Córagi, dinhêro i bala



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(Ilustrações: Klévisson Viana, na HQ Lampião… Era o cavalo do tempo atrás da besta da vida; 1998, SP, Hedra)

Das reminiscências infantis, do início dos 90, guardo com gosto doce de saudade as temporadas de férias que passava na casa dos meus avós maternos, em Barbalha, no Cariri cearense. A ida ao Cariri já era um aventura: seis horas de viagem cruzando o Ceará de norte a sul, até chegar à Chapada do Araripe. Na metade do caminho, a paisagem borrada pela aridez amarelecida da caatinga e o verde tímido dos mandacarus anunciava o sertão central, pras bandas da Quixadá de Rachel de Queiroz. Para matar o tempo da duradoura jornada, sentava-me junto a uma das janelas do carro e minha irmã escorava-se à outra; contávamos, cada um no seu lado, os jumentos que víamos na beira da estrada. Aquele que contasse mais jumentos ao final da viagem ganhava. Ganhava o quê? Ora mais, a oportunidade de arengar com o outro. Eu quase sempre ganhava. Mas, devo confessar, lançar uma mea culpa: vez ou outra contava dois jumentos onde só tinha um.

A casa de vovó Bibi e vovô Chico vivia cheia. Também pudera! Tiveram 11 filhos, um time de futebol completo, e os netos, àquela época, começavam a surgir aos magotes. Era uma meninada danada correndo pelo quintal, aquele grande quintal dos pés de lima, goiaba, banana e carambola, dos crótons, das samambaias, dos bouganvilles e das coloridas roseiras – essas, o grande chamego de vovó. Na parte mais baixa do terreno desnivelado, o poleiro feito por vovô acomodava as galinhas de capoeira e os capotes. Os almoços dominicais eram fartos, regados a galinha ao molho, feijão verde e suco de goiaba, tudo apanhado na mesma manhã do galinheiro, da horta e dos pés de planta no quintal.

Embora a casa vivesse cheia, o quarto de vovô não. À parte ele, que era o guardião daquele espaço secreto, enigmático da casa, só quem mais entrava por ali era vovó e algumas tias mais velhas. Sim, vovô tinha um quarto só para ele, porque àquela idade, chegando aos noventa, requeria cuidados especiais. O seu andar arrastado, vagaroso, pelo corredor da casa, do quarto à mesa do almoço e da janta, marcado compassadamente pelo som das alpercatas de couro feitas em Juazeiro deslizando pelo chão – chic, chic, chic – compõe uma memória auditiva da infância. Chegando à sala, do alto do seu corpanzil magro, da pele morena, e por baixo dos cabelos bem pretos que lhe escorriam sobre os olhos miúdos, fitava-nos com um olhar singelo de boa gente.

– A bênção, vô!
– Deus abençoe, meu neto! – e sacudia com seus dedos longos, de mãos já trêmulas, meus cabelos.

O quarto de vovô despertava em mim tanta curiosidade, mas tanta, que só era comparável à do Chaves, da Chiquinha e do Quico em conhecer a casa da Bruxa do 71. Um dia à tarde, em que minhas tias tinham ido à feira, meus pais e minha irmã ao Crato e vovó descansava a sua merecida sesta, larguei o pião que rodopiava na sala e fui de ponta de pé à porta do quarto misterioso. Olhei curiosamente por entre as frestas, mas como o local não tinha tanta luminosidade, percebi apenas que vô Chico estava sentado ao birô, revirando papéis velhos. Bati na porta – toc, toc, toc – e, sem esperar resposta, fui entrando. O quarto tinha um tom levemente alaranjado; a pouca luz que entrava pelas venezianas espelhava-se nos móveis antigos de madeira e davam essa tonalidade. Compunham também o ambiente um baú de velharias, quase escondido num rincão do local, e uma cadeira de balanço. Um mini-antúrio colocado estrategicamente em cima do birô dava uma brisa de planta àquele lugar.

Vovô mirou-me com olhos de susto, quis guardar os papéis que remexia, mas embaralhou-se todo. Percebi sua indecisão e aproximei-me ainda mais. Eram jornais velhos, muito velhos, que ele guardava com especial cuidado.

– O que faz aqui, menino danado?, perguntou-me, com sua voz rouca, desgastada pelo implacável tempo, pondo as grandes mãos sobre os jornais.
– Num tem ninguém em casa. Só vovó que tá dormindo. Vim ver se o senhor não tá precisando de nada, disse, dissimulando.

Nesse instante, ele me lançou olhos de nuvens. Aquelas vezes em que o olhar das pessoas nos fitam, mas vagueiam distantes, lentos, passeando por lugares e formas que só a mente alcança, como as nuvens no céu. Falou com seus botões, naquela linguagem sem palavras, mas gestual, que todos trazemos conosco. Decidiu algo. Voltou-se a mim e indagou-me:

– Já ouviu falar de Lampião?
– Já, vô. É aquele negócio que o povo antigo usava antes de existirem as lâmpadas. Vó Bibi disse que vocês usavam era muito aqui em Barbalha.

