Um curta-metragem de fúria em primeira pessoa



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(Pintura: Regina Parra)

Por Rodrigo Novaes de Almeida

“Say what again! I dare you! I double dare you, motherfucker!”

[Diga isso de novo! Eu te desafio! Eu te duplo desafio, seu filho da puta!]

(Pulp Fiction, de Quentin Tarantino, EUA, 1994)

 

Capítulo 1 — A blitzkrieg

Eu era uma criança que desejava crescer logo, odiava não ser levado a sério pelos adultos. Eu enxergava o desdém nos seus olhos. Tinha vontade de matar todos eles. O sentimento mudou um pouco aos doze anos, quando ganhei de dia da criança minha primeira arma de fogo. A pistola era maior do que o meu antebraço. Não sei o motivo de lembrar disso agora. Estou escondido nesse quarto, faz um calor filho da puta, o ar abafado, escuto os caras lá fora me caçando. Roubei um táxi, o desgraçado do taxista tentou pegar alguma coisa debaixo do banco, dei uma coronhada na cabeça dele e arranquei ele do carro. Gritava “meu tresoitão! meu tresoitão!” Enfiei a mão debaixo do banco e o berro estava lá. Otário. Perdeu, alemão. Só que duzentos metros à frente a rua estava interditada por três viaturas. Larguei o carro na pista e corri. Não conheço a região. Nem sei o nome do bairro. Lugar fodido de gente fodida. Ruas praticamente desertas. Cruzei com quatro desgraçados, queriam dinheiro. Dei um tiro na cabeça de cada um. Pá, pá, pá, pá. Peguei a grana deles, umas notas de duzentos vermelhas que nunca vi. Depois entrei numa caçamba de caminhão. Ele parou nalgum lugar, desci, entrei num prédio, atravessei um pátio, espécie de jardim interno, saí noutra rua deserta, foi quando peguei o táxi, quero dizer, roubei. Agora me acharam, quebraram os vidros das janelas, a fumaça é pra sufocar e meus olhos ardem pra caralho. Não enxergo mais porra nenhuma. Liguei um foda-se e estou dando tiro no erro pra ver se levo alguns comigo. Perdi pra blitzkrieg desses filhos da puta de farda. Já era.

Capítulo 2 — A goteira

Acordei de madrugada com o barulho de goteira no banheiro. O ralo do apartamento de cima entupiu de novo. O merdinha do síndico não faz porra nenhuma, o zelador é um filho da puta que finge trabalhar, está sempre na portaria conversando com a moça da limpeza. Os dois devem foder escondidos na escada do prédio. Perdi o sono. Peguei a garrafa de Red Label, tomei um trago e fui limpar a Beretta. Removi o carregador e coloquei ele sobre a mesa de jantar. Esvaziei a câmara e puxei o ferrolho pra trás. A goteira continuava lá no banheiro. Caralho. Liguei o laptop e deixei tocando umas músicas do Leonard Cohen no Youtube. Acionei pra baixo as travas laterais da arma, depois separei o ferrolho da armação, pressionei pra frente a mola e a guia de mola e retirei o cano. Aquela tarefa e a música me acalmaram um pouco. Não tive pressa de terminar a limpeza. Por fim, a arma montada novamente, usei uma flanela pra remover o excesso de óleo. Cuido bem dela. Coloquei mais uma dose de uísque, peguei o computador e fui pro sofá. Abri outra janela do navegador da internet. Xvídeos. Nada de novinha ou velha demais. Bati pra uma chupada atrás de uma árvore em um parque. Banal. Era um vídeo tosco feito com celular. Coloquei o laptop de lado e liguei a tevê. O barulho da goteira me incomodava e me deixava mais puto com os merdas do condomínio. Pensei no cara que apaguei semana passada. Era só um rosto. É só um rosto sempre. Não quero saber nem o nome do sujeito, se tem família, se é bicha, motivos de encomendar sua morte nem pensar. Foda-se. Recebo os vinte mil e passar bem. Só um taxista desgraçado que apaguei na raiva por causa de três pratas. Eu não estava num bom dia. Agora espero clarear pra tocar lá no apartamento do síndico.

Capítulo 3 — O tresoitão

Era feriado de Natal e eu viajava com mulher e filha pequena. Foram seis horas suando frio dentro do ônibus, nervoso pra caralho. Ainda por cima, a patroa tinha que comentar antes de embarcarmos, ao ver um inspetor de polícia, que passou por revista uma vez naquela mesma rodaviária, que se zangou por terem aberto sua mala e visto suas calcinhas, “algumas já bastante velhas” — ralhou ela —, “o que encontrariam ali?”, “armas, drogas?”, “nem bebo, um saco, viu!” E assim fiquei nervoso, nervoso pra caralho, me esforçando pra que ela não percebesse, e comecei a andar prum lado e pro outro, vendo se algum ônibus estava prestes a ser revistado por algum inspetor de polícia. Tenho carro, é um táxi, e não pego estrada com ele. Aproveitei pra deixar na revisão. Melhor assim, pensei. Então embrulhei como se fosse pra presente o livro falso que servia de cofre com o tresoitão do meu pai dentro, e guardei tudo numa mala com muitos presentes. Desejava aquele bicho preto fosco desde garoto. Aos doze ou treze anos descobri por acaso uma chave que abria a gaveta da escrivaninha do velho. A arma ficava lá e a chave passou a ser um segredinho meu naqueles nem tão inocentes anos. E agora que ele tinha morrido o tresoitão era finalmente meu. Mamãe, concentrada em seu luto, nem soube de nada e, se soubesse — ou sentisse falta daquele revólver que nunca gostou que o meu pai mantivesse em sua casa —, certamente sentiria alívio por eu ter tirado ele de lá. Era um tresoitão antigo mas funcionava bem. Certa vez, sozinho em casa, eu tinha uns dezessete anos, coloquei música alta, televisão berrando, fechei janelas e pow!, um cheiro de pólvora do caralho no quarto. Fiquei de pau duro e, resultado, bati uma punheta. E este foi um Natal de merda, triste, o pai morto há duas semanas, a mãe sob efeito de medicação forte, os sobrinhos melequentos, filhos do meu irmão, tocando o terror debaixo da mesa da ceia, um calor filho da puta e a comida estragando em cima da mesa, a tia gorda reclamando do governo, um primo o tempo inteiro tirando naco de comida de entre os dentes com o dedo, enfim, um Natal de merda e eu feliz pra cacete porque aquele tresoitão antigo do meu pai agora era meu. No final das contas, correu tudo uma maravilha, sem revistas na rodoviária e nenhum imprevisto na estrada. Guardei o cofre camuflado de livro na parte de cima do meu armário, sem a arma dentro. Ela está embaixo do meu assento no táxi. Por via das dúvidas, sabe?

Rodrigo Novaes de Almeida nasceu no Rio de Janeiro, em 1976, e vive em São Paulo. É escritor e jornalista. Autor de Rapsódias — Primeiras histórias breves (contos, 2009), A saga de Lucifere (novela, 2009), Carnebruta (contos, 2012) e A construção da paisagem (crônicas, 2012).


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