(Anti)cárcere fotográfico, negritudes e existência



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“Entidade”, Quilombo de Vila Bela da Santíssima Trindade (MT) (Foto: Marcela Bonfim)

“(Re)Conhecendo a Amazônia Negra” é uma exposição para ser tocada, pegada, conforme nos diz a própria fotógrafa, Marcela Bonfim. Sinta-se à vontade, sem fru-frus, nem molduras de metal. As fotos desta mulher contam, a cada olhar, mãos e corpos fotografados, uma outra narrativa.

A escuta é um movimento necessário para todos(as) nós, precisamos aceitar que o outro é um território para além da nossa cartografia, sem delimitar as fronteiras, nem definir afetividade alheia. Leia esta entrevista como quem escuta. A economista de São Paulo que, de bicicleta, acha diversos elementos da identidade dela em Rondônia, pedaço da Amazônia. Sem a intenção de ser fotógrafa, começa a encontrar a imagem do negro que nunca vira antes nas imagens que produzia.

Marcela não aceita a passividade do papel de entrevistada, faz perguntas, questiona as respostas que recebe e nos faz pensar em outra história que está ajudando a construir. A fotógrafa fala sobre os corpos negros silenciados, este território marginalizado que carrega ao nascer no Brasil 300 anos de hierarquização racista. 

No entanto, Marcela também compartilha a descoberta de que não é só isso. São tantas ruas, diversidade, possibilidades nesses constantes fluxos migratórios dos quais resulta Rondônia negra, Amazônia negra, Brasil negro. 

As espadas de São Jorge presentes na exposição são, como ela mesma diz, plantas resistentes como a história negra no Brasil. Além do resistir, Marcela nos chama para o existir, que precisa de reforço. Tão simples quanto complexas são as ressignificações que ela produz. 

BERRO: Para começar, eu queria que você me dissesse como você começou a fotografar, eu li aqui no catálogo que você é economista, como se deu essa relação?

MARCELA: Eu morava em São Paulo, estudei em São Paulo, me formei em economia e, quando eu saí da universidade para buscar o primeiro emprego, procurei em São Paulo e não consegui nada na minha colocação. Daí, me mudo pra Rondônia em 2010 em busca desse primeiro emprego.

Chegando em Rondônia, aí é que começa a minha vida com a fotografia, porque eu cheguei numa terra totalmente diferente do que eu concebia para mim no meu sonho, com todo um tempo que eu não sabia que existia na minha vida, enfrentando uma solidão muito grande, porque eu não conhecia ninguém. Eu tive que começar a minha vida de novo aqui, enfrentei aspectos que eu jamais imaginei enfrentar, inclusive a minha própria cor.

Eu precisei comprar uma bicicleta, comecei a sair pra conhecer a cidade e começo a notar uma presença negra. E, dessas formas novas de se notar a cidade, comecei a ser abordada como barbadiana, comecei a ser abordada como uma Shockness, uma Johnson e veio essa curiosidade de saber o que era uma barbadiana, porque a cidade me notava como uma barbadiana. 

Ali, veio uma primeira surpresa, que barbadianos eram povos negros daqui de Rondônia, era uma diáspora que veio do Caribe e dali surge para mim todo um interesse que me levou a comprar uma câmera também, para fotografar tudo aquilo que eu estava vendo, que era novo, principalmente essa questão, esse aspecto de negritude.

A partir do momento que eu comecei a fotografar, percebi um segundo ponto com a cidade, de relação. Na primeira, eles me relacionavam como uma barbadiana e, no segundo, eles começaram a achar “olha, ela faz foto”, e essa câmera me serviu como uma muleta, eu comecei a ser convidada para ir em aniversário, para ir em casamento, para ir no almoço de família, claro que eles falavam “leva a câmera”.

As pessoas começaram a me chamar com essa câmera e começou a girar uma nova história na minha vida que eu não imaginava ser tão forte. Essa câmera começou a me levar em vários lugares, principalmente em lugares históricos que eu não imaginava que existiam aqui em Rondônia, uma história negra, que vinha da origem com os ciclos econômicos.

Esses ciclos vão contando os fluxos migratórios, eu comecei a perceber que dentro dessa história de Rondônia existia uma história negra. Entrando nessa história negra, existia a história negra do Maranhão, a história negra do Pará, a história negra da Bahia, a história negra de São Paulo e, desses fluxos, eu sou fluxo migratório negro que vem de São Paulo. 

