Um jardim para plantar cultura



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Fachada do Centro Cultural do Bom Jardim (CCBJ)/ (Foto: Bárbara Nery)

Por Bruno Alencar, Gerlane Vieira, Levi Gonçalves e Suzana Moreira

Quem nunca ouviu falar do bairro Bom Jardim? (ou Good Garden, como também é conhecido). Você sabe por que ele tem esse nome? Segundo os moradores mais antigos, surgiu por causa de um bordel que ficava na Avenida Oscar Araripe. As mulheres que faziam os seus “trabalhos” eram tratadas pelos clientes como flores ou rosas. Aos olhos desses homens lá era um bom jardim. O bordel se foi, mas o nome continuou firme e forte. Há outra versão que conta que havia muitos sítios e matagais pela região, mas destacava-se uma fazenda com um jardim muito bonito, aproximadamente onde hoje é a Escola Estadual Caic Maria Alves Carioca. Este belo jardim de muito tempo atrás deu origem ao nome do bairro.

E quando se fala “Grande Bom Jardim”, quais são esses bairros? O Grande “Bonja”, localizado na zona oeste de Fortaleza, é formado por Siqueira, Canindezinho, Granja Lisboa, Granja Portugal e Bom Jardim, bairros em condições de vulnerabilidade social e estigmatizados pela violência. O “Bonja” contempla desafios territoriais e de contextos sociais a serem superados, passando por questões como renda, moradia, empregabilidade e pobreza.

Segundo estudos da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico (SDE) sobre a situação do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) por bairro em Fortaleza, tendo como base os dados do Censo Demográfico realizado no ano de 2010, a média do IDH dos bairros que fazem parte do Bom Jardim é de 0,168 (a escala vai de 0 a 1).

Mas o Grande Bom Jardim vai muito além desses índices.

Arte de todxs Nóis!

A arte na periferia é decisiva para o desenvolvimento da cultura e da cidadania. Grupos independentes se organizam coletivamente e promovem mobilizações através de saraus, apresentações de dança e outras manifestações, como comunicação popular e teatro, protagonizando territórios periféricos por meio da arte.

O grupo Nóis de Teatro, desde 2002, atua na periferia de Fortaleza desenvolvendo projetos culturais e sendo resistência no Grande Bom Jardim. O grupo tem um olhar político sobre a sociedade e os seus diferentes contextos, discutindo questões territoriais, ocupação de espaços públicos com a promoção de manifestações artísticas. Nos 17 anos de atuação conseguiu tornar-se referência nacional de trabalho artístico desenvolvido na periferia, carregando o viés de militância social e levando arte e cultura para esses espaços.

Na vida da atriz e produtora do grupo, Kelly Anne Saldanha, o Nóis de Teatro abriu as portas para o mundo e apresentou a ela novas possibilidades. “Em 2003 eu entrei no grupo, passei a entender o mundo de uma outra perspectiva. Tinha tudo pra não ser o que sou hoje, de não ter estudado e de ter entrado dentro de diversas outras estatísticas, realmente foi a arte que me possibilitou ser quem eu sou hoje”, declarou.

Com sede localizada na Av. José Torres, 1211, na Granja Portugal, os nove integrantes do grupo usam o espaço para realizar oficinas dedicadas à comunidade, noites culturais, apresentações e a produção e distribuição mensal do jornal “A Merdra”. Para além da sede, o grupo estende atuação a outros pontos da cidade, seja em equipamentos públicos ou ao ar livre, por meio do teatro de rua, uma das suas vertentes de atuação.

Ao falar sobre a necessidade de trabalhar arte e cultura na periferia, Kelly Anne destacou a importância de promover representatividade e de fazer da arte uma ferramenta para mudanças sociais reais: “Nesses anos trabalhando o teatro na periferia, a gente vê muito forte a questão da identificação, a gente busca atender no teatro demandas sociais, não só pra mostrar, mas também pra questionar. A gente busca fazer com que nosso espetáculos circulem pela cidade pra gente atingir todos os olhares, de quem oprime e de quem é oprimido”, desabafou a artista.

