Fábrica de fazer “cidadão”



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(Ilustração: Reno)

“O que você quer olhando pra gente? Quem você pensa que é? ‘Cidadão’ não age assim!”

O final de tarde de uma sexta-feira geralmente é uma correria só! O terminal de ônibus do Siqueira localizado na Zona Sul de Fortaleza (CE) é um dos mais precários: trânsito um caos, ônibus quase todos sem ar-condicionado, passa gestão e entra gestão municipal e a manutenção da estrutura é a mesma. A forma de vida Política e econômica engendradas em países como o Brasil imagina-se ingenuamente cercando, controlando, docilizando… meios sem fim.

Afinal, o “cinturão” da zona sul liga vários bairros, favelas e comunidades compartimentadas entre a o “salário mínimo”, a pobreza e a extrema pobreza! Sinônimos de “lugar perigoso”. Nos não-lugares habitados por não-sujeitos tudo se justifica, inclusive o elevadíssimo índice de homicídios na adolescência e na juventude. A vida ali não tem tanto valor, não comove se for perdida, arrancada prematuramente. Chegar aos 29 anos neste lugar é por si só sinônimo de muita resistência.

A forma de existência inventada nestes espaços precários é histórica e com ela um aprendizado que ainda estamos longe de pelo menos assimilar – por está no espaço do entre, em movimento, aparecimento e desaparecimento, na fuga – é possível estarmos do lado, “debaixo das nossas fuças” e não damos conta.

Será que não é a política que está cercada? Não é ela quem está sendo vigiada? Parece que agoniza – muros, as cercas, as câmeras do medo. Torres de Vigilância, catracas… uma verdadeira fábrica de inventar “bandido” e “cidadão”.

Ao passar pela catraca, apressei os passos para não perder o ônibus da linha “Bom Jardim 1”. Com uma das mãos ocupadas eu carregava alguns exemplares dos relatórios “Cada Vida Importa” do Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência.

Posicionei-me na fila e percebi que um pouco mais à frente três jovens estavam sendo abordados por quatro Guardas Municipais da Prefeitura de Fortaleza, dois homens e duas mulheres da Guarda Municipal de Fortaleza, um deles portava pistola de fogo. Os demais, além de cassetete e algemas, portavam a conhecida taser (arma de choque). Percebi que estes jovens não olhavam fixamente nos rostos dos GM e que geralmente, a depender das perguntas feitas, meneavam com a cabeça que “sim” ou “não” sempre olhando para o chão.

Fiquei muito triste com toda aquela situação.

“Meu ônibus chegou, affa!” Olhei para frente e antes que subir para o ônibus ouvi uma voz de comando:

“Bora, mão na cabeça! Bora, bora…!”

A minha percepção de tempo já não era mais a mesma. Uma pequena luz vermelha da taser refletida no chão perto do meu pé esquerdo e uma pistola, ambas apontadas na minha direção, confirmavam o que eu não esperava.

Enquanto instintivamente entrelacei os dedos acima da cabeça, minhas pernas foram abertas à força. O mesmo guarda que me revistava puxava meu cabelo enquanto dizia: “O que você quer olhando pra gente? Quem você pensa que é? ‘Cidadão’ não age assim!”

Com a pistola apontada a menos de um metro do meu rosto, jogaram o livro e os relatórios que estavam na minha mão esquerda no chão. Fizeram o mesmo com minha mochila. A guarda municipal que estava à minha direita tirou meu celular, tentou ligá-lo, depois tirou minha carteira, tirou minha identidade, carteira de estudante…

Parecia que eu estava dormente. Parecia que o tempo, tudo e todos a minha volta estavam suspensos. O número de pessoas assistindo a abordagem só aumentava: gente de outras paradas, quem descia dos ônibus e quem estava dentro deles.

Comecei a perceber o que realmente estava acontecendo: eles queriam me levar preso!

Lembrei-me do que tinha acontecido naquele mesmo terminal de ônibus em 2017 com dois poetas que recitam dentro dos ônibus. De como foram humilhados, gravemente espancados e levados à força por uma guarnição da Guarda Municipal para dentro da denominada conhecida por muitos como “salinha da tortura”.

Depois de quase vinte minutos naquela posição e sob ameaça de ser preso, finalmente desistiram. Perguntei se eu poderia sair daquela posição, responderam que sim, devolveram minha carteira de identidade e mandaram-me checar se todas as minhas coisas (jogadas no chão) estavam “okay”.

Tirei os óculos e olhei nos olhos dos quatro e perguntei mais uma vez: “vocês vão se identificar?” Um deles respondeu: “Não irei me identificar, se eles quiserem se identificar…” Em silêncio, juntei minhas coisas e depois ajeitei o meu cabelo. Eu estava me sentindo um lixo…

As pessoas em volta olhavam para mim com uma grande interrogação, outras constrangidas olhavam pro “nada” e outras preferiram encarar toda aquela situação na mais pura normalidade, pois é comum acontecer tudo aquilo ali. Ver não é a mesma coisa que olhar. Podemos olhar sem ver.

Um sentimento que misturava ódio, sujeição, humilhação e medo subiram e se instalaram no meu pescoço como se fosse uma gargalheira que emitia a mensagem que eu deveria me rever e se culpar. Naquele instante, uma senhora disse em alta voz não somente para que seu colega ouvisse, mas inclusive eu e todos ali na fila pudéssemos escutar: “isso é racismo! Só porque o menino tem o cabelo grande eles fazem isso!” Tentei falar algo, mas a gargalheira não me permitiu.

Uma senhora e um senhor aproximaram-se, perguntaram se eu ia denunciar e que eu poderia anotar os contatos deles para testemunhar a meu favor.
O ódio mobiliza. A vingança também. E ambos podem ser caminhos mais fáceis e confortáveis. Ouvir o outro verdadeiramente é um caminho possível, mas é dos mais fáceis e os Guardas Municipais não me ouviram.

Caminhamos a passos largos para um caos ainda maior. Não podemos normalizar a violência. Precisamos nos indignar contra todas as violências que sofremos. O racismo que estrutura as relações e as instituições deve ser abolido. A abolição do racismo significa a mudar radicalmente as estruturas e as superestruturas.

A Política não nasceu e não existe para fabricar “cidadãos”.

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Rômulo Silva é jornalista e mestre em Sociologia. Pesquisa as reexistências poéticas nas periferias de Fortaleza. 


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