Cotas raciais: combatendo a desigualdade de cor



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A desigualdade racial no Brasil é abissal. Dependendo da pigmentação da pele, um brasileiro pode ter oportunidades bem diversas e contrastantes. O racismo, arraigado no seio da sociedade nacional desde a formação do povo brasileiro, exclui e marginaliza uma parcela significativa da população do país. É sob esse contexto que as políticas afirmativas despontam como uma necessidade premente.

Em uma sociedade como a brasileira, onde as faces do racismo se mostram das mais variadas formas e estão imiscuídas dentro das relações sociais, as cotas raciais se apresentam como um paliativo necessário. “Apesar das críticas contra a ação afirmativa, a experiência das últimas quatro décadas nos países que a implementaram não deixam dúvidas sobre as mudanças alcançadas” (Políticas de ação afirmativa em benefício da população negra no Brasil: um ponto de vista em defesa das cotas, Kabengele Munanga). A partir dos prévios conhecimentos acerca das políticas de afirmação em outros países, poderíamos criar nosso próprio sistema de cotas, fazendo um bom proveito das experiências acumuladas. O que a questão exige é o direito à escuta de grupos sociais marginalizados historicamente que querem agora fazer parte das decisões políticas, não apenas mais como meros espectadores. Esses atores sociais não estão querendo dividir racialmente a sociedade, mas se recusam a esquecer as marcas indeléveis da exclusão realizada há séculos.

Assim, as políticas de afirmação visam a oferecer aos grupos marginalizados um tratamento diferenciado para compensar as menores oportunidades devido à sua condição de discriminados. As cotas raciais funcionam, portanto, como uma desigualdade que se propõe a anular outra desigualdade.  Não intervir na forma como a realidade está posta, através das políticas afirmativas, é favorecer injustamente grupos sociais que historicamente sempre tiveram privilégios e garantias consolidadas.

“Se quisermos contrapormo-nos ao racismo subjacente e invisível das nossas instituições, precisamos, em primeiro lugar, garantir a criação de oportunidades para os negros brasileiros, sem o que não lhes será possível vencer no cenário competitivo da sociedade moderna de livres e iguais perante a lei” (Cota racial e Estado: Abolição do racismo ou direitos de raça?, Célia Marinho de Azevedo).

Ou seja, no universo das possibilidades de acesso, já há uma desigualdade que deve ser considerada. “Daí a justificativa de uma política preferencial no sentido de uma discriminação positiva. O modernismo político acostumou a tratar igualmente seres e grupos diferentes ou desiguais, em vez de tratá-los especificamente como desiguais” (Políticas de ação afirmativa em benefício da população negra no Brasil: um ponto de vista em defesa das cotas, Kabengele Munanga). Desse modo, as cotas para certos grupos sociais são nada mais do que políticas reparativas, que se propõem a tentar equilibrar o quadro das garantias e vantagens sociais.

Os críticos e refratários às cotas raciais, na maioria das vezes, lançam mão de argumentos que não visam a alterar o estado das coisas e se negam a admitir o longo processo de exclusão do negro na sociedade brasileira. Outra argumentação contrária é a de que as cotas sociais seriam mais eficazes, pois atenderiam também aos brancos pobres. Não discordamos desse segundo argumento, mas uma política não necessariamente anula a outra: as duas podem ser adotadas conjuntamente. “Não vejo como tratar, falando de políticas públicas numa cultura e sociedade racista, igualmente os negros pobres e os brancos pobres, quando uns são duplamente discriminados e outros discriminados uma única vez. A cota é apenas um instrumento e uma medida emergencial enquanto se buscam outros caminhos. Dizer simplesmente que implantar cotas é uma injustiça, sem propor outras alternativas a curto, médio e longo prazo, é uma maneira de fugir de uma questão vital para milhões de brasileiros de ascendência africana. É uma maneira de reiterar o mito da democracia racial, embora este esteja desmistificado” (Políticas de ação afirmativa em benefício da população negra no Brasil: um ponto de vista em defesa das cotas, Kabengele Munanga).

