Crônicas da Cidade: Dedé, boemia e futebol



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De antemão, cabe aqui explicar que a “Cidade” do título está em maiúscula porque não se refere à cidade de Fortaleza especificamente, mas a uma Cidade dentro da capital: a Cidade dos Funcionários, bairro situado ao sul da metrópole, adjacente às Cajazeiras, ao Cambeba, ao Castelão, ao Jardim das Oliveiras, ao Luciano Cavalcante, à Messejana, ao Parque Iracema, ao Parque Manibura, ao Tancredo Neves e à Vila Cazumba.

A Cidade dos Funcionários tem esse nome porque foi um loteamento pensado pelo Governo do Estado entre o fim dos anos 1960 e o início dos anos 1970 para abrigar boa parte dos funcionários públicos estaduais. Até meados da década de 1990, a Cidade era considerada periferia de Fortaleza, muito distante dos centros financeiro, comercial, educacional, turístico e de lazer da cidade.

De lá para cá, a Cidade cresceu, atraiu serviços diversos, já tem mais de 20 mil moradores, e enfrenta um processo predatório de especulação imobiliária. Mas ainda assim, em alguns pequenos pedaços de resistência no bairro, vilas de casinhas simples se mantêm em meio às casas maiores e aos novos prédios e condomínios residenciais que despontam nestas bandas.

A praça, no cruzamento das avenidas Oliveira Paiva e Desembargador Gonzaga, em frente à igreja e ao colégio público, ainda é ponto de encontro obrigatório da juventude, quer seja para trocar uma ideia despretensiosa, bater uma bola, curtir um “feijão verde”, tomar umas biritas… Sem esquecer dos papudins mais antigos, que marcam presença cotidianamente nas barraquinhas que vendem bebida e churrasquim de gato, cachorro, preá, peba… E, eventualmente, até de gado e porco.

A Cidade é também palco de muitos personagens e de muitos “causos”, terra fértil onde brota muita história boa para contar. Vamos à primeira delas.

Dedé: boemia e futebol

Roda de samba
A barca era a parte que Dedé mais gostava

O ano era 1978. A Cidade dos Funcionários, com uma quantidade absurda de terrenos inabitados, tinha mais campo de futebol do que qualquer Centro de Treinamento do Barcelona ou Real Madrid. Até mais do que o glorioso Fortaleza Esporte Clube. Era um campo a cada esquina. Um paraíso pros amantes da arte com a bola nos pés. Dezenas de times formavam a liga de futebol do bairro. Entre todos os jogadores, um destacava-se pela sua fama de craque, artilheiro – e também boêmio: Dedé.

Contam os mais velhos que Dedé foi o maior craque que já desfilou suas habilidades futebolísticas por estas bandas. Dotado de uma técnica apurada para o drible e faro impressionante para balançar as redes adversárias, ainda assim desconfia-se que o filho de Seu Zé Grande e Dona Mariazinha gostava mais das barcas regadas a álcool após os jogos do que propriamente dos inúmeros gols marcados.

Muitos anos antes do trapalhão mais sem graça ganhar fama com o apelido de duas sílabas, Dedé já era unanimidade na Cidade – com o perdão da pobre rima. Então, é mais fácil o Dedé trapalhão ter copiado o apelido do Dedé daqui do que o contrário. Conta a lenda que assim aconteceu. A mesma lenda diz também que o atual zagueiro do Vasco e da Seleção Brasileira, com o mesmo nome, se inspira, toda vez que sobe ao ataque, no filho ilustre da Cidade dos Funcionários. É melhor não duvidar, viu!

Décadas antes de Clodoaldo, o “Capetinha do Pici”, infernizar as zagas adversárias e secar os estoques de bebidas dos botecos de Fortaleza, Dedé já fazia o mesmo pelas bandas daqui da Cidade. Ninguém merece mais a alcunha de “Garrincha cearense” do que o filho de Dona Mariazinha.

Mas voltando ao início da história que vou contar, o ano era 1978. A Seleção da Cidade, treinada por Marreira, um dos mais experientes e exigentes treinadores do subúrbio alencarino, iria enfrentar a Seleção de Messejana. Um clássico da zona sul de Fortaleza. Hoje em baixa, a rivalidade entre os bairros já foi “digna” de ser preciso montar esquema de segurança para manter a integridade física dos jogadores. Dedé, lógico, era o principal nome do time da Cidade. O jogo aconteceria no campo da praça. No dia do clássico, a população do bairro entupiu as calçadas e as beiradas do campo para assistir ao confronto. Ninguém queria perder a oportunidade de presenciar tamanha partida.

O esquema de segurança para o grande confronto estava a postos: o policial Cara Seca (que passou o jogo rezando para que não houvesse nenhuma confusão), o vira-lata Zezim e o galo-de-briga indiano Goeludo.

O jogo

O jogo começou truncado, pegado; socos e pontapés às escondidas do juiz eram distribuídos à revelia, justificando a rivalidade que existia entre os times. “Do pescoço para baixo é canela”, berravam os torcedores. A partida seguia num toma lá dá cá medonho, até que, aos 25 minutos do primeiro tempo, em jogada na qual driblou três adversários, inclusive deixando o goleiro sentado no chão, Dedé abriu o placar para a Cidade. A galera foi ao delírio! Torcedores se abraçavam efusivamente! O grito da torcida era um só: “Uhhh, terror! O Dedé é matador! Uhhh, terror! O Dedé é matador!” (Como sabemos, anos mais tarde a torcida do Fortaleza ressuscitaria o grito invocando o nome do baixinho Clodoaldo).

