Qualquer motivo é justo para esquecer os problemas



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Toda intenção é válida desde que aja satisfação e assim se segue.

Tinha acabado de começar uma tradicional mesa redonda futebolística exibida por um canal de tv a cabo quando Rogivam, em um ato raro de desvio de atenção daquele programa, mas na habitual conservação dos seus ciúmes percebeu que sua esposa atendeu o celular:

Quem será? Rogivam pensou.

– Quem é? Rogivam perguntou.

Sem responder ao marido Gracinha não fazia coisa alguma, além de franzir a testa e estufar os beiços.

– O problema é o horário, eu sei que você quase nunca vem aqui em casa, mas sempre que vem traz gente e isso é chato, isso é muito chato.

Depois de alguns segundos e muitas caretas:

– Certo, certo, pode vir com eles, vai todo mundo dormir no chão da área, só tem uma rede, que é a sua… está bem, pode vir com eles.

Quem poderia ser? Rogivam sabia.

Era Leonel, irmão mais novo de Gracinha, na verdade nem era o mais novo de todos os seus irmãos, era seu preferido, o que tinha nascido logo depois dela, ele vinha dormir em sua casa com uns amigos, ela tinha liberado a vinda sem ao menos consultar seu marido, que é claro iria chiar.

As reclamações eram certas e a desculpa de “quase nunca ver o irmão” já não tinha mais sentido algum, pois Leonel abusado estava mal acostumado em parecer por lá, puxando sua corriola, trazendo uma galera, sempre chegando fora de hora; era o típico cunhado que não se quer ver nem por retrato, cheio de querer, muito paparicado por Gracinha que aceitava na boa suas molecagens e presepadas.

Na opinião de Rogivam, enquanto sua esposa continuasse tratando Leonel como Leonelzinho ele nunca tomaria jeito. Uma das coisas que mais o irritava era essa conversa de “quase nunca vem aqui em casa”, na verdade para ele as visitas do cunhado já tinham estrapolado a cota do bom senso e do semancol. Mesmo sacando o que se sucedia ele permitiu que Gracinha falasse para começar a bodejar:

– Puta que pariu! exclamou ele. Deixa esse desocupado vir pra cá e ainda trazer a reca. Eu não tenho nenhum pingo de moral nessa casa, eu não tenho nem um pingo de moral na porra desse carai.
– Olha Rogivam, essa casa também é minha e eu sei que você tá fazendo essa confusão todinha porque não quer que ninguém faça zoada…
– Eu quero é paz e sossego de espírito, falou Rogivam, interrompendo a esposa.
– Deixa eu falar. Você não quer é que ninguém te atrapalhe enquanto você assiste esse monte de macho falar sobre futebol; assistir uma partida de futebol até que dá pra aturar, só que isso aí já é baitolagem, desabafou Gracinha.
– Baitolagem? E o teu irmão que é um tremendo afeminado?

E a confusão seguiu até os dois escutarem batidas no portão.

– Tá vendo Gracinha? O safado ligou já bem perto daqui, deve tá daquele jeito. Isso já tá virando esculhambação, foi o que disse Rogivam para em seguida se trancar dentro do quarto e colocar o volume do aparelho televisor no máximo.

Gracinha foi até a porta e pôs Leonel e seus amigos para dentro. Eles vinham de um conhecido bar daquela região, local de aglomeração de muitos jovens e na verdade nem queriam local para dormir, aqueles rapazes provindos de um não muito próximo município que compunha a região metropolitana da capital queriam era um ponto de apoio para guardarem as mochilas que não continham absolutamente nada de valor, reaplicarem o gel do cabelo e retocarem o lápis de olho diante de um espelho distante duma pia vomitada, porém a abertura que Leonel, que não era pouco espaçoso, tinha com a irmã era tanta que mesmo na frente dos amigos questionou:

– O que é que tá acontecendo? Por que esse louco tá com a tv dessa altura?

Aí Gracinha teve que comer partido do marido, não estava doida de gerar uma confusão maior que terminaria em um pé na bunda que receberia do seu cônjuge, que apesar de grosseiro até que era bonzinho, perto dos parceiros da maioria das amigas e conhecidas.

– Leonel, saia daqui de casa, agora, disse Gracinha, muito direta.
– Mas Gracinha, você deixou a gente vir…

Leonel era mimadão e tudo mais, só que não tinha muito que fazer naquela vergonhosa situação.

– Vamos galerinha.

Já do lado de fora um dos amigos de Leonel aproveitou para ironizar:

– Ninguém faz questão de ficar nessa casa véia não. E foram.

A idéia do ponto de apoio não se resumia a comodidade, de forma alguma. Era fato que o local em que o irmão de Gracinha e seus amigos moravam se localizava bem longe daquele lugar que estavam, era pouco inteligente sair em direção àquelas bandas numa hora daquelas, pois ônibus não mais havia para lá, assim como qualquer outro meio de transporte coletivo, sem falar que ficar na rua, de boresta, era pedir pra vacilar. Agora, não tendo mais onde guardar as mochilas e esticar as costas o plano era entrar em um supermercado, comprar uma bebida e ficar numa praça, até que amanhecesse.

