Cidade à venda? A Prefeitura de Fortaleza e o projeto de exclusão popular



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(Arte: Vitor Grilo/Revista Berro)

*Com colaboração de Vitor Grilo

Este ano completa-se uma década da Lei nº 62, de 2009, que instituiu o Plano Diretor de Fortaleza. E o que nós, que vivemos na capital cearense, temos a ver com isso? Muita coisa, muita coisa mesmo.

O Plano Diretor é assegurado em duas leis federais: a Constituição de 1988 e o Estatuto da Cidade, de 2001. Esta lei mais recente trouxe um acréscimo à Constituição: estabeleceu que no prazo máximo de dez anos o Plano Diretor tem que ser revisado e revogado para dar lugar a outro plano atualizado, de acordo com as dinâmicas culturais e a realidade socioeconômica da cidade. Portanto, 2019 seria teoricamente o ano em que a Prefeitura Municipal de Fortaleza (PMF) deveria organizar a elaboração do Plano Diretor em conjunto com o poder legislativo, com associações representativas das comunidades e com a população em geral – toda essa estrutura de participação prevista nas duas leis descritas acima.

No entanto, em pronunciamento na Câmara Municipal, o prefeito de Fortaleza Roberto Cláudio declarou que o projeto de lei do novo Plano Diretor de Fortaleza (PDF) só deve ir àquela Casa em 2020, após “ampla discussão com a sociedade”. Vale dizer que no início de julho de 2019, Berro teve acesso a um documento intitulado “Minuta do Projeto de Lei do Plano Diretor”. O material, todo desenvolvido com o timbre da Prefeitura de Fortaleza, trazia 109 artigos, além de uma carta, com espaço já reservado à assinatura do prefeito Roberto Cláudio, endereçada ao vereador Antônio Henrique da Silva, presidente da Câmara Municipal. A mensagem ao legislativo dizia que “a proposta de Plano Diretor tem como visão incorporar os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 para o desenvolvimento global, as diretrizes da Nova Agenda Urbana, da ONU Habitat III e o Plano Fortaleza 2040”.

Tivemos acesso também a um documento com o timbre da Secretaria de Urbanismo e Meio Ambiente (SEUMA) da Prefeitura de Fortaleza  intitulado “A Fortaleza de Oportunidades: Plano Diretor (2019-2029), versão preliminar“.  Este documento é composto por mais de 300 páginas, que trazem inclusive “estratégia de execução” do Plano Diretor para os próximos dez anos, algo que não foi sequer minimamente discutido com nenhum setor da sociedade civil.

Algumas entidades ligadas às reivindicações por moradia popular, como a Frente de Luta por Moradia, o Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará (LEHAB/UFC), e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), entre outras, tomaram conhecimento que gestores da PMF estavam se reunindo no primeiro semestre deste ano para tratar do Plano Diretor sem convocar as organizações comunitárias nem anunciar audiências públicas. Uma pessoa, que trabalha numa Organização Não Governamental (ONG) de habitação e preferiu não se identificar, contou à Berro que no final de junho gestores da Prefeitura se reuniram à noite na ONG para tratar do “Plano Diretor”, sem nenhuma convocação às muitas famílias atendidas pela Organização.

Temendo que o processo de discussão do Plano Diretor de Fortaleza (PDF) com a sociedade fosse prejudicado, entidades representativas acionaram o Ministério Público do Estado do Ceará (MP-CE), que montou uma comissão composta por 15 membros, sendo 14 destes promotores além da procuradora Isabel Maria Porto, para acompanhar os trabalhos relativos à revisão da Lei do PDF.Segundo estas entidades, a prefeitura queria fazer um debate apressado, encaminhando o projeto de lei no início do segundo semestre, com seu andamento no legislativo ocorrendo ao mesmo tempo do processo de discussão nos espaços de participação social.

O professor de direito e presidente da Comissão de Direito Ambiental da Ordem dos Advogados do Brasil/seção Ceará (OAB-CE), João Alfredo, que também conseguiu acesso à minuta, disse para a Berro:

“Ora, como falo em gestão democrática se esse projeto está sendo debatido a portas fechadas? Não tem como se falar em gestão democrática, em gestão inclusiva, em desenvolvimento sustentável com esse método. Esse método é a negação do princípio da participação popular”.

