O protagonismo negro no processo de abolição



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Por um longo período a historiografia tradicional convencionou-se a dar os louros do fim da abolição aos abolicionistas, aos políticos que compunham o parlamento nacional à época e a uma monarquia decadente que queria se sustentar no poder e, por isso, posava de simpática à abolição (Abolicionistas: lobos em pele de cordeiro). O papel crucial do negro em todo esse processo de rompimento era flagrantemente esquecido. Ou seja, essa visão negava “ao negro a condição de sujeito da história, encarando-o tão-somente como objeto a ser resgatado das trevas da escravidão pelos verdadeiros sujeitos daquele momento histórico, os abolicionistas” (Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites do século XIX, Célia Marinho de Azevedo).

Os próprios abolicionistas percebiam os negros como limitados mentalmente. Para eles, o escravo, devido às suas características raciais, que o tornavam um ente passivo e isolado, não tinha capacidade intelectual de alcançar por si só a consciência de sua situação de oprimido e explorado, em função de sua condição estrutural. A idéia dominante era a de que o negro, “apesar de toda sua rebeldia, estava impossibilitado de conferir um sentido político às suas ações, dadas as próprias condições objetivas de um modo de produção que os reduziria irremediavelmente à alienação ou à incapacidade de assumir por si sós uma consciência de classe” (Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites do século XIX, Célia Marinho de Azevedo).  Visão mais racista impossível!

Uma corrente relativamente nova da História Social tem se empenhado em dar o devido destaque ao protagonismo negro no rompimento do modelo escravocrata. De fato, o movimento abolicionista não teria obtido êxito não fosse a resistência escrava. A idéia do negro passivo, submisso e grato ao seu senhor não passava de um grande desconhecimento que vinha do distanciamento material, moral e cultural da elite com o escravo, que a impedia de perceber o cotidiano dos negros e entender a fundo suas relações sociais e culturais. Provavelmente por isso, “o que hoje se reconhece como formas de resistência, naquela época, mesmo entre as mentes mais humanitárias, passava por desordem, desenfreamento, paixões soltas e criminosas” (Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites do século XIX, Célia Marinho de Azevedo). Trazendo para os dias de hoje há muita similaridade, na qual formas de resistência também são tachadas como “vandalismo e desordem”.

Desde os primeiros anos do tráfico negreiro, ainda em meados do século XVI, os quilombos, as fugas em massa, os assaltos às fazendas, as revoltas individuais e coletivas e as tentativas de insurreições fizeram parte de todo o arcabouço de resistência que compreendia o comportamento do negro dentro do sistema escravista. O Quilombo dos Palmares, que se formou no século XVI (1597), na serra da Barriga, então capitania de Pernambuco, hoje parte de Alagoas, que durou quase um século (até 1694) e chegou a reunir, no seu auge, mais de 20 mil escravos fugidos, é um claro exemplo da insubmissão negra. “A destruição sistemática dos quilombos não impedia a formação de outros, pois a matança dos quilombos só fazia aumentar a ‘justa cólera’ dos negros que se lançavam sobre as fazendas dos brancos, pondo fogo a tudo e seduzindo os outros escravos!” (Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites do século XIX, Célia Marinho de Azevedo). Na verdade, em nenhum momento do sistema escravista, no Brasil ou em qualquer parte da América, os negros deixaram de lutar, sempre movidos por sentimentos de liberdade.

“A escravidão, compreendida como sistema gerador e mantenedor de desigualdades, estaria constituída não apenas de uma base material, social e política, mas também de uma dimensão imaginária de um ‘espírito’ que ela corresponderia” (A construção social da cor, José D´Assunção Barros). Ou seja, em que pese a insubordinação negra ter sido uma constante em todo o período escravista, a tarefa de pôr fim ao escravismo não era tão simples, uma vez que as bases e as construções sociais que sustentavam o modelo escravocrata estavam entranhadas na camada mais profunda da psique coletiva do tecido social brasileiro.

Com o passar dos séculos e a permanência da escravidão, a resistência negra foi tornando-se cada vez maior. Nas décadas que antecederam a abolição, a população negra dava sinais claros de luta por uma libertação coletiva e de construção efetiva e decisiva de uma consciência negra. Nos últimos anos antes da assinatura da Lei Áurea, os escravos empreendiam revoltas de maior relevo, e já contavam com um forte apoio popular, além da propaganda abolicionista totalmente favorável à sua causa.

“O fim da escravidão tornou-se um fato através do movimento do ‘não quero’ dos escravos, com centenas deles simplesmente se retirando das fazendas ao final de 1887 e início de 1888” (Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada – século XIX, Célia Marinho de Azevedo). Em 1888, pouco antes da abolição, os escravos já não mais fugiam, “mas simplesmente se retiravam das fazendas, enquanto os fazendeiros viam-nos partir, impotentes, ou então, na falta de mão-de-obra que os substituíssem na próxima colheita, faziam-lhes sucessivas ofertas, até reconhecer seu direito ao salário em troca de trabalho” (Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites do século XIX, Célia Marinho de Azevedo). Sobre esse “fenômeno social”, conclui-se que sempre funcionou assim o processo político e hoje não é diferente, ou seja: não são os “políticos profissionais” que dão direitos, mas o povo que arranca-os à força, (des)organizando-se e desobedecendo socialmente, até fazer tanta pressão que apenas cabe ao sistema político reconhecer o que já existe na prática.

O regime escravista começou a ruir devido às suas próprias contradições e à sua “irracionalidade” econômica. Em 13 de maio de 1888, os políticos dos três partidos – Liberal, Conservador e Republicano – convergiram em um consenso quase absoluto e votaram a Lei da Abolição, depois assinada pela Princesa Isabel. Estava decretado o fim da escravidão no Brasil!

Entretanto, de lá para cá, nenhuma mudança radical foi percebida. No início pós-escravidão, os negros libertos continuaram excluídos do processo social do país, uma vez que eram preteridos pelo mercado enquanto força de trabalho, que dava preferência aos imigrantes. Os escravos e descendentes saíram espoliados da escravidão, despreparados para o trabalho livre, “incapazes de se adequar aos novos padrões contratuais e esquemas racionalizadores e modernizantes da grande produção agrícola e industrial, tornando-se doravante marginais por força da lógica inevitável do progresso capitalista” (Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites do século XIX, Célia Marinho de Azevedo). Já que não era mais possível segregar através da escravidão, tinha início o fenômeno de marginalização e exclusão social do negro livre, processo que perdura até os dias de hoje.

*Esse texto faz parte da série Consciência Negra: a questão racial, que foi publicada em novembro de 2014 na Revista Berro. Veja abaixo todos os outros textos da série: 

A construção social da “raça” negra

Ciência a serviço da escravidão

Desconstruindo o mito do paraíso racial brasileiro

Abolicionistas: lobos em pele de cordeiro

O “black power” sai às ruas

Por que o racismo ainda persiste?

Cotas raciais: combatendo a desigualdade de cor


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