Trauma, corpo e arte em “The Small Backs of Children”, de Lidia Yuknavitch



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Por Tomaz Amorim

“I can feel my body. I can feel the heat at my chest and ribs and belly. I follow the heat story with my hand. I can make fire between my legs any time I like. I open my eyes and raise my head from the page of the Christ body. I look at it. I don’t care about this puny faith. I have died and been resurrected hundreds of times. What’s the Christ story compared to the bloodsong of one girl? How flimsy that story is. I believe in Velázquez. With our hands and art. I believe we must make the stories of ourselves. My name is Menas. This is my story”.

A dança, a performance e o canto são artes feitas quase apenas com corpo. A literatura, por mais que seja caligrafada ou digitada, ainda que cantada, parte de um corpo para participar de uma mediação infinita, por menor que seja, entre quem diz e quem ouve: a língua. Seria possível então escrever com o corpo, atravessando a mediação? Uma palavra que fosse não apenas significante puro, mas material, tátil? A pintura que se dedicou a mesma questão abriu mão de tudo o que pôde, tinta e pincel, e manteve o mínimo, tela, em contato com extremidades e fluidos do corpo. O contrário também: corpo como tela onde se pinta, se grava. O registro, resto material, destes acontecimentos carrega dos membros humanos, mãos, seios, pênis, dedos, costelas, algo mais que não apenas fluidos, saliva, sêmen, suor, sangue: marcas do esforço constante em ocupar espaço, da luta contra a resistência do ar, da gravidade, do impacto e do choque com outros corpos. Algo desta violência se marca na superfície da tela. A diferença na tela é para a pele a mesma que aquela entre o toque do dente-de-leão e o do chicote.

Não sendo literatura física (concretismo? publicidade? poesia onomatopéica?), o romance The Small Backs of Children (2015) de Lidia Yuknavitch descreve processos físicos de criação artística a partir do corpo traumatizado. O romance mostra nas diversas personagens o processo em que o corpo sofre uma violência e em que posteriormente trabalha a violência em forma de arte. O corpo é mostrado não como suporte de uma consciência, mas como objeto vivo que recebe e emite, que sofre violência e pratica arte e que sofre arte e pratica violência. “She’s a goddamn physical specimen”. O sexo, por sua vez, cumpre uma função ambígua. Ao mesmo tempo em que é o diálogo entre corpos que não podem ou não querem falar, é a origem da maior parte dos traumas que levaram ao (auto)silenciamento dos corpos. O sexo é sempre violento e tem mais relação com a manifestação de uma verdade do que com prazer. Quando é consensual, os corpos se violentam como o corpo violenta a tela. Quando não, traumatiza, emudece, transforma o corpo em objeto inanimado, traz por um ínfimo momento para o presente seu inevitável futuro: “All bodies are death bodies”.

A personagem principal, jovem vítima quase anônima de uma guerra civil invisível, aparece primeiro para as outras personagens (quase todas mulheres artistas) como imagem chocante em uma fotografia premiada internacionalmente: corpo de menina reagindo ao testemunho da aniquilação de outros corpos queridos. Antes de reaparecer para as outras personagens já como jovem artista, ela aparece para o leitor como criança criadora em pleno trauma: performer, arquiteta, pintora, que tenta recriar e renomear os corpos e lugares destruídos pela guerra. Sua comunicação se dá através destes meios. Sua companheira, enviuvada pela guerra, aceita e aprofunda o contato através do ensino de história da arte. A tradição surge não como peso limitador, mas como um tipo de língua, suporte básico para uma troca que, no entanto, nunca se concretiza completamente. A obra de arte não surge neste romance como possibilidade, danificada ou intensificada, de comunicação. Surge como possibilidade mesma de existência do corpo pós-trauma. “She is nothing but body: her legs and chest are burning, her jaw aches, her eyes swim in their little sockets”. A vagina traumatizada não sangra para expelir o óvulo, mas para produzir tinta.

Tomaz Amorim nasceu e cresceu na cidade de Poá, às margens da Grande São Paulo. É poeta, faz doutorado em literatura e pensa misturadamente sobre três coisas: arte, amor e justiça social. 


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