Sobre a arte construída coletivamente no GBJ, Kelly Anne ressaltou que “aqui no Bom Jardim a gente tem uma efervescência muito grande de grupos, coletivos, artistas e associações independentes que trabalham dentro da arte e da cultura. Por conta da invisibilidade existente na periferia a gente não conhece, aí a gente começou a se questionar sobre isso e começou a procurar, querer contato com essa galera. Um dos trabalhos do Nóis de Teatro hoje é pensar coletivamente com outros grupos trabalhos dentro das artes, pensando na nossa arte, que não é uma arte sozinha, não é uma arte isolada”, finaliza.

Nos passos do reggae

Em meados de 2016, surgiu o Bonja Roots, um coletivo artístico-social que trouxe a cultura reggae para o Grande Bom Jardim. A primeira iniciativa de ocupação foi na praça do Santa Cecília, berço do coletivo. Inicialmente deu-se de forma tímida.

Segundo os organizadores do coletivo, o movimento surgiu tendo como espelho os demais movimentos de bailes de reggae em centros periféricos. A partir de uma radiola improvisada, o Bonja Roots acontece, fazendo gerar um quase típico baile maranhense. Junto disto, o coletivo Bonja Roots vem linkado a uma proposta social, dialogando com a juventude frequentadora sobre a redução de danos no uso de drogas. Ou seja, distante de um viés proibicionista. Os bailes do Bonja Roots desenvolveram uma narrativa própria a partir da leitura de cartas-manifesto com o intuito de somar vivências periféricas da juventude do Grande Bom Jardim.

O apoio do CCBJ veio justamente para facilitar as atividades do coletivo na região. Estimulando, então, edições seguidas do baile no espaço cultural, disponibilizando, assim, toda estrutura de som necessária para gerar a radiola improvisada e um A2 (dançar a dois) como lazer pra juventude do GBJ.

Centro Cultural de potencialidades

A pluralidade de um espaço é constituída por acolher um público diverso, e são a arte e a cultura os responsáveis por unir em um mesmo local a efervescência de perfis socioeconômicos, raças, gêneros e idades. Nesse cenário multiplural desponta o Centro Cultural Bom Jardim (CCBJ), em funcionamento desde 2006. As atividades da instituição têm por objetivo a promoção da arte, da cultura e dos direitos humanos no território do Grande Bom Jardim (GBJ).

(Foto: Ascom CCBJ/divulgação)

A comunidade torna-se, então, o centro de atuação do CCBJ, e a própria arquitetura do espaço remete a isso. O equipamento cultural direciona nosso olhar sobre o que está escondido entre vielas e becos, reforçando o discurso uníssono e relevante de que “a gente não quer só comida, a gente comida, diversão e arte”.

A gestora de Ação Cultural, Cristiane Pires, é responsável por gerir as ações de difusão e a programação de linguagens artísticas, teatrais, musicais e outras junto à comunidade. As ações são pensadas para ir além da instituição, a fim de contemplar também o público dos territórios que compõem o Grande Bom Jardim (GBJ). Essa articulação de atividades formativas fora do equipamento é estruturada em conjunto com instituições parceiras; atualmente são 64. “Essas instituições parceiras funcionam como uma extensão do CCBJ”, afirma.

A instituição trabalha com o foco na juventude, mas não exclui os demais públicos. É um espaço de acolhimento à comunidade em geral. “O CCBJ também fortalece esse espaço de convivência, além do fortalecimento dessa rede juvenil. De possibilidades. De mostrar que existem outros caminhos também. Até mesmo pra outras visões de mundo”, pontua a gestora.

