Sem tempo para amaciamento



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(Ilustração: Lara Albuquerque)

Atendi o telefone e ouvi uma voz compenetrada:

– O companheiro precisa falar com a Lourdes de Paula, o quanto antes…

Ao saber da seriedade do que se tratava, a recuperação de uma delicada cirurgia, senti meu mundo tremer:

– Pode deixar, meu irmão, amanhã mesmo passo na casa dela, é só falar qual o melhor horário.

Reforçar meu compromisso com uma pessoa tão compromissada era mais que uma questão de honra, era uma questão de respeito, vergonha na cara e sobretudo amizade.

Maria de Lourdes Negreiros de Paula, a Dona Eulinha, mais conhecida como Tia Lourdes, enfermeira, servidora pública aposentada, sindicalista, militante feminista, ativista anticapitalista, que no ano de 2019 recebeu uma homenagem por meio de um vídeo documentário curta-metragem de direção de Alex Fedox. Tal documentário se resulta de um trabalho de conclusão de disciplina do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade de Fortaleza (UNIFOR).

Antes de tratar da obra em si me sinto na obrigação de ressaltar a relevância de Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC) e Trabalhos de Conclusão de Disciplina (TCD) em formato de vídeo documentário para a produção audiovisual contemporânea, facilitando acesso de dados, possibilitando pesquisas, disponíveis em plataformas como o Youtube. Muitos desses trabalhos não deixam nada a desejar diante de produções do circuito profissional audiovisual, com criatividade e desenvoltura, abrangendo diversos temas como a reinserção de egressos do sistema penal brasileiro; memória de engraxates da cidade de São Paulo; história do forró pé de serra; experiência de pessoas que receberam transplante de medula óssea, só pra citar alguns.

Junto a uma equipe plural, Alex Fedox entrega uma obra instigante e simpaticamentente questionadora, tal qual a personagem principal do documentário. Sim, pra quem ainda não teve a oportunidade de conhecê-la, Tia Lourdes é uma pessoa de humor afiado, aberta, gentil, solidária, mantendo o questionamento como toque essencial de sua doce e atrevida personalidade.

Além de advindo da disciplina Cine experiência 3 do curso e da universidade já citados, o documentário sobre Tia Lourdes, que leva seu nome no título, também é uma produção do Cine Molotov, cineclube e coletivo do campo audiovisual sediado em Fortaleza que enxerga nas produções cinematográficas e audiovisuais independentes um considerável viés para refletir sobre o mundo e a vida.

Essa mulher, Tia Lourdes, além das barreiras impostas contra seu gênero por uma sociedade baseada no patriarcado, doentiamente machista, iniciou sua militância política ainda nos “anos de chumbo”. Mesmo correndo os graves riscos do período ditatorial Tia Lourdes intensificou sua luta contra o autoritarismo, sempre em prol da liberdade.

O documentário expõe o que ninguém “se mete a besta” em negar: Tia Lourdes jamais será passado, ela é presente consciente e perspectiva de futuro para além do mundo do dinheiro, pois até hoje, apesar da idade, continua travando sua peleja contra os absurdos da sociedade capitalista, comparecendo em manifestações, colaborando em campanhas, vivenciando experiências contrárias a uma das coisas em que ela mais lutou contra em sua vida: a pelegagem.

No documentário Tia Lourdes se pode presenciar acontecimentos em que muitos sentirão a vontade de resgatar aquela sensível senhora, no vislumbre de invadir a tela para protegê-la, porém quem a conhece, mesmo de longe, sabe que ela não tem nada de frágil. Parte do público verá Tia Lourdes, uma senhora de idade, em situações em que essa mesma parte se nega veementemente a enfrentar, por medo, despolitização, irresponsabilidade, preguiça, descrença e uma série de outras características das quais ela não sofre.

A obra, dentre outros pontos, aborda como pessoas idosas encaram a desvalorização dos mais vividos, desvalorização essa que além de renegar saberes exclui idosos da vida social, enxergando nesses apenas uma fonte de aproveitamento e extorsão.