Seu Chico riu daquela inocência. Foi uma gargalhada gostosa. Nunca o tinha visto gargalhar daquele jeito. Seus olhos amiudavam-se e sua cara engelhava ainda mais. Ri também, sem saber por que, mas levado por uma sensação boa; naquele momento me senti mais próximo de meu avô, como se o riso juntasse as almas.

lampião2Se recompôs, retirou as mãos de cima do jornal velho que segurava, fez um gesto de mãos como que me chamando, e mostrou-me uma manchete: “Polícia caça Lampião e seu bando”. Eu tinha virado doutor do ABC há pouco tempo e já podia ler. Li e em seguida encostei-me à beira da cama. Vovô fechou o jornal, passeou a vista pelo quarto ao tempo em que, novamente com olhos de nuvens, passava os dedos pontudos sobre o rosário preso ao pescoço:

– Lampião, meu neto, foi um cabra danado, sertanejo valente, que fez justiça por estas bandas do Nordeste com as próprias mãos.
– Foi mesmo, vô! E cadê ele?
– Ihhh, já morreu faz tempo. Mas de lá pra cá não apareceu um cristão que fosse cabra macho como ele foi, disse seu Chico, com ar saudoso.
– O que ele fazia vô?
– Hummm… (longa pausa). Ele queria mudar as coisas, meu fi. Muitos dizem que ele era bandido, mas nera não. Perdeu o pai e a mãe novo, de morte matada, pela polícia. Depois, desacreditado da vida, saiu aí por esse sertãozão de meu deus atrás de fazer justiça com as próprias mãos. Tirava dos barão, dos comerciantes e dos fazendeiros pra dividir com o povo do sertão e com os seus.

Àquela altura, a figura de Lampião mexia com meus pensamentos. O imaginava um homenzarrão corajoso, destemido, que enfrentava os perigos sem pestanejar. Um herói!

– Ele é mais valente que o Jaspion, vô?

Seu Chico não se conteve novamente. Dessa vez, não gargalhou tão forte, mas ainda assim seus olhos apequenaram-se.

– Muito mais valente que o Jaspion. Muito mais!, disse ele, recorrendo à gaveta, de onde tirou um pequeno frasco, no qual tinha um pó amarronzado que ele grudava aos dedos e levava às narinas. Fung!, fung!
– Que é isso, vô?, perguntei-lhe com grande espanto.
– É torrado! Misturo o rapé com a raspa da imburana e fica assim, esse torrado cheiroso.
– Hum-rum!, disse eu, sem entender muito aquela explicação, mas dando-me por satisfeito.

Repetiu aquelas fungadas diversas outras vezes aquela tarde. Adorava torrado, ele! Após um daqueles funga-funga, voltou seus olhos miúdos a mim e perguntou-me se eu queria ouvir uma história, mas tinha que guardar segredo. Ouvir histórias me fascinava. Disse que sim, que já era um rapazinho e sabia guardar segredo. Respirou fundo, voltou os olhos para o jornal e começou sua narrativa:

– Foi há muito, muito tempo atrás, no ano de 36. Sua mãe não era nem nascida ainda. Eu era guarda-fios, meu fi, profissão que nem existe mais. Tinha que me embiocar no meio do mato para consertar e cuidar dos fios do telégrafo que chegavam aqui na Barbalha. Nesse dia, era cair da tarde, as galinhas já trepavam nos poleiros e as raposas empinavam o nariz para sentir o olfato da caça. As cotias e os pebas também cuidavam de ir para seus esconderijos. Os gatos do mato podiam aparecer. Mas eu andava prevenido com uma peixeira nas calças. O sol caía manso, bola de fogo laranja, por trás da Chapada. Nessas horas, no entardecer, parece que o sertão fala mais alto, anunciando a lua nova. Estava já voltando para casa, já sonhando com o guisado de carneiro que tua vó tinha feito, quando ouvi um gemido de dor, acompanhado de uma súplica rastejante: “Me ajude aqui, homi de deus”. Quando olhei, embaixo do pequizeiro, vi um homem baleado na altura da coxa. Sangrava muito da perna esquerda…

Seu Chico contava aquela história com grande convicção. Ele estava ali, naquele quarto, em carne e osso, mas seus olhos de nuvens estavam no meio do mato, naquele encontro inesperado com o homem baleado. Mexia as mãos ao falar, fazia grandes gestos, revivia tudo, tudo.

