Vida e morte, João!



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(Fotos: Chico Célio)

E quem era inocente hoje já virou bandido
Pra poder comer um pedaço de pão todo fudido

Banditismo por pura maldade
Banditismo por necessidade
Banditismo por uma questão de classe!
Banditismo por uma questão de classe!

(Chico Science e Nação Zumbi – Banditismo Por uma Questão de Classe)

“É verdade que o capitalismo manteve como constante a extrema miséria de três quartos da humanidade, pobres demais para a dívida, numerosos demais para o confinamento: o controle não só terá que enfrentar a dissipação das fronteiras, mas também a explosão dos guetos e favelas” (Gilles Deleuze, Post-Scriptum sobre as Sociedades de Controle).

Fortaleza é um poço profundo de contrastes: quinta maior cidade do Brasil, com mais de 2,5 milhões de habitantes (e uma Região Metropolitana beirando 4 milhões de moradores), tem o maior PIB do Nordeste (R$ 42 bilhões/IBGE), mas é também a mais desigual da região, com vários bolsões de pobreza espalhados por todo o seu território. Segundo o relatório mais recente da ONU sobre aglomerados urbanos (2012), foi considerada a quinta cidade mais desigual do mundo, onde 7% da população detêm mais de um quarto (26%) de toda a riqueza do município. Em um cenário tão contrastante, a figura do “criminoso”, do “bandido social”, aquele que não se resigna às condições miseráveis que a sociedade lhe impõe, é lugar-comum em qualquer periferia.

“Se fosse pedreiro, ganhava mil reais trabalhando o dia todo no sol quente. Se for pra trabalhar de servente, pintor, carpinteiro, o nêgo num sai dali! Se quiser uma coisinha a mais tem que ir pro crime mesmo”, diz João (nome fictício), 31 anos, traficante de drogas na favela da Vila Cazumba, no bairro Cidade dos Funcionários, zona sul da capital cearense. Moreno, de estatura mediana, fala arrastada, unhas compridas, olhos amarronzados e expressivos, cheio de cicatrizes pelo corpo, conversamos com ele em seu barraco, há alguns meses. Se expressa com grandes gestos faciais. As mãos também falam bastante. Durante a prosa, alguns clientes apareceram, mas não foram atendidos. “Peraí mah, tô ocupado, tô dando uma entrevista aqui”, disse ele, com orgulho no tom de voz, enquanto fumava seu baseado bem à vontade.

Voltando à conversa, enfatizou em tom de brincadeira, se espreguiçando na cama onde conversamos (não havia cadeiras no local): “E agora tô aqui ó, ganhando minha céda, sem botar peso nem debaixo do sol quente”, comparando sua ocupação ao de um trabalhador da construção civil. “Dá não mah, pra trabalhar assim não. O sistema é esse, é cruel”, resume, mostrando, grosso modo, porque muitos da favela escolhem o caminho do crime. “Se eu fosse aquele cara que se humilha no sinal, por menos de um real, minha chance era pouca, mas se eu fosse aquele moleque de touca que engatilha e enfia o cano dentro da sua boca… (Racionais MC´s – Capítulo 4 versículo 3). Consegue, em média, dois mil reais por mês, mas “já teve mês” que tirou mais de três mil reais. Um dos rivais de João no comércio de drogas na Vila Cazumba, o Pistola (nome fictício), que já trafica por ali há mais tempo, arrecada bem mais mensalmente, confessa ele.

A casa onde João mora é alugada por 250 reais; chegou ali há pouco tempo, fugido de um atentado no qual levou seis tiros (mostra as marcas de bala pelo corpo) e passou 35 dias no hospital. Quando saiu da internação hospitalar, decidiu que não era mais hora de voltar pro Jardim Fluminense, comunidade no bairro Canindezinho, zona oeste de Fortaleza. Se instalou na Vila Cazumba. Foi o quinto atentado sofrido por João, que diz escapar por “livramento de Deus”. “O nêgo é vivedor, pivete!”, se orgulha, batendo no peito.

João tem uma história parecida com a de muitos outros Joãos, Josés, Franciscos e Antônios espalhados pelo Brasil, principalmente nas metrópoles. Aos 8 anos, o pai levou-o para um bar e ele experimentou seu primeiro trago de cachaça. O primeiro baseado veio um ano depois, aos 9. A família era muito pobre, o pai alcoólatra e a mãe catando lata de alumínio para sobreviver e alimentar os seis filhos. João, muito novo, ajudava a mãe também catando latas no Bonsucesso, bairro da zona oeste fortalezense. Os pais eram andarilhos; como não tinham casa própria, mudavam constantemente de residência: passaram pelos bairros João XXIII, Serviluz, Lagamar, Castelo Encantado, Alto Alegre, Granja Portugal, Edson Queiroz, e pelas cidades vizinhas Caucaia e Maracanaú. “A situação era braba, nós passava fome. Tinha dia que num tinha o de comer”.