Você fala de Amazônia, que é um território amplo demais e muito diverso, o que você entende por Amazônia?

Quando eu cheguei aqui eu tinha um fetiche muito grande, quando a gente fala em Amazônia, principalmente quando a gente tá no sudeste ou no sul do país, e o nome, a nomenclatura Amazônia, é esse fetiche do colonizador. Falar da Amazônia negra, quando eu conto a história de Rondônia, eu percebo como o território de Rondônia é negro. Quando eu coloco Rondônia no foco do debate é por uma questão até mesmo política, porque é um estado bem negligenciado dentro dessa Amazônia.

A gente quase não ouve notícias sobre Rondônia e, quando ouve, são esses estereótipos. Quando fala de Amazônia, a gente causa um estereótipo, quando fala de Rondônia, te causa um outro estereótipo, a gente está falando de estereótipos. Um território que a gente vai falar o tempo inteiro de fluxos migratórios e imigrações, quem são os povos genuínos brasileiros? 

Quando a gente fala de populações genuínas brasileiras, a gente está falando de indígenas, quando a gente fala de toda uma população negra, quando a gente fala um outro nome totalmente fetichizado e dado por um colonizador, a gente também está falando sobre fluxos migratórios, portugueses, holandeses, franceses.

“A questão do negro não é só uma questão de fluxo migratório, a gente está falando da escravidão, de uma violência também”. 

A Amazônia se constrói também nesse mesmo movimento que o Brasil, ela recebe também o mesmo nome fetichizado dado pelo colonizador, ela tem a mesma história também contada pelo colonizador e ela representa um pedacinho do Brasil, um recorte do Brasil, o mesmo movimento de ocupação ou de invasão da Amazônia foi o mesmo movimento de ocupação e invasão do Brasil. 

Aqui na Amazônia o desafio é colocar Rondônia no foco do debate dessa Amazônia negra, porque ele é um estado muito cosmopolita, muitos fluxos existem aqui. Quando você fala da negritude, nossa!, isso triplica por mil: são muitos negros, é uma terra tida como uma terra de oportunidade e muita gente caminhou para cá, inclusive negros cearenses. Eu falo isso porque eu cheguei aí no Ceará e o pessoal fala “ah, é porque não tem muito negro no Ceará”, eu disse caraca!, com uma história tão rica (de negritude)!

Esta questão da identidade negra no Ceará está caminhando lado a lado com a identidade indígena, são duas identidades negadas. Como você dialoga essa identidade negra com a indígena?

Falar de Brasil é falar do indígena, né? Os indígenas estão em todas as partes do Brasil e aí quando existe esse processo de fragmentação política do Brasil deu a impressão que só existe indígena na Amazônia, sendo que ele está em São Paulo, está no sul, está em todas as partes, mas ele é invisibilizado, ele é categorizado, então só se atribui a questão indígena na Amazônia. Por exemplo, isso é uma questão estratégica, porque aí você joga tudo, “não, não existe índio no Brasil, existe na Amazônia”.

“Banho de Jorge”, Quilombo de Vila Bela da Santíssima Trindade (MT) (Foto: Marcela Bonfim)

Para mim, quando você está falando do Brasil, está falando do indígena e, quando você fala de Amazônia, você também está falando de indígena, porque é a população originária daqui, mas, por uma questão estratégica, hoje o capitalismo dá conta de invisibilizar populações. Você atrai atenções, você também distrai atenções. Quando eu falo de Amazônia negra, eu estou fazendo uma afirmação: “Olha, também tem negro na Amazônia!”.

Além da população indígena que hoje é diariamente exterminada, a população negra é também exterminada por outros fatores. Quando falo do Vale do Guaporé, estou falando exatamente dessa configuração negra e indígena, se chama faixa de fronteira. Então, a gente tem que lidar com a questão indígena, com a questão quilombola e com a questão ainda internacional dos bolivianos.

Se você for pro Vale do Guaporé, você vai ver essa interação acontecer num passo que muita gente não tem noção que acontece. Quando você vai ao Pará, você vê também muito nitidamente acontecer, se você vai para o Maranhão, você também vê isso, são populações que vão se misturando, o afro, o indígena, o venezuelano. A antropologia brasileira não deu conta ainda de acompanhar todos esses processos, a miscigenação no Brasil é um dos fatores mais cruciais para a nossa identidade, mas ela é o fator mais negligenciado. 

