O garoto por trás do “doze”



2 Comentários



(Fotos: Chico Célio)

Negro, de pele bem escura, 1,70 m de altura, bastante franzino, daqueles em que as costelas saltam aos olhos e a magreza notória afunda até mesmo a maçã do rosto, Rafael (nome fictício) não se deixa suplantar pela sua aparente fragilidade física. O jovem P.S.F.S., iniciais da verdadeira identidade de Rafael, aos 21 anos, já é um dos principais vendedores de droga da comunidade da Vila Cazumba, na zona sul de Fortaleza, próximo à Cidade dos Funcionários. Como de praxe, por sua “função” dentro da comunidade, Rafael tem prestígio, impõe respeito e, até mesmo, medo, mesmo sem querer, a muitos dos moradores. “Às vezes, noto que uns e outros me olham meio de rabo de olho, com medo ou sei lá o quê”, diz Rafael. E completa: “Mas a maioria me trata bem, na limpeza”. A comunidade da Vila Cazumba, onde Rafael nasceu, cresceu e vive até hoje, começou a surgir entre o fim da década de 70 e o início dos anos 80, quando o Tancredo Neves, favela vizinha e uma das maiores de Fortaleza, já apresentava barracos apinhados, colados uns aos outros, que se expandiram rapidamente para os lados de forma inconsequente e não planejada. Dessa expansão do Grande Tancredo Neves surgiram comunidades à sua volta, como as favelas do Gato Morto, do Tasso, do Vila Verde e da Vila Cazumba.

É nessa realidade que vive Rafael. O jovem é o terceiro de uma família de quatro irmãos, criados por dona Aparecida, sua mãe. Perdeu o pai, seu Abreu, ainda muito novo, aos cinco anos, mas nem por isso deixou de ter uma figura paterna que o inspirasse e influísse na sua escolha de vida. Seu tio, Ricardo, que morreu há pouco mais de dois anos, o criou como um filho, pois morava vizinho ao garoto. Na periferia, ainda é bastante comum que famílias de irmãos morem próximas umas das outras. “Ele foi mesmo que um pai: brigava comigo, me batia, mas me ensinou muita coisa também”, afirma o jovem. “Eu acho que ele gostava também muito de mim porque só tinha filha mulher; eu era o sobrinho que ele mais gostava, eu acho, né!”, completa, saudoso.

Ricardo ‘Rolão’, como era conhecido o tio de Rafael, foi por muitos anos o principal vendedor de drogas da Vila Cazumba e um dos principais do Grande Tancredo Neves. Não queria que o sobrinho seguisse o caminho do tráfico, mas também não fazia esforço algum em esconder do ainda menino, e dos outros familiares, que a atividade que sustentava a família era o comércio de drogas. Pelo contrário, a venda era feita a céu aberto, na porta de casa. “Ele era muito respeitado pelos moradores aqui da Vila; não tinha como esconder da gente que ele arrepiava, pois os caras vinham aqui direto pegar (drogas)”, explica Rafael, que desde cedo, através do exemplo de seu tio, viu no tráfico de drogas um caminho real e perfeitamente possível de ganhar dinheiro fácil.

Como na grande maioria dos casos, Rafael foi mais um garoto da periferia que escolheu essa sina espelhando-se em exemplos próximos à sua volta. No seu caso, o tio, mesmo sem nunca tê-lo incentivado, foi um modelo a ser seguido. “Eu via que só fazendo aquilo ele sustentava a família dele e ainda ajudava a gente também”, explica. E foi exatamente após a morte de ‘Rolão’, assassinado por traficantes do Tancredo Neves, que Rafael decidiu entrar de vez para a guerra.