Enquanto Gracinha arrependida por ter botado o irmão para fora de casa brigava com o marido por ter incentivado a discórdia e esse acusava o cunhado de ser a própria discórdia, Leonel e seus amigos entravam no Abilhão, maior e único supermercado de funcionamento vinte e quatro horas das imediações, na pilha de valorizar aquela visita a partir de pequenas apropriações indébitas ; como eram cinco decidiram se dividir da seguinte forma: uma dupla efetuaria a ação propriamente dita, a outra dupla ficou responsável de chamar atenção da segurança, falando alto, manipulando o máximo de objetos que conseguissem, dando bandeira de tudo que era jeito, essa mesma dupla também estaria incumbida de comprar a bebida e o quinto elemento do grupo, também dentro do supermercado ficou com a delicada missão de caso desse alguma zica com os colegas simular um ataque epilético, caindo ao chão, abrindo fuga aos amigos e se virando com a caixa de gardenais que tinha roubado da prima.

Nem foi assim, nada disso deu certo.

A primeira dupla até que tentou fazer sua parte roubando umas barras de chocolate e uma lata de leite condensado, mas a outra empolgada com o traiçoeiro cenário destruiu o esquema quando um dos meninos tentou esconder um litro de rum em sua calça, derrubando a garrafa ao chão, obtendo uma atenção não prevista.

Um plano medíocre só pode resultar em fracasso e não tardou muito para a equipe de segurança, acostumada a lidar com profissionais, acabasse com os preparativos da festa dos meninos. Quando os seguranças, também divididos fecharam o tempo para as duplas o quinto elemento meteu o pé na carreira, levando com ele o pavor e a caixa de gardênias.

– Esse tem motor na bunda, ninguém alcança. Falou um dos seguranças.

A equipe de plantão naquela noite poderia resolver a situação conforme eram obrigados: jogar os jovens na câmera frigorífica para em seguida aplicar um belo mororó, o que era conhecido como “quente frio”; ou na base dos procedimentos legais que a administração não considerava nada legal: chamar a polícia e coisa e tal. O supermercado poderia não ser deles, mas aqueles trabalhadores seriam capazes de cometer verdadeiros crimes para garantir o vínculo com a firma. Eram tempos difíceis, ninguém do turno demonstrava interesse de aliviar a dos rapazes, o que dava a entender que judiar com aqueles moleques diminuiria a dor de ser uma dispensável peça da lógica do lucro. É, pra não deixar barato a equipe decidiu chamar o Rapa-coco e antes de falar sobre o Rapa-coco é importante lembrar que o choro dos quatro estimulou a decisão da equipe.

Rapa-coco era um vigilante noturno que trabalhava nas ruas montado em sua barra forte, com seu apito, um trinta e dois canela seca dentro das calças e é claro um rapa-cocos, que usava para espancar pessoas sob suspeita ou pegas em flagrante que tivessem a infelicidade de cruzar o seu caminho pelas madrugadas. Pois é, Rapa-coco chegou acompanhado de mais dois colegas de profissão, que assim como ele eram muito gratos aos funcionários daquele supermercado por juntarem as sobras que serviam como refeição.

Leonel e seus amigos foram levados para a entrada de uma oficina escura. Os rapazes tiveram suas camisetas retiradas e urinadas, depois foram obrigados a dar nós no centro das camisetas que logo criavam volume e rigidez devido ao peso da urina e do próprio nó; encostados de joelhos no portão da oficina começaram a ser açoitados pelos vigilantes que usavam suas camisetas, além de aplicarem chutes e mãozadas . Do lado de dentro da oficina os cachorros latiam e tentavam agredir os meninos pelas frestas do portão de ferro. O latido dos cachorros aumentou e as pancadas cessaram quando um carro parou. Era a polícia.

– O que foi isso aí? Perguntou um policial.
– Os bonitinho vieram lá da puta que pariu pra roubar aqui. Respondeu Rapa-coco.

Um outro policial se zangou ao parecer dado por Rapa-coco e falou:

– Esses tabacudos só vão na porrada. Ei Rapa-coco, tá com teu brinquedinho?
– Não tem quem me faça sair de casa sem ele, disse Rapa-coco, com a boca cheia de dentes.
– Bora ver, os quatro se virando pra cá e estendendo a mão. Falou o policial com o rapa-coco na mão.

O policial deferiu dez golpes com o objeto em cada mão dos meninos. Ele batia com a parte externa da lamina do rapa-coco no que conhecemos como palma da mão; quando deu seu último golpe se virou para os colegas que riam bastante e perguntou:

– Vocês não vão não, dar as de vocês? Quando Rapa-coco interrompeu:
– Não, tá bom, vão anarquizar meu negócim e ainda depois quem fica com a fama é eu. Rapa-coco botava moral nos meganhas.

Na casa de Gracinha e Rogivam era pura aflição. Gracinha não estava mais arrependida de ter botado o irmão pra correr, estava mesmo era noiada, preocupada com o irmão, sentindo um negócio ruim, que ela denominava de pressentimento mal, já tinha obrigado o marido a dar quatro voltas de bicicleta no bairro atrás de notícia de Leonel quando escutou uma gritaria na entrada de casa:

– Abre aqui, abre aqui vá lá

Leonel e seus amigos, eram eles. Sujos, fedorentos, precisando de cuidados médicos…
Gracinha tentou fazer algumas perguntas e foi imediatamente contida por Rogivam que assim como a esposa não estava entendendo nada do que tinha acontecido, mas nem precisava, foi até o quartinho dos bregueços e saiu de lá com uma mangueira se dirigindo à torneira da entrada da área. Os rapazes foram se aproximando de Rogivam entendendo sua intenção.

Enquanto eles se banhavam, Gracinha abraçava as costas de Rogivam, consternada com a cena que se deparava, se segurando para não chorar.

E o carinha da caixa de gardenais até hoje não deu notícias.

Augusto Azevedo é  tesoureiro do sindicato dos black blocs e perito em desarmamento de balengotengo


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