A fome tem voz?



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(Fotos: Aletheya Alves)

Mito científico ou não, colocar prego dentro da panela para combater anemia é ato passado de geração em geração. Talvez a simbologia faça até mais sentido do que os resultados. Reconhecido pelos lucros obtidos com o agronegócio, localizado no centro-oeste brasileiro, Mato Grosso do Sul continua tendo criança chegando aos dez anos sem nunca ter comido uma banana. Relatos como esse tomam conta dos afastados bairros na capital sul-mato-grossense. Em Campo Grande, enquanto praças de alimentação lotam de segunda a segunda, histórias sobre crianças que nem mesmo sabem o que é pizza correm soltas. Buscando por essas pessoas, a reportagem foi a três bairros para ouvir as narrativas da fome e compreender por onde andam as geladeiras vazias, os mitos do antigo lixão, distribuição de marmitas, orientações e ações realizadas por pessoas quase invisíveis.

Pizza? Quê isso? 

Nísia* vê tripé, microfone, câmera e logo se aproxima questionando qual o motivo para tanto. “Posso falar também? Quero dar entrevista”. Entre uma declaração e outra, o discurso acaba com a voz bem baixinha, “aqui a gente precisa comer tudo. Tem muita criança lá fora passando fome que não tem comida”. Ela é uma das crianças do bairro Parque do Sol, localizado no sul de Campo Grande, que participam da Escolinha da Misericórdia São João Neumann. Ali eles lutam contra a fome e pedem aos céus – em que acreditam – para que tenha comida todos os dias.

Arroz e feijão são o que Nísia diz mais precisar em casa, o resto pode ser deixado para depois, outro dia. Os discursos sobre criança não entender o que se passa na própria vida e no mundo parecem cair por terra conforme a entrevistada relata o cotidiano. Sobre conhecer gente que não tem comida em casa, ela conta: “minha mãe ajuda uma amiga dela, nossa vizinha, quando dá. Ela tem vários filhos, aí quando a gente tem mais coisa em casa, minha mãe leva para ela. No mesmo dia já acaba tudo bem rápido porque é muita gente e não tem o que precisa”.

Ali na escolinha ela diz ter comida “que é bom para a barriga”. Esses são termos adaptados dos conceitos usados pela missionária responsável, Delair Urias Coelho. Alimentação é carro-chefe no instituto, regra, “lei divina”. Longe da área central de Campo Grande, a história aqui é contada por quem caiu na realidade sem perceber onde estava pisando.

Delair tem 48 anos e se perde no tempo, em fatos e nomes enquanto relembra informações, “a escolinha surgiu em 2013 porque muitas pessoas sobreviviam do lixão. Elas viviam na Cidade de Deus 2, na boca do lixão, ali na BR-262. A escolinha veio para dar esperança. Missão de vir e mostrar para as crianças que elas eram amadas por Deus, não importando que estivessem no lixo”.

“Quando você se depara com a realidade, vai lá falar do amor de Deus para uma criança que está com fome, perdida de piolho, sem atendimento médico, no meio da sujeira, como que fica? Fica hipócrita, fica ridículo”. Coisas comuns no cotidiano de muita gente são desconhecidas lá no bairro. Uma das crianças que correm por perto se aproxima e diz que nunca viu pizza na vida, que nem sabe o que é.

Mesmo depois da favela ser desmantelada, muita gente continuou pela região na mesma situação – talvez pior. De acordo com a missionária, novas contas de luz e água atingiram as realidades dos moradores com força, “muitas pessoas preferem comprar uma cerveja do que legumes. Outras não têm dinheiro mesmo, precisam pagar água e luz, sabe? Vivendo de bolsa família, pagar aluguel, pagar água – porque aí surge a realidade da luz e da água que não tinha antes. A maioria das crianças não tomava leite, até hoje elas só tomam aqui. Pensa, uma mãe que vive de bolsa família com cinco, sete filhos, como vai comprar leite todo dia? Tem casas em que só o bebê toma leite e as outras ficam olhando”.

Realidades – Até o final de 2019, a realidade do Bolsa Família era compartilhada por 118.275 famílias em Mato Grosso do Sul. Delas, 31.345 estavam na pobreza e mais do dobro, 79.668 dos cadastrados, se encontravam na extrema pobreza.

(Infográfico: Aletheya Alves)

É esse cenário que Delair exemplifica com detalhes, “antes, na época do lixão, sempre tinha leite e bolacha para dar. Nunca esquentei para eles não acostumarem a usar gás. Eu fazia comida, arroz, leite, feijão, macarrão, às vezes sardinha com leite. Normalmente nem isso tinha. A escolinha não tinha o programa estrutural de hoje, era um barraco. Teve uma época em que a gente perdeu até o barraco, tivemos que fazer as coisas em um quintal emprestado. Conseguia fazer comida quando a dona cedia cozinha pra gente”.