Segundo ele, não foi muito difícil arrumar um “canal” para comprar a droga em grande quantidade para, então, repassá-la. Contudo, prefere não revelar o local. No começo, conta, “só vendia maconha, mas o que tava ganhando era muito pouco, não dava quase nada pra mim”. Os papelotes de maconha, ou as ‘balas’, como são comumente chamadas, são vendidos a cinco reais cada, o que gera uma receita líquida muito pequena para quem trafica. Percebendo que o lucro gerado com a venda de maconha não estava sendo suficiente, o jovem decidiu começar uma empreitada mais perigosa, porém com lucros que chegam, em média, dependendo de circunstâncias específicas – como o tamanho da clientela e a quantidade de mercadoria – a 400%, 500% ou mais do investido inicialmente: a venda de crack.

O crack é um subproduto da cocaína que está completamente disseminado nas periferias brasileiras e avança também, a passos largos, em direção à classe média. Estudos e pesquisas de diversos órgãos que lidam com dependentes químicos têm mostrado que, nas clínicas de reabilitação particulares, em média, mais de 80% dos pacientes estão internados por dependência ao crack. Nas clínicas públicas, esses índices ultrapassam os 90%. Dessa forma, fica claro que para qualquer traficante que se utilize da venda dessa droga, que custa cinco reais uma unidade, tem-se a certeza de usuários em potencial aos montes. Outro fator que faz ser comum entre os traficantes a venda do crack é que o usuário dessa droga não se contenta com apenas uma “pancada”, pois esse subproduto da cocaína tem efeito rápido e altamente viciante. “Já teve dia de maluco gastar mais de mil reais só aqui comigo; outros já deixaram televisão, som de carro, DVD, relógio, anel de prata, cordão de prata, de ouro, um monte de coisa”, conta Rafael.

vila-cazumbaO jovem diz, com sinceridade e inconsciência, não se incomodar por estar vendendo uma droga com alto poder destrutivo ao usuário: “Nem penso nisso, se o cara vem até aqui pegar é porque ele quer; só estou fazendo o meu adianto”. Uma vez por semana, vai até seu “canal” e adquire uma nova remessa de crack. A quantidade varia de uma semana para outra, dependendo do quanto ainda tem disponível no estoque, mas, em média, compra semanalmente entre 40 e 50 gramas da droga. Para clarear as ideias, 5 gramas de crack são vendidos, em média, a 120 reais. Quando comprada em grande quantidade, esse valor diminui para 100 reais. Portanto, o jovem Rafael, que estudou somente até o 1º ano do Ensino Médio e nunca trabalhou com outra coisa que não fosse o tráfico de drogas, administra, por mês, uma quantia que varia entre 3.200 e 4.000 reais. Muito? Rafael solta uma espontânea gargalhada, se recompõe e esclarece que não: “É uma micharia! Tem doze lá no Tancredo que tem é casa duplex, carro, dinheiro no banco”.

A maioria da clientela do jovem é formada pelos próprios moradores, mas, segundo ele, os clientes mais lucrativos são os “playboys”, que normalmente compram a droga em grandes quantidades. Durante a entrevista, feita no local onde sempre “despacha”, diversos usuários surgiram, sem cerimônia. O garoto negocia a droga com a mesma naturalidade de um comerciante que vende laranja na feira. O tráfico na favela não pára. Segundo ele, o movimento é intenso durante todo o dia, inclusive no decorrer da noite. Para Rafael, o pior de vender “pedra” é ter de ficar acordado durante toda a madrugada, “hora em que aparecem os bruxos e o movimento aumenta”. Por conta dessa rotina, diz que acorda somente depois do meio-dia para “trabalhar”.