O que o Brasil fez com a miscigenação? Foi lá no IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), formulou uma nova metodologia que também faz parte dessa estratégia de invisibilidade e configurou o pardo. Esse é o tratamento que o Brasil dá para a miscigenação, então quando a gente está falando desse encontro da população indígena, esse encontro da população negra, quilombola, esse encontro de populações tradicionais, a gente está falando exatamente dessa parte negligenciada chamada miscigenação, que não se fala, por isso que hoje é muito difícil do Brasil conceber a sua própria identidade.

Nós estamos em mais de 300 anos de negligência desse processo, a miscigenação surge a partir de uma violência, de estupros contínuos, não só com o negro mas com o indígena também. O colonizador vai, ele chega, invade, estupra, aí ele não sabe lidar aqui com os frutos do estupro negro da violência dele, vai tratando como mula, vem o mulato, percebe como vai surgindo? Da mula, de toda essa configuração, surge o exótico, e o Brasil não sabe lidar com essas questões, a identidade do Brasil perpassa por essa exotificação da coisa, quer uma região mais exotizada como a Amazônia?

Eu observei, na exposição, essa questão dos espelhos e, no próprio texto de abertura, a ideia de adotar uma imagem de como nós nos reconhecemos. Fala um pouco sobre essa questão dos espelhos, da imagem. 

Os espelhos vêm a partir da necessidade (pausa)  porque a Amazônia Negra, todo mundo fala “ai, que nome lindo”,  não fui eu que dei, ela já existe, ela já é fato, ela é direito, ela é uma realidade, é uma existência. A minha contribuição é exatamente nesse processo de reconhecimento, de me reconhecer nesse processo da Amazônia Negra e me reconhecer também nesse processo da estética do negro que eu fui perseguindo. Porque o que é ser um barbadiano hoje para mim, não é só ser de uma origem negra do Caribe, é também uma questão de atitude, porque se você for olhar a história do barbadiano, o quanto ela é representativa e o quanto ela mostra uma outra face da história.

Não se conta porque o barbadiano chegou aqui por uma colonização inglesa, então, uma outra forma de colonização que vem também para jogar, para mostrar que esse processo de colonização do povo negro (no Brasil) esvaziou tanto o corpo do negro de humanidade que é isso que se olha. Quando se olha para a história do negro, se olha o negro como um fator de produção, se olha o negro como uma forma de subserviência. 

O negro colonizado pelo inglês tem uma autoestima muito acima do que a nossa, mas estou dizendo que também tem as suas fragilidades, foi desumanizado, foi um corpo colonizado, mas aqui no Brasil, aqui na Amazônia, eles chegam para contribuir com a Madeira-Mamoré (ferrovia de 366 km construída entre 1907 e 1912). Foi uma mão de obra qualificada,

“eles (os barbadianos) chegaram aqui engenheiros, completamente diferente desses corpos negros que aqui estavam, ainda escravizados pelo tempo, ainda segregados pelo tempo, ainda desumanizados”.

Eles chegam aqui e há um estranhamento, eles vêm falando inglês com hábitos e costumes completamente diferentes. Eles sofriam racismo, mas, dentro do grupo dos negros, eles ainda se destacavam por serem barbadianos, então existia essa diferenciação, isso foi uma outra forma de existir do negro (barbadiano), e eu me espelhei nessa questão.

Quando eu chego aqui, e pergunto: “Poxa! Mas o que é ser barbadiano”? As pessoas estão me chamando de barbadiana, e uma pessoa chega para mim e fala: “Marcela, os barbadianos são famílias tradicionais negras da Amazônia”, eu falei caraca! Você percebe? Famílias tradicionais negras. Eu, até então, sempre ouvi famílias tradicionais relacionadas ao conteúdo branco.

Isso, para mim, me leva a buscar quem são os barbadianos, a questão da minha autoestima como negra e perceber que a história que contaram pra mim não é exatamente essa história que aconteceu. Os espelhos vêm muito pela questão do próprio reconhecimento e ainda estando junto, tendo como acessório a câmera fotográfica. 

O que é o primeiro encontro do negro? A imagem é o primeiro encontro do negro com ele mesmo, a imagem é o primeiro encontro do negro com o branco e a imagem é o primeiro encontro do negro com os papéis do negro na sociedade. Isso foi se configurando pra mim como um espelho, a partir do momento que eu fui caminhando e descobrindo. 