Hoje, a escolinha atende crianças com aulas de música, auxílio em aprendizagem e tenta implementar uma vida alimentar saudável. Exemplos de crianças passando mal porque não estão acostumadas a comer são parte do cotidiano, Delair diz que vez ou outra aparece alguém comendo algo pela primeira vez, “quando eles chegam tem criança que vai comer banana e vomita”.

Fazer com que as crianças se acostumem a comer todos os dias e com horários definidos faz parte dos desafios. De acordo com Delair, muitos ficam sem alimentação inclusive na escolinha porque o estômago não aceita a nova rotina durante as primeiras semanas. “Hoje temos uma criança que está com problema grave. Ele precisa comer e está sem comer nada. As famílias não têm consciência de que as crianças precisam comer. A gente sabe disso”.

Durante a entrevista, enquanto Delair seguia para mostrar o almoço do dia na cozinha, uma das crianças se aproximou correndo, “madre, olha um prego pra gente colocar no feijão”.

Ajuda necessária – Tudo na escolinha é feito de doações. Em determinado momento, durante o período de criação da horta, surgiu doação de lixo orgânico para contribuir com o desenvolvimento de alimentos próprios. De acordo com a “madre”, os doadores perceberam que era necessário entregar mais do que lixo. Foi aí que as doações de frutas, verduras e legumes se tornaram presentes, “é aquela fruta que ninguém quer mais. Aqui a gente consegue aproveitar”.

Alimentos que as crianças provavelmente iam custar a conhecer chegam com as doações semanalmente, sendo responsabilidade da escolinha fazer a seleção do que serve ou não para alimentação. Delair explica que todos os voluntários envolvidos na cozinha realizaram curso de higienização e manejo de alimentos. O trabalho é completo.

Campo Grande tem favela?

“Quando chegamos aqui, a gente se deparou com criança guardando comida no bolso porque não tinha o que comer em casa”. Significar vidas, transformar territórios e realidades é a missão do Instituto Maná do Céu para os Povos. Localizada no Jardim Canguru há dois anos, a entidade se tornou parte da comunidade para compreender o contexto social e tentar tirar a teoria dos papéis. A citação apresentada pela presidente do instituto, Carla Rodrigues, introduz um dos inúmeros problemas enfrentados no “corredor” de Campo Grande. Ao contrário do que se pode pensar, a fome nem tenta se esconder nessas histórias.

Para o coordenador de atividades, Igor Silva, dizer que fome é ilusão se parece com “um discurso tão bonito quanto falar que favela não existe em Campo Grande”. Principalmente em uma região conhecida pela sua violência e desigualdade social, “um bairro onde ninguém fala que existe”. Após Igor explicar o pensamento, Carla detalha dizendo que, na “terra do gado e do coronelismo”, a maquiagem é aplicada: “jogam mesmo para o corredor, onde não é enxergado. O gritante é que as pessoas aceitam essa condição de “não, Campo Grande é uma cidade ótima para se viver”. Reavaliar os conceitos de “ótima” é tarefa de casa.

Longe do assistencialismo, toda sexta-feira é dia de Feira Solidária aberta ao bairro. O Instituto recebe, por meio do Sesc Mesa Brasil, frutas, verduras e legumes que não são mais “interessantes” para clientes de supermercados e distribui a quem precisa. Sem portões separando voluntários e moradores da região, a festa é feita com o que seria lixo para muita gente da Capital. Igor diz que R$ 1.000 são gastos mensalmente com o frete para buscar os alimentos no centro de distribuição do Sesc. “O Mesa Brasil retira os alimentos nos supermercados e leva até o centro de distribuição deles, lá nós buscamos e trazemos para cá. Se o alimento chega hoje, também é entregue hoje”.

Apenas o que será utilizado para os almoços e lanches das crianças é separado, todo o restante é distribuído à comunidade que, duas horas antes da entrega, já começa a perguntar sobre as atividades do dia. Carla explica que é importante entregar os alimentos no mesmo dia para que não haja qualquer tipo de desperdício, “fazemos uma triagem para que a pessoa tenha consciência de que o alimento poderia estar no lixo e que hoje está ali para ajudar na economia diária”.