– Tive que ajudar aquele homem. Ôxe, um homem baleado na minha frente e eu não ia fazer nada? Perguntei o que tinha acontecido. Quem o havia acertado. Disse que tinha sido um macaco.
– E macacos sabem atirar, vô?
– Macaco é como chamavam os policiais, meu neto. Macacos! Perguntei por que tinham feito aquilo. Ele disse que me explicava tudo, mas que antes eu precisava levá-lo dali, dá-lo guarida, estava correndo perigo. Eu nem conhecia aquele homem, nunca o tinha visto na minha frente, mas suas palavras e feições me pareceram verdadeiras. Ajudei-o a levantar-se, escorei-o ao meu ombro e saímos dali; ele andando com dificuldade, mas seguro de que precisava sair daquele matagal o quanto antes. Quando chegamos em casa, tua vó nos recebeu com espanto. Perguntei-lhe onde podíamos abrigar aquele homem. Ela não se fez de rogada: prontamente providenciou esse quarto, esse mesmo quarto que estamos agora para acolhê-lo.
– E quem era esse homem, vô?
– Pera que eu vou chegar lá. Amarramos um pano na perna para estancar o sangue. Sua vó foi fazer um mastruz com leite bem forte pra dar pro homem, que comeu também do carneiro guisado. Deixamos ele descansar aquela noite. Estava debilitado, sem forças, febril. No outro dia, fui ter com ele, afinal precisava saber quem era aquele cabra que estava aqui em casa e o que ele tinha feito pra levar bala da polícia. No outro dia de manhã, levei-lhe um café preto, daqueles bem forte que só tua vó, dona Beatriz, sabe preparar. Enquanto ele tomava, perguntei: Como é cabra, explica essa história direito, como foi que aconteceu isso aí?, disse, apontando para a perna atingida. Ele deu um grande trago no café, remexeu-se na cama, ajeitou-se numa posição que lhe parecia confortável e emendou, olhando firme para mim: “Meu nome é Virgulino, mas todo mundo me conhece por Lampião”, disse ele, sacando da cintura a parabellum que até aquele momento estava escondida nas calças. Ôxe, nessa hora minhas pernas tremeram. Sabia da fama de Lampião, mas nunca ia imaginar que o cabra fosse parar aqui em casa, na minha frente. Engoli a seco, gaguejei um pouco, mas me contive e conversamos. Conversamos um bocado. O cabra era bom de prosa, num sabe?

Eu, embasbacado, acompanhava aquela história com a mão no queixo, os olhos vidrados em vovô – que de vez em vez dava uma fungada no seu torrado – e a mente longe, tentando me teletransportar ao passado. Vô Chico continuava:

– Mas olhe, ele teve foi sorte de que o tiro pegou só de raspão. No final do segundo dia aqui em casa, à base de mastruz com leite, café preto e cuscuz, ele já estava bem melhor, com uma aparência bem mais saudável do que a daquele dia embaixo do pequizeiro. Perguntava muito sobre o movimento na rua, se ainda tinha alguém do seu bando pelo Cariri, etc. Conversamos sobre muitas coisas, sobre a Coluna Prestes, sobre a visita dele ao Padre Cícero, sobre o cangaço, sobre Maria Bonita, sobre o Cariri – ele dizia que aqui era um terra boa -, sobre as injustiças dessa vida, meu neto, que você ainda há de conhecer…

Nesse instante, vô Chico retornou ao jornal velho, amarelado, e começou a lê-lo: “Lampião foi baleado em confronto com a polícia há dois dias em Barbalha e encontra-se foragido. Ninguém sabe o seu paradeiro”. Fechou o diário e riu. Riu com desdém, um riso irônico, de canto de boca, de quem sabia o paradeiro de Lampião. Senti que aquela história mexia com ele, lhe trazia um sopro de vida novo. Fez olhos de nuvens diversas vezes; viajou, sonhou, vagou pelo passado, passeou por uma história que há dezenas de anos andava adormecida em suas lembranças.

– Sua vó ficou aos nervos quando soube que o cabra era Lampião. Mas com aquele coração mole, foi fácil convencer ela a deixar o homem ficar mais umas noites até que ele se recuperasse totalmente. Nessa época, a gente não tinha que esconder ele de ninguém aqui em casa. Só tua tia Rosa era nascida. E muito miúda. Não entendia da vida ainda. Só que no terceiro dia, quando pela manhã fui levar o café preto para ele, a cama estava o canto mais limpo. O homem não estava mais lá. Tinha-se ido.

Nessa hora, vô Chico fez uma pausa na história, se levantou da cadeira de balanço, caminhou ao baú de velharias, remexeu os papéis, pegou com cuidado um em especial, bem velho, já bastante amarelecido pelos anos. Deu mais uma fungada no seu rapé e sentenciou:

– Mas ele deixou um bilhete. Esse aqui, aos garranchos, no qual agradecia a mim e à sua vó pelas horas de cuidado, pela confiança, pelo mastruz com leite e pela prosa. No fim, dizia que tinha que voltar ao seu bando, à sua Maria Bonita, precisava ir.

Pedi para ver o bilhete, afinal já era doutor do ABC, já sabia ler. Não lembro de quase nada do que estava escrito, exceto uma frase que matuta na minha cabeça ainda hoje, mais de vinte anos depois de lê-la: eu carrégo cumigo coráge, dinhêro i bala!


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