Um terceiro argumento lugar-comum dos críticos às cotas raciais é o de que estas vão estimular a discriminação contra os negros. Ora, as cotas não têm como aprofundar os preconceitos raciais, pois estes já se encontram arraigados na cultura e na psique coletiva do povo brasileiro. A função das cotas é outra – e muito bem demarcada: oportunizar condições a uma parcela da população que sempre se deparou com as portas fechadas para sua inserção e mobilidade social.

Em resumo, a implantação das cotas para negros – em todas as searas da sociedade brasileira – como um programa político de abrangência nacional funcionaria como uma política de reparação a séculos de exclusão social. Essa é uma dívida histórica que o Brasil tem com sua população negra.

Conclusões

Pensar em soluções e alternativas para exterminar a praga do racismo na sociedade brasileira é uma tarefa árdua. Muito devido ao fato de que essa visão racista do brasileiro está arraigada em sua identidade enquanto povo. A sociedade brasileira é racista hoje por uma construção social maquiavelicamente engendrada séculos atrás. Na constituição de nosso povo, teorias racistas que atestavam o negro como inferior e propenso à submissão – mas também à violência – foram incorporadas às relações e comportamentos sociais para nunca mais saírem.

Hoje, ainda que quase ninguém se autodeclare racista, esse preconceito subsiste nas camadas mais profundas do imaginário coletivo. “Considerando que esse imaginário e essas representações, em parte situados no inconsciente coletivo, possuem uma dimensão afetiva e emocional, dimensão onde brotam e são cultivadas as crenças, os estereótipos e os valores que codificam as atitudes, é preciso descobrir e inventar técnicas e linguagens capazes de superar os limites da pura razão e de tocar no imaginário e nas representações. Enfim, capazes de deixar aflorar os preconceitos escondidos na estrutura profunda do nosso psiquismo” (Superando o racismo na escola, Kabengele Munanga).

Faz-se também de extrema importância “fortalecer a formação e reatualização de uma consciência negra, em cada país que carrega na sua história um passado assinalado pelo escravismo colonial. Consciência negra é construir uma identidade negra em um mundo dentro do qual o racismo existe de modo explícito ou encoberto. É construir a identidade negra como diferença, e exigir que esta diferença seja percebida sem desigualdade. É dotar essa identidade de força política, de valor social, de pujança cultural” (A construção social da cor, José D´Assunção Barros).

É dentro dessa visão de autoafirmação da “raça” negra com uma construção sociológica – e não mais biológica – que surge também a noção de identidade negra. O conceito de identidade negra traz em seu bojo a revalorização da cultura milenar negra, dos seus costumes, das suas origens. Esse resgate histórico-cultural da negritude tem contribuído decisivamente para cavar espaços de inserção sócio-políticos antes inimagináveis – vide a Lei 10.639, de 2003, que obriga todas as escolas brasileiras, de nível fundamental e médio, a adotar em seus currículos disciplinas que contemplem a cultura e a história afro-brasileira, para além dos clichês habituais.

Em síntese, é imperativo somar à noção de identidade negra as novas linguagens e técnicas que pretendem transformar o imaginário coletivo brasileiro. Juntas, essas alternativas podem enfrentar o racismo da sociedade brasileira e promover um processo contra-hegemônico, que suplantaria as práticas de preconceito racial.

Enquanto isso não ocorre, urge que medidas paliativas sejam tomadas no sentido de igualar as oportunidades às diversas etnias brasileiras. É nesse sentido que as políticas de ação afirmativas para negros são extremamente necessárias, uma vez que o país ainda tem um longo e pedregoso caminho a percorrer para equilibrar seu imenso fosso racial.

*Esse texto faz parte da série Consciência Negra: a questão racial, que foi publicada em novembro de 2014 na Revista Berro. Veja abaixo todos os outros textos da série: 

A construção social da “raça” negra

Ciência a serviço da escravidão

Desconstruindo o mito do paraíso racial brasileiro

Abolicionistas: lobos em pele de cordeiro

O protagonismo negro no processo de abolição

O “black power” sai às ruas

Por que o racismo ainda persiste?


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