Até que provem o contrário



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(Ilustração: Lara Albuquerque)

Hugo estava sentado no pátio e acompanhava o movimento com pesar. Pensava em fumar um cigarro, em beber uma cerveja ou até mesmo comer uma coxinha de frango, mas estava preso e nem mesmo fumava. O sol desbotado sobre os muros do presídio, as nuvens que vinham chegando e o ar úmido deixavam o ambiente sombrio. Uma fina camada de tensão pairava sobre o lugar.

Um vento gelado arrastava a poeira do chão e invadiu a calças bege de Hugo. Sentiu frio. Lembrou-se de quando era menino e brincava pelos terrenos próximos de casa, do seu cachorro Teco, da pipa alta no céu, da criançada na rua e do campinho de futebol. O campinho de futebol. Suas últimas recordações não eram boas em relação a ele. Estremeceu. Tentou voltar o pensamento à infância. Bastariam dois dias. Só mais quarenta e oito horas e estaria fora dali.

Caô estava no chão da cela com a cabeça próxima à privada. Seu corpo tremia e tinha espasmos. Com os olhos vidrados na entrada da cela, sentia uma onda de pavor lhe percorrer. Tentava gritar, mas sua voz saía entaramelada e seu pensamento estava confuso. Suas vistas foram ficando cada vez mais pesadas, o suor lhe escorrendo todo, enjoos, o vômito lhe subindo à garganta. Sentia a vida escapar-lhe pela boca. Um espasmo mais forte jogou sua cabeça contra o chão, desmaiou.

Hugo voltava à cela pensando em dormir. Só mais duas noites. Preocupava-se com qualquer coisa que pudesse acontecer-lhe nesse período que impedisse sua soltura. Mas mantinha a mente tranquila e a ansiedade sob controle. Ao ver o amigo no chão, foi tomado por um sentimento ruim, uma sensação estranha que não soube explicar. Mas não havia tempo para pensar, verificou se havia sinal de violência, mas não encontrou nada.

— Socorro! – gritou. 

Hugo tomou o amigo em seus braços. O corpo ainda sofria espasmos, mas já não tremia.

— Socorro! Pelo amor de Deus! Ajuda aqui!

Chegaram dois carcereiros e, em silêncio, tomaram Caô nos braços e o tiraram dali. Trinta minutos depois Hugo fora chamado para conversar com o diretor.

— Como se sente?

— Como está o Caô?

— O detento Carlos Honorato?

— Sim senhor. O senhor tem notícias dele?

— Ficará bem.

Hugo identificou, por uma fração de segundo, uma centelha de crueldade no diretor. O olhar. Alguma coisa em seus olhos o traiu quando sentenciou a melhora de Caô.

— O senhor ainda tem família?

— Sim senhor. Esposa e filho. – respondeu enquanto soltava seu peso na cadeira. Alguma coisa estava fora do lugar, Hugo sabia que não estava ali por meras questões formais. A vida de Caô e qualquer um ali dentro não valia cinco minutos de conversa com o diretor. Não ali sozinhos e com a porta fechada. Seu medo era descobrir o motivo.

— Eles o esperam? – perguntou o diretor enquanto endireitava uma pilha de papéis sobre a mesa.

Hugo pensou em sua esposa. Lembrou-se do dia do casamento; a cerimônia, a festa, a noite de núpcias, a gravidez, o parto, a criança em seus braços, tão pequenina. Tinha trinta e dois anos, três perdidos ali dentro. Era alto, quase dois metros, cabelos raspados e olhos castanhos. As bochechas vermelhas e o sorriso infantil entregavam sua meninice. Passara o período recluso mantendo-se ocupado com atividade física e o trabalho na faxina. Dedicou-se a não arrumar problemas, cumprir sua pena no menor tempo possível e sair por bom comportamento.

Não respondeu.

O diretor terminara de ajeitar os papéis, pegou a caneta entre os dedos da mão direita e acertou os óculos com a esquerda. Encostou-se na cadeira, olhou bem nos olhos de Hugo e perguntou:

— Por que esfaqueou o senhor Carlos Honorato?

— Como?!

— Senhor Hugo, por que esfaqueou o senhor Carlos Honorato?

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Este conto é o terceiro da série “Berros, tragos e aspirinas”, de Arthur Yuka, que está sendo publicada em episódios semanais, às segundas-feiras.

Leia o primeiro: Barba ensopada de sangue

Leia o segundo: Sem culpa


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