Detalhe importante de se dizer é que justamente por meio da distribuição de alimentos perecíveis, um trabalho de cadastro da população regional é realizado semanalmente. A intenção é compreender o contexto dos bairros, conhecer os sujeitos e prestar serviços de encaminhamento. Igor explica: “na feira a gente faz mapeamento das famílias e pessoas que possuem demandas. Além do alimento, também agendamos consultas com médicos voluntários que vêm até aqui e vemos suas necessidades. Por meio desses cadastros conseguimos entender o que o bairro precisa, qual é a situação”.

De acordo com dados divulgados pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), o número de pessoas desnutridas na América Latina continua subindo desde 2016. É pensando nessa realidade que as ações de contexto são praticadas no Jardim Canguru: a fome não vem sozinha, ela faz parte de toda uma dinâmica esquecida. Igor relata que cento e quarenta e quatro crianças são atendidas em contraturno escolar com atividades focadas em despertar consciência crítica. Incluindo os dados da Feira, mais de três mil pessoas são compreendidas mensalmente pelo Maná. A intenção, no fim das contas, é modificar a vida dessas pessoas “historicamente marginalizadas”, dando possibilidades para que saiam das situações de miséria.

Aproximando ainda mais os dados, outro relatório da FAO indica que entre 2014 e 2016, 5,1 milhões de pessoas estavam desnutridas no Brasil. Assim como na América Latina, os números brasileiros aumentaram entre 2015 e 2017 – cerca de 5,2 milhões de pessoas seguiam em situação de desnutrição.

Preocupação e incômodo com recentes manifestações do Governo Federal se encontram com as discussões sobre o social. Em julho de 2019, o presidente Jair Bolsonaro declarou que fome no Brasil seria mentira. No mesmo dia (19), voltou atrás e afirmou que “alguns passam fome”. Carla diz que o presente governo (federal) não se preocupa com o social.

“Eu vejo que com o novo governo é como se as pessoas estivessem adormecidas num ódio e, de repente, esse ódio se potencializasse porque elas estão sentindo que o poder está ao seu lado dessa vez. Vejo que as pessoas estão muito mais individualistas, estávamos numa crescente social muito bacana e vejo que, com o novo governo, as pessoas começaram a pensar em si mesmas. Vejo sim um desmonte na questão social. Enfraquecimento dos conselhos”. Relembrando a frase do coordenador de atividades do instituto: “ninguém fala que o bairro existe” e “falar que a fome não existe é um discurso muito bonito”.

Janta a gente tem garantida

“Eu fico com fome, não tem como se virar. Não tem o que fazer”. De seus trinta e tantos anos, Eva* passou o último no prédio da Antiga Rodoviária de Campo Grande, hoje utilizado por poucos comerciantes. Saiu do Rio Grande do Sul e resolveu desembarcar aqui, fazendo morada em um dos lugares que geram mais “sensações” na cidade. Casa adotada irregularmente por pessoas em situação de rua, a “rodô” incomoda, preocupa e chama atenção tanto pela sua localização no centro da cidade quanto pelos seus inquilinos. A fome aqui é suprida de vez em quando, fica perdida entre gritos e olhares confusos.

Vendo com desconfiança os lados escuros, uma mão apoiando a cabeça e a outra segurando colher de arroz garantida no dia, Eva segue a rotina dos que vivem na rodoviária. “Toda noite a gente tem janta, vem esse pessoal aí da igreja. Almoço já não tem, uns três meses atrás ainda tinha gente que trazia, mas acabou”, conta. O quadrilátero no bairro Amambaí, localizado no Centro da Capital, é visita marcada de ações sociais, que acabam incomodando moradores do bairro e comerciantes – a intenção é que o pessoal residente da rodoviária não permaneça por ali. Assistencialismo é selo complicado de se dar e falar sobre.

A resposta aparentemente óbvia sobre o que a moradora teria comido antes da janta improvisada pela Igreja Atos de Justiça naquela noite de sábado sai junto com sorriso de meia-boca: “ah meu deus do céu, nada”. Sem explicações sobre o passado em que talvez tivesse alimento garantido, ela diz não se preocupar mais com a situação. A fome fica junto com o silêncio de quem aceitou a ideia de um destino encerrado. “A gente pede comida aí né, nos outros horários. A maioria não dá nem água. Vai fazer o quê?”.

Em um salto, a gaúcha abandona a marmita e vai atrás do banho também providenciado pelos voluntários da noite, que ocupam parte do estacionamento da rodoviária durante um dia na semana. “Ser os braços da misericórdia do Senhor” é uma das definições utilizadas pelo Pastor Moisés Fortes de Andrade sobre o projeto “Mateus 25:35”. Ele e alguns jovens se distribuem entre fazer oração, entregar marmitas e proporcionar um banho rápido dentro do ônibus adaptado da igreja.

