Padrão



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vitorgrilo@revistaberro.com

Deu meia-noite. Cedo demais pra pegar altura. Mas tinha marcado. Ia chegar um chegado, irmão da quebrada. Ele da Serrinha. Eu do Rodolfo. Eu trinta e poucos, ele vinte e tantos. Duas gerações de pixadores da Fortal City, onde o chicote estrala de noite e de dia. Nos lombo de uns mais do que nos de outros, é verdade.

Ele tinha ido trabalhar de dia. Chegou contando dos embaços. Era entregador. Carteira assinada nenhuma. Direito trabalhista? Ele sabia que era bom pela forma que o povo falava disso. Mas nunca tinha tido aquele negócio. Pra ele era lenda. Contou que o patrão colocava ele numa mobilete destruída. Ele ia entregar os garrafões d’água e a preocupação maior era se ela ia explodir. E num dia pegou fogo mesmo, contou ele.

Tinha uma filha. Que cuidava com amor e com o pouco que tinha. Nas palavras dele se percebia que o carinho era verídico. Tava descobrindo o prazer pela leitura. De vez em quando pegava um livro. E lia realmente, não era caô. Com o pouco estudo que ele tinha, se não o conhecesse, pensaria que era agá.

O muleque era bom pixador. Querido por todxs xs colegas do ramo. Preto padrão das favela daqui. Magão, espixado, curvado. Esse preto moreno sabe? Mestiço. Mas preto. Roupa era umas beca de marca de surf. Calça quase caindo. Quem via pensava que era um cabide andando de tão magrelo. Boneco do posto, chamam uns.

Então. Deu meia-noite. Pivete chegou.

Eu: “E aí fei. Coé mermo? Vamo nessa?”

Ele: “Oura”.

Saímos. Fomos andando aqui nas área. A meta era as altura doida. Eu não gostava dessas alturinha mamão. Preferia pixar menos masmelhor. Eis que chega um supermercado. Avenida movimentada. Altura cobiçada. Nunca tinha visto ninguém pegar. Rapaziada já sabia que tinha vigia e que era foda. Chance de rodar era alta.

Eu:”E aí? Vai encarar?”

Ele: “Oura.”

Subimos. Um pezinho no jeito no lugar certo e já era. Tava lá em cima já. A cerca elétrica só assistiu. Atravessamos aquele galpão gigantesco de quase um quarteirão. Meti meu nome. O primeiro. Eu: “Vai?” Ele: “Pode ir logo, vai. Mete o ôto.” Tava no segundo nome. Não tinha metido nem a sigla. Aparece o vigia.

Paramos de pixar. Ficamos esperando. Outro vigia. Viu a gente lá em cima na hora que o pivete foi passar os pano. Aí pronto. Ficaram lá embaixo embaçando. Chamaram os homi. Os homi mala, ficaram rodando com farol desligado em volta do quarteirão. Esperando a oportunidade. Eles a de dar um pau em nóis. Nóis a de dar o vazari. Depois de uma hora pelo menos – rolou um cochilo e tudo no friozin da ventania no telhado – fui passar os pano. 

O outro vigia viu de novo e dessa vez não tinha mais volta.

Eu: “Ei pivete. Vamo nessa. Rodamo mermo. Já era.”

Ele: “Já é. Cuida.”

Levanto a mão com a tinta na mão e grito: “É só pixador! É só pixador!” O fuzil já tava apontado pra nossa testa. Colocaram a gente num quartinho. Pêa pra vinte. O vigia que fez a denúncia ficou tão constrangido com a surra que a polícia deu na gente que não teve nem coragem de fazer a queixa. Levaram a gente pra delegacia, espancados, tudo inchado, sem constrangimento nenhum. Corpo de delito? Nem vi. Sei nem quem é. Liberaram porque não havia queixa.

Esse rolê todo pra nóis era só mais um. Pixar é arte. Rodar faz parte. O piau também. Acontece. Mas o que mais me chamou a atenção foi a diferença absurda entre a surra que deram em mim e a surra que deram nele. Me batiam sem entender. “Um cara bem parecido desse”. Só tapa. Quantidade bem menor. 

Queriam conversar pra saber por quê. Nele era diferente. A pêa era prazerosa. Sádica. Costumeira. “Tu é o da fuga né? Ladrão safado. Cala a boca se não apanha mais!” E murro e bicudo de bota. Riam e gozavam. 

Bater no branco, de óculos, era estranho, incompreensível.

No preto? Era só mais uma noite. Era só mais um preto. Era só o preto da noite.

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Vitor Grilo bota mó queixo.


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