Suçuarana, entre veredas e trincheiras



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Manhã estranha, mais uma vez sentia que o tempo não era bom. Além do seu preparo, sua sensitividade sempre tinha contribuído pra sua preservação e de quem mais estivesse junto. O que sentia naquela manhã havia de ser levado em consideração.

Foi uma travessia difícil e um confronto sobre-humano, que exigia disposição e sapiência típicas de quem sobrevivia no sertão, principalmente de quem levava a vida daquele jeito, correndo de volante, enfurnada em veredas, se embrenhando nos matos. Pra sobreviver a uma batalha daquelas tinha que ser ela ou está com essa força da natureza que até hoje faz o vento soprar de respeito e admiração.

A finda da saga se deu na Pacheco, só que foi na Lagoa da Serra que tudo se alterou. Maciço cerco de volantes. Dos sete do bando três correram, mas quem era pra ter ficado ficou e enfrentou como tinha que ser.

O cerco se fechou rápido e logo os lados se entrincheiraram. Vendo o cônjuge mal posicionado e as balas passando ela gritou sem parar de apertar o gatilho da pistola:

– Rapaz, saia daí. Tô falando pra você, saia daí.

Enquanto atirava com parabellum, viu os dois destemidos companheiros eliminados ao chão e Corisco – o responsável por aquilo tudo, que a sequestrou, a violentou e que acabou com a paz de seus familiares – trocar o pente do fuzil e ser inutilizado à bala, com uma mão atravessada e um punho dependurado por pele e tendões, clamar por seu socorro.

Num ia ficar só olhando aquilo e esgotou os três pentes de sua pistola parabellum no confronto, então a suçuarana que ela sempre foi resolveu aquilo, se apegou com o que tinha e correu pra cima dos volante enfrentando rajada de metralhadora na pedrada. Não ia abrir da luta porque estava sem bala, continuou o combate usando pedras.

Aliando seu sexto sentido mais que aguçado a um senso estrategista raro e uma coragem inexplicável ganhou espaço e pode se aproximar do cônjuge, que atordoado pelo alvejo sofrido seria fatalmente abatido se não fosse pela intervenção de quem tinha feito tanto mal. Tomou pra si seu fuzil e tornou a ir pra cima daquela força militar movida por vingança e pelo interesse no espólio dos cabras derrubados.

– Eu não disse? Eu falei pra você sair daqui?

Afastando aquela praga de soldado, todos com metralhadoras, pôs valentemente Corisco no ombro e fugiu pelas veredas que apareceram.

Muita coisa estava por acontecer até sua captura, mas a partir dali Dadá se tornou a maior e derradeira liderança do que chamam até hoje de cangaço.

As persigas jamais apaziguaram, queixosos sob o coito do estado brasileiro, alegando vingança e reinstituição de bens tomaram tudo que podiam dela e de seus familiares. Sua força foi outra coisa que nunca acabou, a estilista e costureira mais requisitada dos bandos que teve contato sustentou a família trabalhando como costureira, na periferia de Salvador. Como as demais mulheres que viveram entre veredas e trincheiras, tendo as crianças no meio do mato, sem as menores condições de criá-las, Dona Sérgia Ribeiro da Silva, mulher negra e pobre de país subdesenvolvido criou seus dezesseis netos trabalhando com costura.

Como passou a ter uma relação de tolerância com José Rufino, oficial chefe da volante responsável pela morte de Corisco e de sua prisão na Fazenda Pacheco, que impediu que sua tropa estraçalhasse a Suçuarana do Sertão ali mesmo na Pacheco e que perto da morte solicitou uma visita sua para pedir perdão por toda persiga empreendida, Dadá passou a ter certo respeito até de outros militares. Antes eles só tinham pavor mesmo.

Convidada a uma solenidade em um quartel na Bahia, logo após demonstrar que ainda tinha melhor tiro do que qualquer um dali se aproximou dela um militar reformado, mancando de uma perna, afirmando:

– Você é a Dadá, e eu sou um homem que você deixou aleijado em confronto.

Ela de pronto indagou o senhor:

– O senhor tem certeza que quem atirou no senhor fui eu mesma? Sabe o que é? Eu não me lembro de ter atirado em perna de ninguém não. Se fosse eu quem tivesse atirado no senhor, o senhor certamente não estaria falando aqui não.

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Augusto Azevedo é estudioso da fenomenologia referente ao que é conhecido vulgarmente como pobres de direita


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