Após o caso repercutir em jornais da cidade, o anúncio público do prefeito de que vai adiar o encaminhamento do projeto de lei à Câmara para 2020, somente após “ampla discussão com a sociedade”, soou para as entidades de luta por moradia como um recuo estratégico da Prefeitura diante da mobilização que fizeram junto ao MP-CE, às universidades e à imprensa.

Fomos verificar com a Prefeitura se a minuta que tivemos acesso era realmente um documento elaborado pela administração municipal. A coordenação de comunicação confirmou a existência do documento: “O poder executivo municipal pediu às pastas da administração que trabalham com esse tema uma espécie de diagnóstico. Aquilo ali é um diagnóstico de uma das setoriais”. Quando indagado se sabia qual era a “setorial” à qual se referia, Moacir Maia, o coordenador, não soube responder: “Han? Não sei. Na minha função as coisas só chegam já pro estágio de publicização”. Segundo ele, “tudo o que a gestão não quer é um processo que não contemple o mais amplo debate com a cidade. Qualquer antecipação se traveste de um desserviço, porque não tem nada objetivamente definido, do ponto de vista de propositura. Existe uma determinação do prefeito Roberto Cláudio de que o processo de revisão do Plano Diretor de Fortaleza será fruto do mais amplo debate com a cidade”.

Na minuta que tivemos acesso, na carta endereçada ao presidente da Câmara Municipal, consta que o documento foi desenvolvido “pela Prefeitura de Fortaleza por meio da Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente (SEUMA), no setor da Coordenadoria de Desenvolvimento Urbano (COURB), tendo sido elaborada por uma equipe multidisciplinar”. Fomos verificar estas informações com a secretária responsável, Águeda Muniz. No seu gabinete, pediram para que falássemos com a assessoria de comunicação da secretaria. A assessoria então disse que estas informações não poderiam ser discutidas por telefone e pediu que enviássemos um e-mail com os questionamentos. Encaminhamos o e-mail no dia 29 de julho e ainda não obtivemos nenhuma resposta.

Relevante observar que já recebemos o retorno de uma comunicação do dia 2 de agosto, na qual a SEUMA encaminha nossa demanda sobre as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) para o Instituto de Planejamento de Fortaleza (Iplanfor), mas continua em silêncio a respeito de nossos questionamentos anteriores acerca da minuta do Plano Diretor.

O promotor estadual Eneas Vasconcelos, do Centro de Apoio Operacional da Cidadania, membro da comissão do MP-CE que vai acompanhar os trabalhos da revisão da Lei do Plano Diretor de Fortaleza, disse à Berro que o MP-CE teve audiência com o município, mas não foi apresentada nenhuma minuta. Para o promotor, antes de qualquer minuta, “tem que ter ampla participação social desde o momento da sua elaboração. E essa participação pode se efetivar de várias formas, entre elas audiências públicas, nos bairros, com os movimentos sociais, com a universidade, para discutir amplamente a confecção de cada uma das suas diretrizes e de seus eixos. O que não pode ser feito é apresentar o projeto pronto (na Câmara), nada disso. Tem que ter participação social, se isso não for feito, o que vai acontecer é a nulidade do Plano Diretor”.

De acordo Augusto César Paiva, vice-presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil/seção Ceará (IAB-CE), “ter direito à cidade significa poder decidir sobre os seus rumos. Para isso, é necessário ampliar e garantir os espaços de participação, por exemplo: as audiências públicas devem ser amplamente divulgadas para possibilitar um debate representativo e qualificado com o maior número de pessoas. Essas audiências devem ocorrer com bastante antecedência em relação ao prazo final de revisão dos planos. Além do mais, a noção de participação deve ser vista como possibilidade real de participação popular e de fazer valer seus entendimentos: deve-se pensar nas quantidades de audiências públicas, na forma de divulgação, seus locais, horários, possibilidade de acesso, meios de transporte, linguagem utilizada, documentos a serem apresentados, método de condução e de encaminhamentos”. Segundo o arquiteto, o Plano Diretor de Fortaleza deveria ter sido revisado até 1º de fevereiro de 2019, uma vez que foi instituído pela Lei Complementar 062, de 2 de fevereiro de 2009. “Por que não se cuidou com a antecedência necessária e só agora o poder municipal está acordando para essa obrigação?”, questiona.

O presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB/CE, João Alfredo, comentou a respeito de uma “situação meio estranha”; segundo ele, a discussão sobre o Código da Cidade, que foi sancionado no dia 6 de agosto deste ano pelo prefeito Roberto Cláudio, deveria ocorrer somente depois do debate do Plano Diretor.  Para o professor de direito, do ponto de vista da hierarquia das leis municipais, o Plano Diretor só está abaixo da Lei Orgânica, e por isso sua discussão deveria ser realizada anterior ao Código da Cidade. “Não teve uma revisão do Plano Diretor, não teve uma avaliação”, reclama o professor.

A respeito do novo Código da Cidade, sancionado neste mês pelo prefeito, o presidente da Comissão de Políticas Urbanas e Direito Urbanístico da OAB/CE, Bruno Montenegro, afirmou que a participação popular na elaboração desta lei “ficou aquém do desejado, restringindo-se à realização de cinco audiências públicas na Câmara Municipal de Fortaleza”. Segundo o advogado, que acompanhou as discussões do projeto, “o aprofundamento e o debate não alcançaram o nível desejado. O Código da Cidade é um documento de mais de 200 páginas e mil artigos, o que certamente demandaria um longo período de análise e diversos encontros para debater tantas regras e previsões”.

Ora, diante da fala do presidente da Comissão de Políticas Urbanas da OAB/CE, percebe-se que realizar somente cinco audiências públicas para debater com a sociedade um documento de 200 páginas e mil artigos é bastante insuficiente. A expectativa das entidades envolvidas na luta pela garantia de um Plano Diretor que contemple amplamente os espaços de participação social é que não se repita o mesmo processo de pouca participação social como ocorreu na elaboração do Código da Cidade.

O mercado imobiliário e a degradação do meio ambiente

É possível conciliar o mercado imobiliário de uma metrópole de quatro milhões de pessoas como a Grande Fortaleza com a preservação do meio ambiente?  De que maneiras o Plano Diretor pode ser inclusivo e democrático, no tocante do direito à cidade? Quais as mediações possíveis? Para Augusto César Paiva, vice-presidente do IAB-CE, essa mediação não é possível, pois “o objetivo do capital imobiliário é auferir lucro por meio da venda de empreendimentos imobiliários. São objetivos inconciliáveis (com o direito ao meio ambiente e à cidade). Infelizmente, Fortaleza tem sido transformada, cada vez mais, em mercadoria. Essa visão política entende que tudo tem que ser monetarizado, transformado em dinheiro para propiciar a construção de uma prática empresarial com vistas a garantir lucro para iniciativa privada”.

Nessa perspectiva, o presidente da Comissão de Políticas Urbanas e Direito Urbanístico da OAB/CE, Bruno Montenegro, ressalta como a metrópole cearense tem pensado a esse respeito: “Fortaleza foi a primeira cidade brasileira a emitir um alvará de construção em apenas 30 minutos, desburocratizando os serviços de licenciamento municipal. Essa conduta traz evidentes benefícios ao mercado imobiliário, fomentando e incentivando o lançamento de novos empreendimentos”. É importante que nos perguntemos quais as consequências para a cidade e seu meio ambiente ao liberar alvarás de construção civil tão apressadamente? É possível fazer uma análise aprofundada de impacto ambiental no local e nos arredores da construção em tão curto prazo? Em que medida essa pressa em conceder alvarás de construção pode ser entendida como transformar a cidade em mercadoria imobiliária? Como dissemos anteriormente, procuramos a SEUMA para tratar dessas e outras questões, mas não obtivemos respostas às nossas solicitações.

(Foto: Drawlio Joca)

O presidente da comissão de Direito Urbanístico da OAB/CE complementa: “O crescimento e a especulação imobiliária são fatores presentes e naturais em toda metrópole e com Fortaleza não poderia ser diferente. O Plano Diretor pode aparecer como instrumento legal para a preservação ambiental, orientando uma ocupação urbana ordenada, caminhando no sentido da construção de uma norma jurídica voltada para satisfazer as necessidades vitais da comunidade através da preservação ambiental. É importante frisar que não só o meio ambiente é beneficiado quando da implementação de um Plano Diretor, mas toda cidade em si, que tem uma significativa melhoria na qualidade de vida dos seus residentes”.