No ano de 2018 foram realizados 73.172 atendimentos à comunidade de todo o território, porém, o centro só possui maior concentração desses serviços no segundo período do ano devido à demora no repasse de recursos previstos para o equipamento cultural. Essa questão é uma reivindicação recorrente dos moradores que veem o espaço como uma potencialidade, mas que sentem o peso da demora. De maneira a se articularem para driblar o ocorrido, é realizado mensalmente uma reunião de gestão compartilhada com a comunidade. Os bairros que integram o GBJ também são de certo modo prejudicados, haja vista que as instituições parceiras recebem menos atividades de difusão e promoção cultural e artística.

Para além dessa questão, um fator desafiador são as crianças, pois havendo atividades ou não estas ocupam o espaço durante todo o ano. O centro acolhe essas crianças por entender que são os futuros alunos do espaço. As ações para os pequenos são realizadas pelo NARTE (Núcleo de Articulação Técnico Especializado) em conjunto com Ação Cultural, Biblioteca e Núcleo de Cultura e Infância. Há o uso efetivo também dos moradores residentes que utilizam o espaço para demandas de ensaio ou outras formações de grupos que dependem da infraestrutura do local.

Esse fato nos faz refletir sobre a importância da instituição para a comunidade, no que diz respeito a democratizar e facilitar  o acesso à cultura e à arte, especialmente num bairro periférico da cidade. Cerca de 80% dos usuários do serviço são de jovens do próprio território do Grande Bom Jardim, os demais 20% se distribuem em outras áreas e bairros da cidade. O fator socioeconômico é um limitador para o jovem usufruir de intervenções artísticas em outros espaços da capital. O equipamento nesse caso se configura como um ambiente que tenta facilitar esse acesso. “Aqui é mais fácil, mais próximo e até mais seguro às vezes”, afirma Cristiane. Além disso, promover ações no território do GBJ produz a faceta de ampliar este acesso.

“Também é uma forma de democratizar o acesso ir até o território”.

As histórias de vida que cruzam o centro cultural falam da carência de espaços como este. Funciona não apenas como um prédio de assistência artístico-cultural, mas também como um agente transformador de vidas. São comuns os depoimentos de sucesso de ex-alunos que trilham um caminho profissional nas artes, alguns destes retornaram à casa como professores. Essa contribuição à vida dos jovens é o resultado do trabalho.

(Foto: Ascom CCBJ/divulgação)

O alcance positivo gerado pela instituição é uma mão de via dupla e contempla também quem realiza o trabalho. Cristiane, além de gestora, também é artista, atriz e produtora e  revela que estar trabalhando no CCBJ é um reencontro identitário, pois sabe o caminho percorrido pelo jovem em busca de realização pessoal. Ela já esteve nessa condição. Na busca de espaços que a acolhessem e direcionassem sua potência no mundo das artes. “É muito significativo ter um espaço para brincar, você ter um espaço para assistir e ver outros trabalhos, ter referência de mundo, então, foi a partir daí que eu também consegui enxergar outras possibilidades, outros caminhos, até eu entender o que eu queria, e ser um ser humano melhor, mais sensível. Eu só tenho mesmo a agradecer porque, inclusive estar no centro cultural hoje, foi por conta de todo esse percurso pelas artes”, conta.

Sob a perspectiva de Cristiane, este cenário nos conduz a enxergar a potencialidade do equipamento cultural para além do campo artístico-cultural, revelando outras facetas que ocorrem nas relações construídas no dia a dia, na forma de estabelecer relações respeitosas e entender as dificuldades de cada jovem. “É um ato político estar aqui também, no CCBJ, enquanto agente cultural, fazendo esse trabalho, que eu acho que é de base, de formação, de cidadania, de direito à arte e à cultura, e à vida”, conclui.

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Esta reportagem foi produzida dentro das atividades do curso de Comunicação (120h) realizado pela Revista Berro em parceria com o Centro Cultural do Bom Jardim (CCBJ). Os autores e autoras foram estudantes do curso. 


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