Ceará Profundo*



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(Fotos: Francisco Sousa)

Por Gilmar de Carvalho

Os textos do mestre Gilmar de Carvalho, professor da Universidade Federal do Ceará, autor e organizador de mais de trinta livros e pesquisador incessante da cultura popular, se imbricam com as imagens de Francisco Sousa. Eles viajam, há mais de dez anos pelo Ceará, o que já rendeu livros (“Artes da Tradição”, “Rabecas do Ceará”, “O Ceará do Ednardo”), prêmios (J. Ribeiro para “Ceará escrito à luz”, e Rodrigo Melo Franco, do IPHAN, 2014) e estórias.

 

Cumbe

Cumbe_siteHá cento e cinquenta e cinco anos (1859), quando passou pelo Cumbe, Aracati, o aquarelista Reis Carvalho, integrante da Comissão Científica de Exploração, enviada para estudar o Ceará, encontrou cataventos de carnaúba.
Eles continuam a ser feitos (Seninha, Francisco Queiroz). Recorrem aos troncos da palmeira para as estruturas e às talas e ao trançado da palha para as hélices.

Antes, os canos eram escavados nos troncos das carnaúbas. Hoje, recorrem ao PVC, mas a engenharia é a mesma. Os cataventos se inserem na paisagem, como elemento da cultura que recorre à natureza. São aerodinâmicos, poéticos e eficientes. Na foto do Francisco Sousa, eles fazem contraponto às torres das eólicas, fincadas no nosso litoral, com a promessa de energia limpa e renovável.

 

 

Viagem

Viagem_siteNatural do Ipu, dona Edite Nogueira (1934/2005) era devota do Padre Cícero. Fez uma promessa e alcançou uma graça com este santo do povo. Teria de ir ao Juazeiro do Norte e adquirir uma imagem do santo, bem grande, para o Hotel São Francisco, da qual era dona, na cidade da Bica, no sopé da Ibiapaba.

Viajou para o Cariri, comprou a escultura, mas teve um problema na hora da viagem: o santo teria de vir no compartimento de cargas do ônibus. Ela temia que a imagem não resistisse aos solavancos e chegasse quebrada ao Ipu.

Queria que o santo viesse dentro do ônibus. Impossível. Podia machucar alguém. Foi quando teve a ideia de comprar outra passagem. Padre Cícero dividiu a poltrona com dona Edite. Chegou inteiro ao Ipu, para mostrar o poder da devoção ao Padim.

 

 

Arado

Arado_siteEra um dia chuvoso de janeiro de 2010. Ainda não se instalara o pessimismo que nos leva a tantos anos de estiagens. Na entrada para Abaiara, perto da estrada que vai de Milagres a Juazeiro do Norte, um homem manejava um arado.

Não é prática muito comum no restante do Ceará, com solo esturricado, com muitas pedras e aridez. O Cariri é este oásis dos canaviais, das palmeiras e da Chapada do Araripe, com suas incontáveis nascentes d’água.

O arado de Abaiara era manual. Um homem e um animal se ajudavam e se complementavam. A terra estava sendo revolvida.

Não era comum para nossos olhos tão urbanos. Paramos para fazer a foto. Não quis tomar tempo do agricultor. Ele estava fazendo o trabalho dele.

 

São Gonçalo

São Gonçalo_siteA comunidade do Poço da Onça, em Miraíma, se reúne para a dança de São Gonçalo. O tirador é mestre Manoel Torrado, também vaqueiro, aboiador, líder de um clã que mantém as tradições e se recusa a sair daquela terra tão querida quanto árida.

A dança de São Gonçalo é penitência, não é festa. O toque musical é monocórdio. Os passos se repetem, como uma coreografia da litania. Armam um andor para o santo violeiro e jogral. Penduram frutas para representar a fertilidade do solo.

São nove a doze jornadas, de uma hora de duração, acompanhadas pela sanfona, rabeca ou viola. Dizem que o santo português de Amarante fazia as prostitutas dançarem para esquecer do sexo. Pelo tempo gasto, pela monotonia dos passos, pelo cansaço, a dança tem perdido a importância. Nada se acaba, tudo se transforma, também na cultura.

*Publicado na Revista Berro – Ano 01 – Edição 03 – Dezembro/Janeiro 2015 (aqui, versão PDF)


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