Zezim, Goeludo e Cara Seca até tentaram esconder, mas os pulinhos de alegria dos três entregou para quem estavam torcendo.

O jogo seguiu disputadíssimo. Nos últimos 20 minutos do primeiro tempo, após jogadas individuais, Dedé ainda teria mais duas grandes chances de ampliar o placar. Mas, por muito capricho e vontade de querer marcar apenas golaços, foi vencido pelo goleiro Aurélio, que evitou uma tentativa de gol por cobertura e outra de letra.

Marreira se enfureceu no banco de reservas e de lá mesmo berrou ensandecido:

– P*%# que par*&, Dedé! Que por*# é essa? Tá maluco? Vai frescar assim na casa do car*&*#! Bora, vem frescar aqui no banco. Sai do meu time agora! Sai! Sai!

Dedé, contrariado, saiu resmungando, emburrado. Por mais que tivesse perdido os gols por displicência ou puro capricho, tinha sido ele quem tinha armado todas as jogadas perigosas de gol do time da Cidade. Mas a substituição já tinha sido feita. O craque estava fora. E finda o primeiro tempo.

A reviravolta

Dedé, indignado, nem no banco de reservas ficou mais. E eis, então, o momento crucial da partida, que, ironicamente, aconteceu no intervalo e não durante o jogo. O técnico do time de Messejana, Apolônio Abreu, que não era besta nem nada, tratou de aliciar Dedé para jogar o segundo tempo pelo seu time. É bom que se esclareça que à época os amistosos de futebol suburbano não tinham regras pré-determinadas, ou seja, não era o MMA, mas também valia quase tudo. Dedé, extremamente aborrecido com Marreira, que injustamente o havia sacado do time, por mais amor e respeito que tivesse com a Cidade, aceitou o convite.

E então começou o segundo tempo, com Dedé vestindo a camisa verde e branca do time da Messejana. O artilheiro era um ídolo na Cidade. A cena parecia surreal: Dedé, jogando contra a Cidade, dentro da Cidade. Para incredulidade dos torcedores, aquilo realmente estava acontecendo ali, a olhos vistos, no campo da praça, palco principal dos jogos no bairro.

Marreira, preocupadíssimo com a “novidade” no time da Messejana, gritava aos seus comandados:

– Pega o Dedé! Não deixa ele pegar na bola.
– M-mas, professor, o hômi é muito rápido, difícil de marcar, se queixava o zagueiro Aroldo.

E uma hora Aroldo e Durval, zaga titular do time da Cidade, não conseguiram segurar o hômi. Após cruzamento da esquerda de Soares, Dedé subiu entre os dois zagueiros e cabeceou para marcar o gol. O jogo estava empatado. Os torcedores, ao invés de vaiar Dedé, proliferavam xingamentos inenarráveis para o treinador Marreira, o homem que dispensou o craque.

O jogo seguiu. A partida já caminhava para o fim. Aroldo, Durval e o goleiro Paulão comemoravam o fato de levar apenas um gol do matador. Mas artilheiro que é artilheiro, não se pode desgrudar a vista um segundinho sequer. Aos 45min, Dedé pegou a bola na entrada da área, limpou Aroldo com um finta de corpo, Durval veio num carrinho pra “matar ou morrer”, mas “morreu” caído no chão, estatelado, vendo Dedé passar lépido e fagueiro para ficar frente a frente com Paulão. Não deu nem tempo do goleiro da Cidade ver. A bomba de pé direito chacoalhou a rede no ângulo. Golaço! Era a virada da Messejana. Dedé não comemorou o gol em respeito ao seu time de coração. Pouco tempo depois, fim de jogo.

Marreira foi vaiado ostensivamente e teve de sair do campo sob a proteção do trio Cara Seca, Zezim e Goeludo porque se não…. Dedé, ao contrário, foi aplaudido de pé pelos torcedores presentes.

– Bora Dedé, aproveitar agora a barca lá na Lagoa da Messejana com a gente, disse o técnico Apolônio após o fim do jogo.

– Apolônio, até agradeço, mas minha casa é aqui. Vou comemorar por aqui com meus companheiros de Cidade. Eles perderam, mas eu ganhei. Hoje é por minha conta, rapaziada! Afinal, não é todo dia que se faz três gols jogando por times diferentes no mesmo jogo, né?

E assim Dedé compensou o fato de ter feito dois gols no seu próprio time: pagando três litros de cana da boa para os companheiros de Cidade, que, àquela altura, já o haviam perdoado pelos dois gols tomados. O momento etílico, sem dúvida, era a parte que ele mais gostava.

Marreira? Ahhh, o Marreira por muito tempo não pôde botar o pé na rua, tamanha a revolta dos moradores do bairro com a atitude estúpida do treinador.

Hoje, Dedé desfila suas habilidades etílicas pelos bares do bairro. O futebol é coisa do passado, mas as lembranças estão vivas na memória. Homem de voz rouca e conversa saudosa, pode ser encontrado facilmente nos botequins do Chiquim ou da Dindô, cantinhos boêmios tradicionais da Cidade dos Funcionários. Ao vê-lo, os dedos dos pés inchados sempre me despertam a indagação: inchados por conta de muito futebol jogado nos campos de terra batida ou muita cachaça tomada nos botecos dessa vida?


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