Para o promotor do Ministério Público do Ceará, Eneas Vasconcelos, o capital imobiliário tem que ser controlado pela lei e deve obedecer à função social da propriedade e às normas mundiais de meio ambiente e “que sejam respeitadas as áreas com restrição ambiental, que seja uma cidade mais arborizada, que seja uma cidade para todos. O desenvolvimento econômico tem que estar associado ao respeito ao meio ambiente e à função social da propriedade”.

Segundo ele, cabe aos movimentos sociais, aos órgãos de controle e também à universidade acompanhar e garantir que as normas sejam cumpridas. Acrescentaria que essa tarefa cabe também a um jornalismo independente e comprometido com os direitos sociais e de cidadania.

Para Valéria Pinheiro, pesquisadora do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará (LEHAB/UFC) e mestre em planejamento urbano e regional pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ), uma questão básica do Plano Diretor é que ele deve facilitar o acesso à terra urbana de qualidade. Esta lei, segundo a pesquisadora, deve ter como premissa basilar restringir a concentração de terra e a especulação imobiliária – deve pensar a terra como local onde irão instalar-se equipamentos não apenas de moradia, mas culturais, educacionais, de lazer, bem como também garantir espaços de preservação ambiental.

Na minuta do Plano Diretor que a Berro teve acesso, documento elaborado por “alguma setorial” da Prefeitura de Fortaleza – como confirmado pela coordenação de comunicação do Paço Municipal –, há uma forte diminuição das Zonas de Recuperação Ambiental (ZRA) e das Zonas de Proteção Ambiental (ZPA) e um desinvestimento na política urbana para as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS). Como já abordado nesta matéria, a PMF garante que este documento não reflete a posição oficial da administração – embora tenha sido desenvolvido por uma de suas pastas. A SEUMA, que segundo consta na minuta foi quem a produziu, não respondeu às nossas perguntas, embora estejamos tentando desde o dia 29 de julho, quando a contatamos por telefone e, após pedido da assessoria de comunicação da secretaria, encaminhamos e-mail com os questionamentos. Até agora, silêncio.

Sobre as questões que envolvem as zonas ambientais, o presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB/CE, João Alfredo, alega que ao passo que o Plano Diretor atual (Lei nº 62/2009) estabelece o que é permitido e o que é proibido nessas zonas (ambientais), a minuta do projeto de lei elaborada agora em 2019 pela “setorial” da PMF remete tudo isso para a Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo. “Então”, explica o professor de direito ambiental, “isso do ponto de vista legislativo está errado. Por uma razão muito simples: quando se coloca isso na Lei de Uso e Ocupação do Solo, está se dizendo, na verdade, que a questão ambiental vai ser submetida ao uso do solo. Ela vai estar vinculada à lógica da construção civil”.

Na minuta que a Berro teve acesso, na parte da carta ao presidente da Câmara Municipal, o documento diz: “Juntamente com o presente Projeto de Lei do novo Plano Diretor, está sendo apresentado o projeto de lei do Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo”. A justificativa no documento é para que se evite o lapso temporal ocorrido no último Plano Diretor, entre a publicação da lei, em 2009, e a execução de um de seus artigos, que só veio a ocorrer em 2017, matéria que tratava do encaminhamento à Câmara de projeto de lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo.

De acordo com o presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB/CE, o Plano Diretor atual estabelece rigorosamente cada uma dessas zonas ambientais, explica detalhadamente quais as peculiaridades de cada uma, define quais os usos permitidos, quais os usos proibidos, o índice de ocupação, de forma que a Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo tem que seguir esses princípios. Segundo ele, a minuta “faz uma declaração bonita de que Fortaleza será regida pelo desenvolvimento sustentável, pela participação popular, pela preservação, pela proteção, pela recuperação, pela restauração, mas no final das contas remete tudo pra uma outra lei que está muito vinculada à lógica do parcelamento, do loteamento, enfim, de uso do solo urbano.  Então, ela vai ser regida a partir dos interesses do capital imobiliário, óbvio”.

