Para além da Matrix (ou Ensaio sobre a Liberdade)



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(Ilustração: Rafael Salvador)

Por Artur Pires

Inflação galopante (leia-se arroz e feijão mais caro), ajuste fiscal (leia-se arrocho salarial, desemprego em massa e ataques aos direitos trabalhistas), energia elétrica em níveis estratosféricos, superávit primário e altas taxas de juros (entenda-se aperfeiçoar os lucros às grandes corporações, principalmente bancos e demais organizações financeiras), pagamento da dívida pública (leia-se “um mega esquema de corrupção institucionalizado”, de acordo com Maria Lúcia Fatorelli, fundadora do movimento Auditoria Cidadã da Dívida), “Minha Casa Minha Vida” (entenda-se otimizar as benesses financeiras ao capital imobiliário, remover comunidades pobres de áreas nobres e atirá-las em regiões distantes das cidades, sem infraestrutura sequer razoável de saúde, educação, mobilidade, lazer etc.), reforma política (leia-se “palhaçada!”), entre outras, são apenas uma ilusória aparência, a pontinha do iceberg que salta para fora d’água. O sistema político usa nomes pomposos – outros marqueteiros – para cortinar o seu totalitarismo. E consegue seu objetivo. As pessoas em geral esquecem-no, apegando-se às aparências, discutindo-as nas redes sociais, nos sindicatos, nos partidos, nos debates acadêmicos, nas mesas de bar, dando de ombros à parte submersa (o maior pedaço, aquilo que o sustenta cada vez mais forte para manter sua dominação).

A presidenta Dilma é mais um fantoche, assim como Eduardo Cunha, Aécio Neves, Renan Calheiros, Cid Gomes, Camilo Santana, Roberto Cláudio; também Obama, Angela Merkel, Sarkozy, Xi Jinping, Cameron e quase todos que têm mandato, seja este legislativo ou executivo, bem como aqueles dos altos escalões do judiciário. Todos cúmplices e peças da engrenagem de um modelo político totalitário, de inúmeros tentáculos, que consegue viajar fronteiras e penetrar gabinetes como nenhum outro jamais conseguiu. Obedecem ao sistema sem questioná-lo, cumprindo com todas as suas obrigações. Trabalhadores fieis. Mudam de cor nas eleições, dizem ser diferentes. Balela! Antes de chegarem ao poder, já coadunaram com as estruturas hegemônicas, estão comprometidos até o pescoço, por vontade e escolha, às articulações da máquina totalitária. Se locupletam com as máfias imobiliária, de armas, de drogas, dos transportes, dos alimentos, farmacêutica, bancária, financeira e fiscal, entre outras. Na Sociedade do Espetáculo, Estado e máfia são uma coisa só, um emaranhado de interesses sedento por poder autoritário, uma rede complexa e altamente estruturada de controle social. Para a hipnose sobre o oprimido funcionar a contento – e este não perceber a gaiola onde está preso -, contam decisivamente com a indústria do entretenimento (cinema e música) e da comunicação em massa (principalmente televisiva) com suas doses cavalares de programação majoritariamente bestializante, além da ilusão publicitária e seu consequente estímulo ao consumo.

Vivemos a Oceânia, de Orwell, retratada no clássico 1984, vigiados pelo “Grande Irmão”; ou o Admirável Mundo Novo, de Huxley. Estamos tão enredados nessa teia que muitas vezes turvamos o olhar, não conseguimos enxergar alternativas de autorregulação e autodeterminação fora da Matrix; é justamente nesse ponto que discutir quem é menos ruim (se Dilma ou Aécio, PT ou PSDB, para ficar no exemplo-mor brasileiro) só interessa às estruturas poderosas à qual todos estes baixam a cabeça em subserviência. Debater essas questões falseadamente dicotômicas é cada vez mais inócuo, porque não muda nada. Esse pluralismo de escolha entre partidos (esquerda x direita) é ilusório e amplia as condições objetivas para o controle total dos corpos e dos povos. O saudoso Eduardo Galeano estava certo: “A liberdade de eleições permite que você escolha o molho com o qual será devorado”.

