para lidar com ela, no curso do texto, trabalhando a ideia de que a facção é um coletivo construído por associações, relacionamentos, aproximações, conflitos e distâncias necessárias entre pessoas comprometidas em fazer o crime, desenvolvendo relações afetivas profundas, laços sociais elaborados como de família e um sentimento de pertença desenvolvido pela crença em determinadas orientações políticas e éticas que a sustentam. São coletivos móveis de pessoas que fazem o crime como um meio de integrar a sociedade, pois não visam a sua destruição e sim à participação em um sistema de bens materiais e simbólicos agenciados de múltiplas maneiras. Em alguma medida, as facções são coletivos compostos por convergências de intencionalidades de alcances variados, com pessoas ocupando posições privilegiadas nos esquemas do coletivo e outras atuando nas suas margens”.

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A série Antropologia do crime no Ceará é publicada semanalmente no #siteberro. Clique nos links abaixo para acessar os textos anteriores. 

artur@revistaberro.com / revistaberro@revistaberro.com

i. A dimensão ética na pesquisa de campo

ii. Pesquisando o “mundo do crime” e inserindo-se no “campo”

iii. Grande Tancredo Neves: formação dos territórios

iv. As relações sociais das camadas populares

v. A feira como arte da oralidade popular

vi. O favelês cearense

vii. Estabelecidos e outsiders: a favela dentro da favela

viii“Trabalhadores” e “bandidos”: entre separações e aproximações

ix. Sistema de relações sociais do crime: uma rede de ações criminais hierárquicas

x. “O dinheiro fala mais alto, [com ele] se torna mais fácil de fazer justiça”: A violência do aparelho judiciário

xi. “Não confio na polícia”: A relação de descrença entre a classe trabalhadora e os policiais

xii. A economia da corrupção que move a relação entre polícia e “bandidos”

xiii. “O crime nunca vai acabar por causa da polícia”: a participação policial decisiva nas relações criminais

xiv. Tecnopolítica da punição: A função econômica do encarceramento

xv. Estado punitivo-penal e a produção social da delinquência

xvi“Cadeia é uma máquina de fazer bandido”

xvii. A “escolha” é uma escolha? Compreendendo o ingresso nas relações criminais

xviii. Consumo, dinheiro e sexo: a tríade hedonista da carreira criminal

xix. Traumas, complexos e a luta por reconhecimento (parte I)

xx. Traumas, complexos e a luta por reconhecimento (parte II)

xxi. “Fura até o colete dos homi”: As armas como símbolo dominante

xxii. Os códigos morais da criminalidade favelada (parte I)

xxiii. Os códigos morais da criminalidade favelada (parte II) 

xxiv. “Mãezinha”: uma categoria local que põe em suspensão o ethos violento

xxv. “Pirangueiro”, “cabueta”, “boca de prata”, “corre de ganso”, “atrasa lado”: compreendendo algumas categorias negativadas da moralidade criminal 

xxvi. “O crack veio pra acabar com tudo”: o noia como um “zé ninguém”

xxvii. “Você conquista o respeito, você num impõe”: A liderança nas relações criminais 

xxviii. As “brigas de trono”: as disputas pelo comando territorial

xxix. Socialidade juvenil periférica em Fortaleza dos anos 1990/2000: Dos bailes funks às quadrilhas do tráfico

xxx. Crônica de uma guerra entre quadrilhas de “traficantes”

xxxi. O costume guerreiro da criminalidade pobre

xxxii. Traficante é aquele que nem pega na droga

xxxiii. O assaltante como um nômade das práticas criminais

xxxiv. “O cara num nasceu pra viver no crime o resto da vida não”

xxxv. Uma tentativa de diálogo entre a “vida nua” e a crueldade


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