Algumas perguntas para refletirmos: há mais interesses – além da questão do lapso temporal – para que uma “setorial” da Prefeitura queira que o Plano Diretor tramite na Câmara Municipal ao mesmo tempo que a Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo? Por qual motivo, nesse “diagnóstico” da “setorial”, para usar as palavras da coordenação de comunicação da Prefeitura, questões importantes do ponto de vista ambiental estão sendo transferidas para a Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo?

ZEIS: E lá se foram 10 anos sem regulamentação

Há uma forma de administrar comum às instâncias executivas: observa a cidade a partir de uma prancheta cartográfica, de cima e de longe, como um deus voyeur onividente, que administra a metrópole e sabe tudo sobre ela a partir de relatórios, diagnósticos, mapas: papéis, papéis, papéis… É o que o historiador e filósofo francês Michel de Certeau, no seu livro A invenção do cotidiano, chamou de cidade-panorama: “Ser apenas este ponto que vê, eis a ficção do saber. A cidade-panorama é um simulacro teórico (ou seja, visual), um quadro que tem como condição de possibilidade um esquecimento e um desconhecimento das práticas”. Trocando por outras palavras, a cidade-panorama deixa escapar o vivido e o produzido pelas pessoas em suas ações do dia a dia, pois está mais preocupada em análises de relatórios, em diagnósticos, em projetos de parcerias público-privadas: papéis, papéis, papéis…

O planejamento urbano é quase sempre elaborado a partir de uma visão da cidade como uma totalidade, no entanto essa totalidade nunca se observa na realidade prática, afirma o antropólogo francês Michel Agier, em Antropologia da cidade. Para o estudioso, estes dados estatísticos e diagnósticos não são desprovidos de realidade completamente, mas seus números e letras não contemplam a “cidade viva”. O planejamento administrativo e urbanístico é muitas vezes uma coação da gestão executiva – com o endosso do legislativo e do judiciário – sobre as populações das cidades, principalmente sobre aqueles setores socioeconomicamente vulnerabilizados.

Ao impor verticalmente políticas públicas para uma cidade, gestões desconsideram o vivido e o produzido pelas pessoas em suas ações cotidianas, em seus bairros, em suas comunidades. “São as pessoas que fazem a cidade, os grupos sociais que fazem a cidade, e não a cidade que faz a sociedade”, defende Agier.

Levei essa discussão para um campo mais teórico para, nesse momento, trazê-la para a “cidade viva”. Fui ao Serviluz, mais especificamente na praia do Titanzinho, conversar com as pessoas, andar nas ruas, acompanhar a reunião de uma comissão que trabalha pelos direitos das pessoas de permanecerem naquela região de Fortaleza. Antes de mergulhar nas falas das pessoas do Serviluz, que é uma Zona Especial de Interesse Social, é preciso contar um pouco sobre as ZEIS.

A política de ZEIS foi instituída pela primeira vez em Fortaleza no Plano Diretor de 2009, ou seja, tardiamente, pois muitas outras metrópoles nacionais já a tinham assegurado. É um instrumento previsto no Estatuto da Cidade, de 2001, que tenta garantir o direito à moradia e à cidade para as classes populares, que muitas vezes vivem em ocupações irregulares nas margens das metrópoles. De acordo com o presidente da Comissão de Políticas Urbanas e Direito Urbanístico da OAB/CE, “a ZEIS garante conceitualmente a permanência das famílias e o direito à regularização fundiária”, mas a Prefeitura, continua o advogado Bruno Montenegro, “ainda está engatinhando nesse ponto e precisa de um estudo aprofundado de reconhecimento do padrão de ocupação do território, de forma a subsidiar projetos de urbanização que visem à qualificação urbanística e ambiental”.  Para a pesquisadora do LEHAB, Valéria Pinheiro, a ZEIS é “um instrumento para garantir o acesso à terra”.

No Plano Diretor de Fortaleza de 2009, de uma amostra de cerca de 800 assentamentos precários na capital cearense, apenas 45 foram reconhecidos como ZEIS de ocupação. Existem também as ZEIS de conjuntos habitacionais, que são 56, e as ZEIS de vazios urbanos, que são 34.