“Resistência Wajuru”, Comunidade Indígena de Porto Rolim (Foto: Marcela Bonfim)

A palavra reconhecimento é muito rica, ela é um caminho, vai e volta, porque para me conhecer preciso reconhecer no outro alguma coisa. Então, esse processo me levou a reconhecer inclusive a minha própria humanidade, foi um processo que me aliviou por muito tempo, porque essa história oficial que me contaram, percebi que não é exatamente a história que aconteceu. 

Isto me levou pra um lugar completamente diferente, porque, quando eu era pequena, lembro exatamente nas figuras do livro de história, a figura da chibata era maior do que a figura do Zumbi, que ficava no canto inferior da página direita. O que é o espelho? É a nossa própria imagem, é a gente poder se reconhecer no outro.

A partir do momento que eu começo a viajar para essas comunidades, para outros municípios, outros estados brasileiros, eu começo a conhecer uma parte da história que foi negligenciada e me reconhecer nessa história. A própria história dos livros de história é uma história de vitimização que passa, o negro se olha e não vê aspectos de humanidade, é exatamente por conta dessa história que não é contada. Eu falo que uma criança (negra), no Brasil, nasce com mais de 300 anos de corpo destruído.

Quando ela vai na escola e não se vê, ou se vê em aspectos de vitimização, a escola passa para ela a responsabilidade de se desumanizar o corpo, aí que a gente vai conhecendo os processos de embranquecimento. Olha o que o negro passa no Brasil: ele nasce negro, ele embranquece para enegrecer de novo depois. Eu posso dizer para você que eu estou ainda aprendendo, estou enegrecendo ainda, fui mais branca do que negra, tenho 35 anos de idade, mas passei a maior parte da minha vida sendo branca. 

A branquitude que eu digo é esse corpo esvaziado, esse corpo desumanizado, claro, quem quer ser negro no Brasil depois de tanto tempo, de tantos processos de desumanização? Vem a metodologia do IBGE e te oferece “olha, já que você não quer ser negro, você pode ser pardo” e aí que está a grande estratégia. Nós estamos no segundo processo de embranquecimento, que é o embranquecimento institucional.

“Por isso que eu bato muito quando alguém fala que “o negro é racista”. Não é porra nenhuma, o racismo é uma relação de poder”  

Ao mesmo tempo que ele é uma doença do branco, não tem nada a ver com o negro, e a gente não pode falar que a gente é racista, a gente está dentro desse curso da história, a gente está caminhando no curso da história.

Vocês estão se afirmando.

Você me desculpa, você se reconhece como?

Como eu me reconheço? (risos) É uma longa questão porque na minha família, eu vejo muito assim, por exemplo, as minha irmãs têm traços negros mais fortes, eu me afirmava como não-branca durante toda a minha vida, mas eu passei a reconhecer privilégios que eu tinha, dessa forma, me identificar como branca. Se me identifico enquanto negra ou como não-branca, não sei de que forma eu estaria assumindo esse protagonismo das pessoas que mais sofrem racismo.

Aí é que está, hoje existe essa questão de negligenciar o processo de miscigenação, hoje ela resulta em várias questões e uma delas se chama colorismo. O que acontece? Hoje a gente está passando por um processo muito difícil, onde eu me pego vendo os negros discutindo privilégios dentro da negritude, a gente está discutindo privilégios dentro da negritude, aí eu te pergunto: o que nós temos de riqueza material dentro da negritude? O que nós somos? O que nós representamos? A negritude, o que ela representa na distribuição de renda?

Nada, né?

Percebe que a gente está debatendo miséria e que está indo no caminho errado? Estão induzindo a gente, agora, a (pensar que a) responsabilidade de destruição desses corpos vazios é nossa, quando a gente vai debater miséria dentro da gente mesmo. Aí vem a questão do projeto também, por isso que eu digo, é um projeto político, é um movimento político, o Amazônia Negra. Eu não posso abrir uma exposição tomando champanhe e debatendo estética, por mais que eu precise debater estética sim, porque ela faz parte, é o nosso encontro, a nossa imagem, é o nosso primeiro encontro com os nossos papéis e com o nosso corpo, com o branco inclusive, mas a gente precisa debater exatamente essas questões que ainda nos fazem sermos minorizados. Nós não somos minorias, nós somos minorizados, por isso que eu falo que a palavra tem poder.