Moisés diz que as ações levam dignidade há cinco anos para quem vive tanto na rodoviária quanto na região, “oferecemos uma refeição boa, gostosa. Colocamos as mesas na rua para que eles possam sentar e ficar à vontade. Aqui eles estão no fundo do poço, não tem mais ninguém por eles. Estão sem banho, fedidos. Ficam sujos a semana inteira. Estamos em obediência às palavras de Deus, que diz para amar o próximo como a nós mesmos. Muita gente não tem comida, não tem refeição decente. Fornecemos isso para eles, pelo menos no sábado a gente fornece. É sempre aqui”.

Cenário de furtos, roubos, pessoas pegando literalmente fogo, a Antiga Rodoviária é caminho geralmente evitado. Oposto ao comum, o pastor diz que todos os participantes da igreja são protegidos pelo público atendido, “a gente nunca teve problema, é uma ajuda mútua. Sempre foi esse modelo, a gente só não trazia as mesas, mas sempre funcionou pelo menos com a comida”. Ali ninguém nega o auxílio, muito menos quando o suco vem junto.

E a fome?

“Não é simplesmente o ato de comer, é entender o que o alimento que você come te fornece”. Fora das mistificações sobre talvez um pão, várias mangas ou brioches salvarem a população da fome, a nutricionista e representante do Comsan (Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional) de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Fernanda Maciel Mendes da Costa explica que há bases para se entender e relembrar sobre o tema.

Vamos ao início da conversa. O conceito básico para fome, de acordo com a nutricionista é: “uma sensação fisiológica que o corpo tem de alguma deficiência, alguma necessidade. É a necessidade que ele tem e que não está sendo suprida em relação aos nutrientes”. 

Trazendo para a prática, simplesmente o prato de arroz e feijão não conseguiria saciar todo o quadro de nutrientes necessários diariamente. A nutricionista destaca que cada corpo precisa de uma quantidade específica de alimentos conforme sua idade, tipo físico e metabolismo. Para cumprir com esse ideal, temos, em teoria, o direito à segurança alimentar – todo indivíduo tem de se alimentar de forma adequada e saudável, de modo a evitar complicações para sua vida, sendo elas pessoais, sociais ou profissionais. Fernanda esclarece – “precisa ser nutricionalmente correta e, além de ter o alimento de qualidade, a pessoa precisa ter acesso a esse alimento. Seja na forma de distribuição ou na forma do plantio”. Esse direito, por estar na Constituição Federal, é dever do Estado, sendo ele nacional, estadual e municipal.

Quem tem segurança alimentar não passa fome

Dados de 2013, os mais recentes do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), mostram que em Mato Grosso do Sul, a terra do agronegócio, cerca de 157 mil moradias seguem com IA (Insegurança Alimentar). Esse total é distribuído da seguinte maneira: 110 mil lares se encaixam na definição de leve, 27 mil em moderada e 20 mil em grave. O quadro de IA apresentado pelo IBGE é dividido de acordo com a Ebia (Escala Brasileira de Insegurança Alimentar). 

Sendo que: leve – existe preocupação ou incerteza em relação a ter alimentos. Também inclui o comprometimento da qualidade em virtude de não reduzir a quantidade de comida disponível. Moderada – há redução na quantidade de alimentos entre as pessoas adultas da casa. Grave – é identificada quando há redução na quantidade de alimentos entre crianças e há fome (pessoas ficam o dia todo sem comer porque não há dinheiro).

Essas pessoas comem poucas vezes ao dia e algumas delas nem mesmo se alimentam.

Problemas com alimentação seguem aumentando em todo o mundo. De acordo com valores projetados no relatório divulgado pela FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), em 2018 mais de 821 milhões de pessoas estavam desnutridas no mundo. Após frequente queda nos números entre 2010 e 2015, os valores voltaram a subir em 2016 (cerca de 796 milhões e 500 mil). A quantidade de pessoas desnutridas em 2018 se aproxima da quantidade relatada em 2010 (cerca de 822 milhões e 300 mil), ou seja, regredimos oito anos em direitos básicos.

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(*) Todos os nomes com asterisco indicam que o nome real não será revelado para não identificação da personagem.

(*) A Fome tem Voz foi o produto apresentado ao curso de Jornalismo da Universidade Católica Dom Bosco sob orientação do Professor Dr. Oswaldo Ribeiro da Silva, para efeito de conclusão de curso. Clique no link azul para conhecer mais sobre o trabalho. Contato: aletheyaralves@gmail.com


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