Para se efetivar uma ZEIS, é preciso que haja um conselho gestor eleito (composto por moradores do local, entidades da sociedade civil que atuam na comunidade e poder público), e que seja elaborado o Plano Integrado de Regularização Fundiária (PIRF), que deve ser aprovado pelo conselho gestor, que tem caráter deliberativo junto à gestão do município, e não apenas consultivo. Com estas etapas obedecidas, está efetivamente regulamentada uma ZEIS. Não parece tão difícil, não é mesmo? Pois, pasmem: desse universo de mais de uma centena de ZEIS, nos últimos dez anos, as gestões municipais (Luizianne Lins/PT – 2009/2012 e Roberto Cláudio/PDT – 2013/2019) ainda não conseguiram efetivar, de fato, nenhuma. Incompetência administrativa? Falta de proatividade política das gestões? Desinteresse social em garantir direitos às populações pobres? Mero esquecimento em tratar de uma questão relevante para as comunidades periféricas da cidade?

(Infográfico: Vitor Grilo/Revista Berro)

Talvez possa dar uma pista. O Plano Diretor de 2009 assegura que, ao ser efetivada uma ZEIS, todas as interferências urbanísticas que forem ser realizadas no local terão que passar obrigatoriamente pela aprovação do conselho gestor, que é formado em sua maioria por moradores dos bairros e entidades que atuam nas comunidades, com uma fatia menor que cabe ao poder público municipal. O vice-presidente do IAB-CE, Augusto César Paiva, lança a questão: “As ZEIS, um instrumento que visa combater uma das maiores mazelas do Brasil, o déficit habitacional, ainda não foram regulamentadas. Por quê?”. Procuramos a Prefeitura para responder às nossas dúvidas. A Secretaria de Urbanismo e Meio Ambiente passou a bola para o Instituto de Planejamento de Fortaleza (Iplanfor). Ligamos para o Iplanfor. Fomos atendidos por um integrante da assessoria de comunicação, que pediu que enviássemos um e-mail com as demandas. Enviamos a comunicação no dia 7 de agosto, mas ainda não recebemos as respostas.

O fato é que apenas em novembro de 2018, após muita mobilização e pressão de entidades ligadas ao direito à moradia popular, houve a eleição dos conselhos gestores de apenas 10 ZEIS, chamadas pela gestão municipal de “ZEIS prioritárias”. As ZEIS consideradas prioritárias são Dionísio Torres/Vila Vicentina, Pici, Lagamar, Serviluz, Praia do Futuro, Bom Jardim, Pirambu, Poço da Draga, Moura Brasil e Mucuripe. Em notícia no site da Prefeitura, datada de 12 de novembro de 2018, consta que “a fase (de eleição do conselho gestor) foi mais uma etapa do processo de regulamentação das Zeis em Fortaleza, um processo considerado prioridade pela gestão do prefeito Roberto Cláudio”.

Fica o questionamento: que tipo de prioridade é essa que demora quase seis anos para iniciar o processo de regularização? Que prioridade é essa que, dentro de um universo de mais de uma centena de ZEIS, em quase sete anos a PMF conseguiu iniciar o processo em apenas 10 delas e não o efetivou em nenhuma?

O promotor do MP-CE, Eneas Vasconcelos, pontua que o Ministério Público “vem acompanhando se as ZEIS vão ser efetivamente implantadas, inclusive através de diálogo com todas as secretarias, especialmente com a doutora Águeda Muniz, que foi um pouco mais resistente a essa pauta”. Vale mencionar que Águeda Muniz é a secretária municipal de Urbanismo e Meio Ambiente, titular da SEUMA, a secretaria que não respondeu aos nossos questionamentos – nem por telefone tampouco por e-mail.