O que acontece são essas distorções, o Brasil é todo distorcido em relação à sua própria identidade. Isso é uma estratégia da branquitude, porque o que a gente consegue apenas enxergar é a branquitude e a humanidade dos corpos brancos a ponto de a gente debater privilégio entre a gente (risos). Quanto cruel, a estratégia é muito bem formulada, Dani.

Ela é.

A gente está dentro de uma estratégia muito bem formulada, onde a gente consegue ser alvo e apontar a arma na cabeça do nosso próprio irmão, então, no começo das eleições (de 2018), eu fiquei muito possessa com o Ciro Gomes, ele é daí (Ceará). Eu fiquei muito possessa com esse cara quando ele vira para o Holiday (vereador da cidade de São Paulo filiado ao Democratas, negro e gay) e fala para ele: “Seu capitão do mato!”. 

“Menino da beira”, Comunidade de Nazaré (RO) (Foto: Marcela Bonfim)

O que eu fiquei mais brava nesse processo? Ele tira o corpo dele de fora disso, ele joga toda a culpa de ser capitão do mato para o Holiday. O Holiday é um corpo negro vazio, esse corpo que a gente está falando agora, desse corpo negro que as pessoas olham e dizem: “Está vendo, o negro é racista com ele mesmo”. Esse corpo, essa massa de manobra, que discute privilégio entre nós, todas as distrações que hoje a gente sofre sendo negro no Brasil, sendo essa estratégia de consumo, mão de obra barata, que já foi fator de produção que continua ainda sobre essa égide da subserviência.

O Ciro Gomes vai lá e joga tudo na cara dele, joga no lombo dele a responsabilidade de ser capitão do mato, o que é ser capitão do mato? É a herança mais maldita que a branquitude deixou para o Brasil e ela não está atrelada ao negro, ela é essa estratégia, é o oprimido oprimindo o oprimido. É uma estratégia inclusive dentro do próprio movimento do branco, a gente vai perseguindo o mesmo movimento, a gente vê a negritude debatendo o colorismo, comprando essa discussão do colorismo e, quando ela compra essa discussão do colorismo, ela vai debater miséria dentro da própria negritude. A gente precisa debater privilégio é com o filho do Gerdau (Jorge Gerdau, bilionário do ramo da siderurgia), é com o filho do Ciro Gomes.

Na exposição “(Re)Conhecendo a Amazônia Negra”, eu percebi essa questão do silêncio e do olhar, os olhares muito fortes, você fala sobre esta questão da baixa autoestima. Como se deu esse processo de confiança entre você e os(as) fotografados(as)?

Vamos pensar no Brasil como uma fotografia, hoje, a fotografia do século XXI. Aí você pega a fotografia do século XVI, XVII, XVIII, quando você olha essas fotografias você vê que pouca coisa mudou, pelo menos é a minha observação. Eu não tinha nenhuma pretensão, nem sabia que eu sabia fotografar, mas hoje, ressignificando esse processo, percebo que a fotografia está dentro da nossa cabeça, ela não é um ato mecânico de apertar um botão. A fotografia é muito um condicionamento, o que é imagem para você?

É uma forma de representação.

Ela é uma forma de representação, mas antes é uma imaginação, a gente não precisa tirar uma fotografia para ter ela na cabeça, quando a gente ouve uma história, a gente faz as nossas fotografias, quando eu estou contando pra você sobre esse processo dos barbadianos, a Madeira-Mamoré, a gente está criando um balãozinho na nossa cabeça e ali está passando uma história.

Eu não precisei colocá-los nos lugares de negros, se você foi na exposição, você viu que tem muito retrato, eu comecei a retratar o rosto porque era a parte que mais me interessava, que me levava a reconhecer os meus traços naquele rosto, porque eu estava lidando com uma muito baixa autoestima, eu fiquei muitos anos sem (me) olhar no espelho, eles (me) esvaziaram nas revistas, eu não me via, quando eu me via na novela, eu me via como uma empregada, sempre estigmatizada.

Hoje, ressignificando isso para mim, o que é o retrato?

Quando eu retrato um rosto, eu estou falando de uma cidade toda e, quando eu falo de não fazer a mesma fotografia, estou falando exatamente desse processo de estigma, de dignificar esses pares, porque hoje eu vejo assim, quando a gente fala da história da fotografia, está falando da história do branco, onde é que a gente se vê na fotografia?

