Cidade-dormitório



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Por Tomaz Amorim

O termo cidade-dormitório se refere a municípios e bairros de grandes metrópoles onde a inexistência de uma esfera social autônoma exige que seus moradores saiam da cidade durante a maior parte do dia para buscar trabalho, educação e lazer em outros lugares (na maioria das vezes, a horas de distância de lá) e voltem apenas de noite e/ou nos fins de semana para suas casas. O próprio termo já designa uma diminuição brutal na ideia de cidade: de um aglomerado de habitações e instituições, mistas de espaço público e privado, em que a vida coletiva de uma sociedade se desenvolve em uma troca constante, a um aglomerado de habitações, com esporádicos comércios e reduzidos espaços públicos, ligados a uma rede de transporte que leva seus sonolentos habitantes para a vida coletiva em outro lugar. Se é verdade que a cidade é uma forma histórica de habitação ligada ao desenvolvimento econômico e sua concentração por grupos em regiões específicas, se é verdade que a forma cidade talvez seja um dos empecilhos principais para se pensar uma organização coletiva mais justa e ecológica, também é verdade que ela possibilitou uma troca entre pessoas e culturas em uma escala até então inédita, com resultados tão fantásticos e contraditórios quanto a produção cultural dos grandes impérios (Romano, Inca, Mali, etc) e os horizontes cobertos de barracões nas favelas em plena expansão do terceiro mundo no terceiro milênio. A cidade-dormitório é a redução destas possibilidades à mera habitação privada: cidade que não é aldeia, nem roda, nem ágora, mas apenas quarto de repouso do trabalhador. Ela poderia ser chamada também de cidade adormecida, aquela que dorme durante as noites quando seus cansados habitantes voltam das cidades vizinhas, aquela que dorme durante o dia quando é esvaziada pela quase ausência de seus habitantes.

O fluxo constante de pessoas para fora da cidade, seja para atividades de trabalho e estudo ou de lazer, faz com que não haja uma cena comercial ou cultural na própria cidade. Assim, seus trabalhadores e estudantes se relacionam com pessoas de outras cidades em outras cidades e quase nunca com pessoas da cidade-dormitório, nela. (Para os que ficam, a vida pública é reduzida à vida de bairro, se é que o bairro não tenha sido ainda transformado em condomínio ou em favela). O efeito produzido por este deslocamento é uma alienação tanto do espaço, quanto dos seus co-cidadãos. De forma compreensível, o sujeito que se dirige à metrópole ou ao centro, imagina que deixa para trás os outros cidadãos. Do esquecimento de que a maioria dos outros habitantes também sai, surge uma caraterística distintiva da personalidade do cidadão da cidade-dormitório: um tipo de arrogância contra seus patrícios. Se esquecendo que, por definição, quase todos saem, este cidadão adormecido – com a percepção alienada para seus arredores, ligada apenas no fora, no longe –  imagina que é o único que viu o mundo em pleno funcionamento, as possibilidades da metrópole, o mundo acelerado do trabalho e da cultura e sua troca incessante. No fim, uma cidade de pessoas que coletivamente se acham individualmente mais cosmopolitas e menos provincianas do que seus pares. Uma população, portanto, irônica: co-isolada, co-condescendente, co-arrogante. O efeito político previsível do transplante da vida pública local para outros lugares diversos é a prevalência da política privada, familiar, baseada em velhas oligarquias e seus parceiros de “negócios” sustentados pela frágil máquina pública. Como debater política com meus conterrâneos se frequentamos praças de cidades diferentes?

A máquina colonial, em pleno funcionamento, opera um tipo específico de tráfico humano: o de potencial. O Brasil, por exemplo, exporta brasileiros talentosos para países do primeiro mundo. Lá, imagina-se, eles terão maior possibilidade de desenvolverem seus trabalhos. O país estrangeiro ganha, o brasileiro ganha – o Brasil perde. Esta fuga de potencial também caracteriza a cidade-dormitório. Sem espaço para desenvolver suas habilidades e o estilo de vida que mais lhe agrada, geração após geração abandona a cidade em busca de lugares que lhe convenham mais. O movimento se retro-alimenta, cada geração que abandona o lugar ajuda a manter o vácuo que expelirá também a geração futura. O caráter de cidade-dormitório permanece, assim, inalterado. Uma única geração que ficasse e ajudasse a construir na cidade uma manifestação específica, local, coletiva, a partir das demandas das pessoas que habitam ali e da experiência adquirida fora, em outros centros, poderia interromper este ciclo. Tornar cada periferia e cada cidade-dormitório em um centro vivo de si mesmo, em diálogo permanente com os outros, seria a tarefa desta geração. Não um retorno conservadorista, bairrista, mas uma abertura verdadeira, que só pode haver a partir de si, ao mesmo tempo, cosmopolita e local. Este seria um tipo de sonho para acordar as cidades adormecidas.

Tomaz Amorim é poeta, faz doutorado em literatura e pensa misturadamente sobre três coisas: arte, amor e justiça social; e é autor do blog 3 parágrafos de crítica.


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