ZEIS do Serviluz e a política de remoção

Voltando ao Serviluz. Às ruas do bairro. Era noite e chego à reunião da comissão de moradores e entidades que lutam pelo direito à moradia no Titanzinho. Uma assembleia. Quem quer falar, espera sua vez e fala. Pode apresentar seu ponto de vista. Senhorinhas e senhorzinhos com seus mais de 70 anos acompanham as discussões. Moram ali há 50, 60 anos ou mais. A Prefeitura quer remover aproximadamente 250 famílias que moram próximo ao farol do Mucuripe e também na rua Amâncio Filomeno, que fica de frente à praia. Segundo Valéria Pinheiro, pesquisadora do Laboratório de Estudos da Habitação (LEHAB/UFC), o assessor jurídico da Secretaria Municipal do Desenvolvimento Habitacional (Habitafor), Mikhail Damasceno, alega que 40 famílias precisam sair para facilitar o acesso ao farol e que, de acordo com laudo da Defesa Civil, outras 220 famílias devem ser removidas por estarem em áreas de risco.

O LEHAB obteve resposta da Defesa Civil de que não há nenhum laudo que ateste área de risco no Titanzinho. De acordo com a pesquisadora, o Ministério Público do Ceará também lhe confirmou a mesma resposta da Defesa Civil: não há área de risco naquela região. “Cadê o laudo que a Prefeitura diz ter de que o Serviluz é área de risco?”, questiona a mestre em planejamento urbano e regional pela UFRJ. Ainda segundo a pesquisadora, o LEHAB foi conversar com o professor do departamento de Geografia da UFC, Jeovah Meireles, referência nacional em assuntos afins, e ele disse que o Serviluz é uma região segura em relação à erosão, por conta dos espigões. Conversamos com a assessoria de comunicação da Habitafor no dia 8 de agosto por telefone, que nos solicitou que encaminhássemos as demandas por e-mail a fim de que os setores responsáveis (principalmente o jurídico, nesse caso) fossem devidamente comunicados e pudessem responder. Ainda não obtivemos retorno.

(Foto: Gabriela Castro/Vós)

Francisco Caetano de Souza, seu Chicão, de 78 anos, mergulhador e vigia, que mora no Titanzinho desde 1960, me disse que nenhum representante da Prefeitura chegou para conversar com as pessoas das casas que estão sendo marcadas, em vermelho, com as letras “PMF” e uma numeração. Ele conta que certo dia saiu de casa e quando retornou, sua casa estava marcada. “Eles chegam, num falam com ninguém, vão só marcando as casas, dizendo que a gente vai sair, num chegam pra bater um papo”. Ele completa: “Que a Prefeitura deixe nós aqui. Não quero sair daqui, aqui é bom demais, aqui tamo é no céu. Se num tiver nada pra comer, mergulha e pega um peixe”, diz seu Chicão, de olhos e fala bem firmes, do alto de seus 78 anos.

Antônio José, o Dudé, pintor industrial que mora no Titanzinho desde que nasceu, há 44 anos, comenta que “eles (a Prefeitura) falam que a retirada daqui vai ser melhor, que vai trazer turista e as pessoas que moram em casa pequena vão ganhar apartamento, mas que algumas casas não dá pra trocar por um apartamento porque a casa é pequena. E fica assim: chegam em uma casa contam uma história prum morador, chegam em outra e contam outra história, botando uns moradores contra os outros, o que já tá acontecendo”. Para Priscilla Sousa, fotógrafa, que mora no Serviluz desde que nasceu, há 29 anos, “isso é muito normal acontecer, das pessoas não saberem das informações, e quando falam, falam por cima. Tenho esse exemplo de outras reuniões que eles (Prefeitura) fazem, falam muito por cima”.

Dudé, um dos ameaçados de remoção, conta sobre sua relação com o bairro: “Aqui eu nasci e me criei, sei a qualidade da rua, da praia, do bairro, conheço os moradores, aqui nós se ajuda um ao outro, tem a nossa pesca, o nosso mar aí que nunca deixou nós pra trás, sempre ajudou. Aqui é meu lazer, se num for essa praia aí, fica difícil pra mim. O que eu quero aqui é uma área de lazer, creche pra criançada, colégio que tenha tempo integral pra várias crianças e urbanizar a nossa comunidade, mas isso tudo sem remoção da comunidade.

Dudé complementa: “Desejo que a Prefeitura venha, sente aqui na mesa nas nossas reuniões pra gente debater as melhorias do bairro, tá entendendo? Tirar os defeitos que são os esgotos, as ruas esburacadas, desejo que venham pra conversar e não fiquem enganando a gente por trás do muro”.