É a história do branco e a história sempre foi fotografada com o olhar do branco, vai procurar os acervos de fotografia sobre o negro, ele está sempre no lugar do negro, ele está sempre nas posições de negros. A Rosana Paulino (artista visual paulista) tem um trabalho sobre isso, ela pega as imagens da escravidão e faz um trabalho sobre isso. Como o corpo negro era fotografado antes? Ele ainda continua sendo fotografado da mesma forma.

Para mim, o que importava era estar conhecendo esse repertório que me foi negado a vida inteira, e esse repertório são esses lugares, quilombo, os lugares mais simples do meu corpo, o espelho, poxa! Esse processo que eu percorri e hoje ressignificando isso, condiz numa outra fotografia, uma fotografia que liberta os nossos corpos.

Se a gente for falar da história da fotografia, a gente está falando também da história do encarceramento em massa, porque a imagem nos encarcera até hoje, a gente está falando de estigmas também, então é por isso que o espelho vem forte. A gente está tocando numa ferida que não é tocada há muito tempo, que se chama baixa autoestima do negro, é um processo muito antigo. Desde a época da colônia o negro, quando era alforriado, automaticamente se negava como negro, aí vinha a atitude do pó de arroz, já assistiu Xica da Silva? (filme de Cacá Diegues, de 1976, e novela de Walcyr Carrasco, de 1996) A gente precisa preencher essas imagens, não adianta, quando eu passo num quilombo já passaram vinte fotógrafos brancos na minha frente, mas nenhum voltou para devolver a imagem, aí eles vão lá e publicam as imagens todas estigmatizadas.

Pelo que eu estou entendendo do seu processo, você vai lá conhecer. Você não vai colocar o outro dentro de características pré-concebidas, de forma bem sistematizada, o que é uma atitude do colonizador desde sempre.

É por isso que a fotografia existe muito antes do ato de fotografar, você percebe que quando vai um fotógrafo branco na comunidade ele já sabe o que ele quer fotografar, ele vai com o mesmo fetiche que eu cheguei em Rondônia, ele vai com o mesmo fetiche que o colonizador chegou no Brasil, a gente é um povo que é ensinado a fetichizar os outros.

Essa exposição roda o Brasil numa época bem complexa, ascensão conservadora, tudo muito amparado no racismo. Como você vê essa exposição rodando pelo Brasil e o seu trabalho nos próximos anos no cenário brasileiro?

Olha, eu demorei bastante para entender porque que eu deveria estar dentro desse processo das artes visuais e, ainda mais agora, vejo a importância de estar dentro das artes visuais. Eu sou economista, eu trabalho ainda como economista, me vejo hoje como um corpo político, eu sou um corpo político e esse corpo político está exatamente ali, é marcar posição mesmo, onde você veria a Marcela mais facilmente? Na frente ou atrás da fotografia, como protagonista ou exposta?

Eu vejo das duas formas agora, mas, antes, eu te veria como retratada sim.

“Dona Úrsula Maloney” (Foto: Marcela Bonfim)

Geralmente, quando as pessoas vão para uma exposição que fala sobre o negro, geralmente o assunto é negro, mas as pessoas já têm a fotografia na cabeça de quem é o protagonista, as pessoas nunca imaginam que é um negro que está falando sobre ele mesmo, o negro está falando sobre ele no Brasil, é uma novidade, principalmente no mundo das artes visuais. Eu vejo isso porque frequento as minhas exposições e, quando vão me apresentar para as pessoas que estão no espaço, é sempre uma surpresa. Era a mesma surpresa de quando eu ia procurar emprego lá em São Paulo e quando eu passava na prova, eu passava na prova da internet, porque tudo era computador. Quando eu ia conhecer o meu possível chefe, me apresentar na entrevista, era a mesma surpresa que eu tenho até hoje: “Nossa, você é a Marcela, que bom! Nossa, o teu currículo é muito bom!”

Como uma protagonista ainda sou uma surpresa, esta é a importância desse corpo político, a gente está lutando há muito tempo na resistência, quando a gente fala em resistência, você imagina que a história do negro é uma história de resistência, mas no nosso discurso hoje, somado à resistência, a gente tem que colocar a palavra existência. 

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Dani Guerra – daniguerra@revistaberro.com


One Reply to “(Anti)cárcere fotográfico, negritudes e existência”

  1. Parabéns pela entrevista maravilhosa Dani. Visitei a exposição e gostei muito, me enxerguei em mais um espaço, em mais um registro. Parabéns Marcela!!

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