Quer olhar uma meia também?



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Felipe Yarzon

Minha panturrilha parece com a de um atleta. Eu tenho orgulho da minha panturrilha. Quando estico a perna e o músculo salta, sempre alguém comenta: “Malhando, hein?”. Não é de academia, é de subir escada mesmo. Acho que eu vou até o depósito (que fica no andar superior) umas 17 vezes por dia. O pessoal hoje está calçando números cada vez maiores. E eu subindo cada vez mais a escada caracol da loja de sapatos do meu tio.

Sou um apaixonado por sapatos e por mulheres sem frescura. Durante muitos anos fui noivo de uma menina que reclamava de tudo. Do meu cabelo, das sugestões de posições, do meu sapato. Depois de acabar o noivado conheci logo de cara a Andrea. Eu estava bebendo sozinho no Lampião quando começo a escutar uns aplausos. “Andrea, Andrea, Andrea, êêê”. Não sei por qual motivo bati palmas também, mesmo sem conhecer a aniversariante. Andrea viu e adorou minha atitude. Até convidou pra sentar junto com a enorme mesa que tinha um bolo no meio, mas inventei um compromisso e fui em direção à saída. Na porta, ela me entrega um pedaço de bolo. Com o presente na mão, fui direto pra casa.

Com um garfo, empurrei o bolo na tigela do Drã, meu cachorro. O guardanapo que separava minha mão daquele mar de chocolate tinha o número da Andrea. Gostei da coragem. Andrea era uma mulher sem frescura. Liguei, saímos, ela não reclamou das sugestões de posições. Liguei outra vez, saímos de novo e eu a pedi em namoro. Ela topou. Mas fez questão de deixar claro que era uma garota de programa. Eu também topei, com um detalhe: eu queria a foto dos sapatos de todos os clientes. Ela topou de novo.

Minha mãe começou a reparar nos chupões do meu pescoço. Acabei assumindo que estava namorando. Ela fez questão de conhecer a Andrea. Prometi um jantar sem muita vontade, pra uma data nada definida. Meu pai ficou orgulhoso de saber que eu tava com uma mulher. Deu umas dicas que eu não precisava, coisa de velho. Fingi que eram úteis e agradeci com um tapinha nas costas.

Eu estava subindo a escada caracol quando chegou uma mensagem da Andrea com uma foto em anexo. Era a foto de um sapato. Tênis brancos milagrosamente limpos. O cliente tinha dinheiro e era metrossexual. Pra falar a verdade, não senti ciúmes.

Todo dia chegava uma nova mensagem. Sei que ela tinha mais de um cliente por dia, já que quem pagava a faculdade era a própria Andrea. Mas sempre recebia uma única mensagem. Já tinha visto botas de cowboy, sandálias havaianas, tênis furados, sapatos de bico fino e até coturnos. Andrea matou minha dúvida se o tamanho do sapato representava algo. “Não, nenhuma ligação. Às vezes é o contrário, sabia?”.

Eu gostava da Andrea. O jeito simples, a sinceridade, eu gostava de tudo isso. Tanto que marquei o tal jantar. A data não podia ser melhor: um mês de namoro. Minha mãe e meu pai que escolheram o lugar, um restaurante novo na rua lá de casa. Andrea gostou da ideia, disse que também sonhava em ter uma família.

Eu tinha acabado de voltar do trabalho quando chegou a mensagem. O sapato era de camurça, tamanho 38. Homem com pé pequeno é triste. Pé pequeno e com sapato de camurça, pior ainda.

Fui buscar a Andrea com um certo medo. As putas gostam de usar cada roupa, cada decote e por aí vai. Mas nesse dia ela tava linda, com uma imagem 100% pura.

Meus pais já estavam no restaurante. Chegamos lá depois de uns dez minutos. “Mãe, essa é a Andrea”. “Pai, essa é a Andrea”. Conversamos sobre o futuro, a maneira que nos conhecemos, papai perguntou o que ela fazia e eu que respondi: “estudante”. O garçom trouxe um vinho e todos nós levantamos as taças para brindar. Ao sentar, Andrea esbarrou em mim e sua carteira caiu. Fui pegar a carteira no chão e, embaixo da nossa mesa, vejo um sapato de camurça. Naquele momento só uma coisa passava pela minha cabeça: o número que meu pai calçava.

Felipe Yarzon é publicitário, escreve contos e de vez em quando faz stencils e outros tipos de arte urbana


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