Segundo a fotógrafa Priscilla Sousa, integrante da Comissão do Titan, “tem a vida da pessoa construída aqui, vai fazendo amizades, construindo laços, então não dá pra isso ser apartado duma hora pra outra. O interesse deles (Prefeitura) não é respeitar a gente e valorizar o que se tem aqui. Pro modo capitalista, a memória do local, as lembranças, isso não é levado em consideração”. De acordo com ela, a lógica de proteger a memória local é antiga, vem de uma ancestralidade remota, “dos nossos povos originários, tá no nosso corpo, tá na nossa vivência valorizar isso”. Para a moradora do bairro, o sistema socioeconômico desconsidera estas questões em nome de seu desenvolvimento urbanístico. Priscilla complementa: para este modo de produção, a população das periferias “tem que ficar aglomerada tudo num canto só”, às margens da cidade, por isso, acrescenta ela, querem tanto retirar as pessoas do Titanzinho, que é uma região à beira-mar repleta de atrativos naturais, bastante valorizada do ponto de vista do mercado imobiliário.

Ainda de acordo com a fotógrafa, a Comissão do Titan vai lutar contra a remoção e pela implementação de saneamento básico, espaços de lazer, equipamentos de formação que sejam do interesse da comunidade. “Tudo isso tem que ser construído com a comunidade. Por ser ZEIS, nós temos o direito de que aquilo que for construído aqui tem que ser construído com nossa aprovação. Então, a gente tá construindo o nosso plano popular. Eles têm um plano pra gente, e a gente entendeu que tem que ter o nosso”.

Priscilla Sousa comenta que a Prefeitura tem muitos objetivos imobiliários para aquela área à beira-mar – e nenhum contempla o direito à moradia popular. “Não é só remoção desse espaço aqui (da rua), existe um plano deles pra toda essa área (bairro). A categoria desse espaço todo é uma categoria (de área) portuária, eles vão querer mudar a categoria desse espaço pra área turística, eles tão comendo pelas beiradas e tão começando aqui com a remoção”.

Vista do farol do Serviluz e, abaixo, algumas das casas que a Prefeitura pretende remover (Foto: Artur Pires/Revista Berro)

De acordo com o Laboratório de Estudos da Habitação (LEHAB/UFC), que estuda desde 2014 os projetos do mercado imobiliário e da Prefeitura para a região do Titanzinho/Serviluz, há algumas movimentações nos últimos anos que confirmam as observações da integrante da Comissão do Titan. Entre elas, pode-se destacar: o aumento da altura do farol (a altura do farol tem relação direta com a altura máxima dos prédios do entorno); a transferência da gestão das terras da orla da União para a Prefeitura; o projeto “Aldeia da Praia”, que promete construir uma praça à beira-mar à custa de remover centenas de famílias; e a possível transferência do parque de tancagem do Porto do Mucuripe para o Porto do Pecém, o que liberaria uma grande área industrial no meio do Serviluz para experiências do mercado imobiliário.

“Então”, afirma a pesquisadora do LEHAB Valéria Pinheiro, “é uma série de movimentações que a gente consegue enxergar no sentido de perceber o poder público aliado com o capital imobiliário, e que de forma alguma dialoga com os moradores nem com a legislação (vide o atraso de uma década na efetivação da ZEIS do Serviluz, que ainda não foi concluída). Todas essas ações caminham numa perspectiva que não é garantir a permanência dos moradores lá, mas sim facilitar o acesso à terra pro mercado. Não há movimentação da Prefeitura pra regularizar o Serviluz, pra urbanizar, a remoção é a política habitacional para aquela região”.

A gestão da cidade-panorama, da qual falava o historiador Michel de Certeau, pensa a cidade como uma grande maquete, sem vida, sem gente: não dialoga, apenas marca como gado para o abate as casas que quer demolir. A cidade-panorama não quer saber da memória do lugar, das histórias que as pessoas têm para contar sobre sua afetividade com o local, sobre a relação com o mar, este um sustento, uma dádiva à beira de casa. Como o monstro Moloch, do poema-manifesto Uivo, do poeta estadunidense Allen Ginsberg, passa por cima disso tudo, nada o detém. A força da grana que destrói coisas belas, como disse o compositor. Moloch! Destruição!

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Artur Pires – artur@revistaberro.com


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