Uma coisa precisa estar clara (tiremos a venda que nos cobre a vista!): não há saída para a liberdade, para a justiça, para o amor, para a vida dentro dos marcos do sistema político, esse circo que a cada dois anos transforma dezenas de milhões de pessoas no Brasil em torcedores apaixonados e com viseiras laterais que lhe tapam parte da vista (iguais àquelas utilizadas pelos jumentos no sertão), esquecendo-se que para isso – torcer fanática e/ou sectariamente – já há o futebol, ou qualquer outra atividade de competição lúdico-desportiva.

Não há solução dentro da urna eleitoral. É só mais uma engrenagem de controle e um desnecessário apego às velhas técnicas de representação político-social. É preciso lembrar que as formas de práxis e ação históricas não são imutáveis; pelo contrário, são dinâmicas e impermanentes. A ilusão de que o voto e o atual sistema político mundial mudam alguma coisa é a mais bem engendrada mitificação da mentira em toda a História. Em verdade, não transformam a realidade social, mas tão-somente encobrem sua dominação, travestindo-se de democráticos: “precisamos aperfeiçoar nossa democracia, fazer leis que aprimorem a participação popular”; “na próxima eleição, a gente muda esse Congresso”; “vamos conseguir eleger alguém que nos represente lá dentro”; “eba! Conseguimos eleger um deputado (entre dezenas)”. Muitos movimentos sociais, partidos e militantes de esquerda caem nesse discurso que, trocando em miúdos, não muda na-di-ca de nada! Quem faz as leis? Quem executa as leis? A quem serve o judiciário? “A ditadura perfeita terá aparência de democracia: uma prisão sem muros na qual os prisioneiros não sonharão sequer com a fuga. Um sistema de escravidão onde, graças ao consumo e ao divertimento, os escravos terão amor à escravidão do trabalho” (Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo).

Não! Não e não! Estamos abrindo mão de nossa liberdade, de nosso próprio agir. Ao delegarmos poder a alguém por procuração eleitoral, acontece que, ao invés de exercer o poder por nós, esse representante exercerá o poder sobre nós. Ousemos. A vida acontece hoje, na nossa cara. Todo dia. As algemas do sistema político são grossas, mas podem ser rompidas. Galguemos nossa liberdade. A alforria arrancada à força está ao alcance: na gente, na rua e nos sonhos mais elevados. Pensemos em fazer a revolução primeiramente dentro de nós, nos libertando das amarras invisíveis que nos aprisionam, que nos mantêm encarcerados ao modo de vida do não-vivo, do superficial, do aparente; que nos engaiola no egoísmo mais mesquinho. Depois, que a façamos em casa, nas nossas relações cotidianas, fraternas e amistosas, sem impor nada ao outro, sem autoritarismo ou chantagem emocional. É hipocrisia das grandes dizer-se revolucionário e manter alguma relação de poder autoritário (seja com esposa(o), pai, mãe, filha(o), amiga(o), aluna(o), animal de estimação, etc.). Por fim, que a façamos nas ruas (ahh, a rua!), esse lugar tão vibrante, que é nosso, muito nosso.

Façamos por nós mesmos. Com nossas almas e esforços. Ações diretas, coletivas. Sem recorrer a presidente, governador, prefeito, deputado, senador, vereador. Façamos por nós mesmos! Eu, você. Nós. Eles. A humanidade é, sim!, capaz de criar novas maneiras de sociabilidade, de participação política, de convívio, interação e mobilização sociais. A revolução não é um evento estático, é um processo cheio de dinamismo, certas vezes permeado pelas pequenas contradições da prática, é verdade, mas é também grandiosa porque coletiva, soma anárquica das revoluções internas e externas de cada um. Revolucionar-se de maneira plena, endógena e exogenamente. Porque ela, essa energia vivente chamada revolução, não está só fora de nós, mas dentro também. Nem somente dentro de nós, mas à parte, no outro, naquilo que pulsa, que tem vida.

Se parássemos hoje mesmo de delegar nossa representatividade a outros, e vivêssemos dia a dia para legitimarmos a nossa existência, que é, em resumo, sonhar, aprender, fazer/agir e se doar à coletividade, estaríamos noutro patamar de humanização, libertaríamo-nos desse modelo inanimado do capital, que nos priva, em essência, da grandeza existencial da vida. A liberdade é um processo, não uma circunstância que lhe apresentam, não um direito que lhe dão. Ela não é dada por ninguém, é arrancada à força! A liberdade já começa quando sonhamos em ser livres.

*Artigo publicado na Revista Berro – Ano 02 – Edição 04 – Julho/Agosto 2015 (a seguir, versão PDF).


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