Impressões Mundanas II_siteAos 12 anos, quando moravam no Serviluz, bairro da zona leste conhecido pela comunidade do Titanzinho, deixou de estudar e entendeu o que era o crime. “Fui buscar droga prum cara num canto combinado e ele me deu um qualquer”. Foi só o primeiro passo, já que esse “qualquer”, segundo ele, era muito mais do que conseguia catando latas. Durante a adolescência, foi “avião” de vários traficantes nos lugares onde viveu. Aos 20, assinou carteira como servente, “cavando buraco na tora, o dia todim, de 7 da manhã às 5 da tarde”, casou-se e foi morar no Parque Santa Rosa, “onde entrei de vez pro crime”. De lá, andarilho como os pais, mudou-se ainda para o Parque São José e o Jardim Fluminense. Por algum tempo, conciliou o trabalho de pedreiro com o crime: traficava e praticava assaltos, até o dia em que optou apenas pela atividade criminosa, que era mais lucrativa e lhe dava, sobretudo, reconhecimento social, que a pobreza lhe negava e o crime lhe trazia. Ao longo do casamento de 12 anos, teve três filhos, que hoje têm 11, 8 e 6 de idade. “Moram com a mãe em Horizonte (Região Metropolitana de Fortaleza). Depois que nós se separamo, ela foi morar com os pais dela lá e levou os pivete”. João manda um “dinheirim” pra eles todo mês, que também vão visitá-lo com frequência na Vila Cazumba. “Eles têm que estudar”, diz esperançoso, fazendo olhos de nuvens, que é quando o olhar vagueia e vai ao fantástico, ao indizível; é quando enxergamos mais longe.

A família toda sabe da sua ocupação. “Tentei esconder da minha mãe, mas teve uma hora que não teve jeito, pivete”. Nesse ínterim, abraçou o alcoolismo, como o pai, e viciou-se no crack. “Era aviciado na pedra, fumava no cachimbo e na lata, mas graças a Deus consegui sair dessa desgraça. Hoje, dou só meus tequim (na cocaína) no final de semana mesmo, vez ou outra”.

Vivendo no mundo do crime e sob suas regras, João já teve também que se valer de uma das faces mais perversas da atividade: o homicídio! Ou matava ou morria! São seis ao todo. “A honestidade do bandido é a palavra. Quem não tem palavra é pirangueiro. E pirangueiro morre logo. É o certo pelo certo, pivete. O errado tem que ser cobrado”, diz ele, friamente, sem parecer sentir remorso pelas vidas tiradas. “É uma guerra onde só sobrevive quem atira, quem enquadra a mansão, quem trafica, infelizmente o livro não resolve, o Brasil só me respeita com um revólver” (Facção Central – Isso Aqui é uma Guerra). De fato, o crime tem um movimento próprio, à margem das leis, escapando largamente às normas jurídicas estabelecidas. Há um código de conduta tácito, oral, repassado de geração em geração. Aquele que não o segue, geralmente perde a vida! A atividade do crime, aliada ao fetiche consumista, desumaniza qualquer um. “Na lei da selva, consumir é necessário, compre mais, compre mais, supere o seu adversário, seu status depende da tragédia de alguém; é isso: capitalismo selvagem!” (Racionais MC´s, Mano na porta do bar).

João carrega nas costas quatro delitos previstos no Código Penal: artigos 33 (tráfico de drogas), 121 (homicídio), 155 (roubo/furto) e 157 (assalto a mão armada). Apesar de ser apenas mais um criminoso aos olhos da Justiça e de grande parte da sociedade, ele parece saber por que está ali, naquela condição, e o que de fato move o mundo: “O dinheiro é cruel, pivete, o cara rouba, mata e destrói por causa dele. O que manda na mente do ser humano é o real, é a céda. Nós num precisava trabalhar não mah. Era pra nós poder andar de cavalo, ter água limpa, plantar, comer, ficar deitado numa rede… né assim que o Racionais (MC´s, Vida Loka – parte II) fala? Mas o homem é ambicioso, ele estragou tudo, como o Facção (Central, O Homem estragou tudo) diz”. “Menores carentes se tornam delinquentes e ninguém nada faz pelo futuro dessa gente. A saída é essa vida bandida que levam roubando, matando, morrendo, entre si se acabando. Enquanto homens de poder fingem não ver, não querem saber, fazem o que bem entender. E assim… aumenta a violência. Não somos nós os culpados dessa consequência”? (Racionais MC´s – Tempos Difíceis).

Ainda que convicto de sua escolha, João tem também consciência dos riscos próprios da atividade criminosa: “Tô brincando com a vida, meu futuro é a morte ou cadeia, pivete”. Numa de suas saídas para assaltar, em março de 2014, ao lado de um parceiro, encostaram a moto que ocupavam e bateram com o cano do revólver no vidro do carro que iriam assaltar. Foram respondidos com vários tiros partindo do veículo. Nele, vinha o tenente da Polícia Militar de Pernambuco, Wesley Sávio de Sá Alves, que passava férias em Fortaleza. O caso, ocorrido no bairro nobre Cocó, repercutiu em vários noticiários das imprensas cearense e pernambucana (leia aqui). O tenente foi liberado ao acusar legítima defesa, mesmo tendo atirado mais algumas vezes em João quando ele já estava caído no chão, agonizando. João e seu comparsa morreram ali mesmo, na calçada, antes mesmo da chegada dos primeiros socorros. Estava certo ao prever sua sina: “é morte ou cadeia, pivete”: morte! O trágico é que a morte do “bandido” tem sempre o aval da sociedade, como se sua vida não valesse nada e sua morte fosse sempre desejada.

Lembro que uma das coisas que mais me marcaram na conversa com o João foi o fato dele, mesmo com tanta violência fazendo parte de sua vida cotidiana, ainda sonhar: “Tô cansado desse mundão aí, pivete. Ainda quero viver em paz!”, disse ele, fazendo novamente olhos de nuvens. Que assim seja, João. Que agora esteja!

*Publicado na Revista Berro – Ano 01 – Edição 03 – Dezembro/Janeiro 2015 (aqui, versão PDF)


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