Além da grana das pensões e aposentadorias e da amável disposição pra assumir a criação de crianças dispensadas pelos próprios pais, qual interesse a sociedade tem em relação aos seus idosos? Tia Lourdes sabe, mas diferente de muita gente ela “dá os toques”, não guarda pra si o que pensa, expressa o que sabe sem pudores, sem temer machucar o ímpeto dos desencorajados, nem tampouco contrariar os mon bijou – nas palavras da própria Tia Lourdes, a “turma do amaciamento”.

Militante do grupo Crítica Radical, companheira de membros desse grupo desde o início dos anos 1980, Tia Lourdes entende a necessidade da luta cotidiana para subverter esse mundo caótico regido pela lógica do acúmulo de alguns que determina o definhamento de milhões de pessoas.

Como não poderia deixar de ser o curta expõe parte da trajetória de uma vida de lutas que o agora não esgotou, pois Maria de Lourdes Negreiros de Paula desconhece a desistência e do jeito que pode dá continuidade ao que defende e no que acredita.

Sempre com seus companheiros, participando ativamente de estudos teóricos, assim como de ações diretas, a militância de Tia Lourdes é mais que um símbolo de luta, é um exemplo de vida.

Tia Lourdes talvez ainda seja tão mal entendida como o próprio grupo Crítica Radical, que distante do populismo da política brasileira, segue fortalecendo sua fundamentação anticapitalista e sem abandonar pautas emergenciais, como no papel que desempenhou mobilizando a sociedade contra a demissão de 700 trabalhadores do Hospital das Clínicas e da Maternidade Escola da Universidade Federal do Ceará – UFC, pauta essa negligenciada por quase todas as forças de esquerda da cidade de Fortaleza; ou saindo em defesa do Parque do Cocó. O grupo, a partir do erguimento do Sítio Brotando a Emancipação, passa por uma nova fase de sua existência vivenciando seus propósitos de uma sociedade plenamente livre do dinheiro, em que nada é mercadoria.

Para o Crítica Radical, a esquerda reformista acaba reforçando a sociedade vigente ao se negar a identificar no capitalismo o causador de tanto atraso e violência; para a esquerda reformista o Crítica Radical é uma afronta, pois se nega a pirangar voto e a se sujeitar às sórdidas alianças com setores sociais historicamente de direita.

Nem mito, nem caricatura esquerdista, nem líder, nem representante de ninguém, Tia Lourdes é uma revolucionária – emancipacionista, como ela e o Crítica Radical preferem ser compreendidos – e embora tudo leve a crer que a práxis revolucionária tenha caducado ela segue, muito bem referenciada por conceitos que não se diminuem em meio à conformidade burguesa, muito menos frente aos pressupostos da esquerda fracassada. Tia Lourdes é povo que resiste, reage e transcende. Conforme nossos ancestrais ela é vida.

Essa é a “minha Tia”, que respeito conforme minhas tias consanguíneas que jamais me abandonaram e que são emoção e razão de muito do que me disponho a fazer. Essa é a “nossa Tia”.

Um dos melhores presentes que recebi na vida foi o convite de Alex Fedox para participar da edição desse documentário, que fala um pouco da luta que é paixão e que conquista a atenção de quem se aproxima.

Tia, tomara que a senhora goste, muito obrigado por cuidar de mim e me acoitar em seus braços e em seu lar em parte das persigas que sofri, por exemplo, nas quase infinitas histórias do Liceu do Ceará que fizemos parte. Obrigado por me ensinar tanto e me acolher nos acampamentos reivindicatórios dos anos de 1990 e 2000, como no acampamento no Paço Municipal em Fortaleza no ano de 1998, onde eu a conheci, que teve como uma de suas vitórias a garantia de comunidades fruto de ocupação de terra na área urbana da capital do Ceará, como a comunidade Rosalina. Obrigado por procurar entender a juventude, obrigado por defender nossas companheiras e companheiros.

O melhor disso tudo é que da minha visita à sua casa após aquela delicada cirurgia à escrita desses dizeres já se foram quase vinte anos e eu nunca vou esquecer que ela me garantiu que tudo ia ficar bem, como ficou.

Assistam, compartilhem, critiquem, discutam: Tia Lourdes

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Augusto Azevedo é estudioso da fenomenologia referente ao que é conhecido vulgarmente como pobres de direita


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