O jovem, obviamente, não é o único traficante da Vila Cazumba. Mas, como faz questão de frisar, “é o que está arrepiando mais na área”, orgulha-se. No entanto, diz que os outros não sentem inveja, relaciona-se bem com todos. Pelo menos no momento, os traficantes da comunidade convivem num clima respeitoso e pacífico. O grande problema mora ao lado. Mais especificamente, cruzando a Avenida José Leon, que marca a divisão entre a Vila Cazumba e o Tancredo Neves. Historicamente, os traficantes das duas comunidades vivem numa guerra pelo controle do comércio de drogas na região. Há momentos, meses até, em que impera o armistício, mas é preciso apenas uma “mancada” de um dos lados para a batalha recomeçar a pleno vapor. Essa disputa já ocasionou várias vítimas fatais, entre elas o tio de Rafael, Ricardo ‘Rolão’, que, como dito anteriormente, foi morto por traficantes do Tancredo Neves. Fogos de artifício rasgam o céu da região quando há a morte de algum traficante, seja da Vila Cazumba, seja do Tancredo Neves. Os fogos são uma espécie de ritual que eles incorporaram a essa guerra insana. “Já perdi uns camaradas, mas é isso mesmo”, resigna-se Rafael, num misto de frieza e tentativa de apagar da memória as lembranças dos amigos perdidos.

vila cazumba II

Assim como com os traficantes do Tancredo Neves, o relacionamento com a polícia é difícil. Rafael conta que a corporação sabe que o comércio de drogas ocorre na favela e, por conta disso, “come o troco” de muitos como ele. Aquele que não paga o suborno aos policiais corre seriamente o risco de ser preso e ter seu negócio fechado, derrubado. “Se não pagar o troco aos homem, a casa cai”, diz o jovem. Os policiais passam no dia combinado e saem recolhendo os subornos; em contrapartida, fazem vistas grossas ao comércio de drogas que acontece cotidianamente na favela.

Quando indagado se também faz uso da droga que vende, se surpreende e é enfático: “Tu é doido? Traficante que usa pedra, tudo o que ganha vai só pra alimentar o vício”. Mas admite que fuma maconha e, “de vez em quando, no fim de semana”, cheira “um pózim (sic)”. O fato gritante é que a maioria esmagadora dos jovens da periferia recorre às drogas químicas, como o crack e a cocaína, pela facilidade de acesso que encontram.

Rafael conta que a mãe, dona Aparecida, sabe da atividade dele, mas não o recrimina, pois ele tem a ajudado nas despesas domésticas, apesar de não morar mais com ela. Hoje, tem seu próprio barraco – um vão de poucos metros quadrados -, que divide com suas “namoradas”. Fenômeno comum a essas comunidades é o poder de sedução que os traficantes exercem nas garotas. Para elas, namorar um traficante é sinônimo de poder, de status dentro da comunidade. Semelhante encantamento ocorre com as crianças, que vêem na figura do traficante um exemplo a ser espelhado, tendo em vista que aqueles estão sempre com roupas novas, tênis de marca, relógios caros etc. Essa idolatria que se deposita sobre eles é também um dos motivos que os fazem continuar na atividade ilícita, pois, após conseguir esse prestígio, é muito difícil se desvincular dele. “As cumades só faltam pular em cima de mim”, gaba-se Rafael, abrindo um sorriso sarcástico e com um ar pouco modesto.

Entretanto, antes de ser um traficante de drogas, Rafael é um jovem de 21 anos e, como qualquer outro, tem seus gostos, suas vontades e seus amigos, com quem gosta de “jogar futebol e tomar umas gelas”. Torce para o Fortaleza. Não vai aos jogos do seu time porque a atividade não o permite. “Os jogos são sempre domingo ou quarta, e aí são dias bons aqui pra mim”, confessa.

Sorridente, simpático e brincalhão, o jovem é o contrário do estereótipo do traficante, aquele de fisionomia carrancuda, autoritário, violento e prepotente. A atividade que exerce ainda não o embruteceu tampouco o fez perder o espírito de garoto. Durante a entrevista, fez várias brincadeiras com quem passava pelo local, sendo sempre correspondido, em tom também jocoso, pelos alvos das piadas.

As estatísticas deterministas provam que comumente a vida no tráfico aponta para dois caminhos: a morte ou a prisão. Rafael parece não pensar muito nisso; vai levando a vida como um garoto e, sem saber, como gente grande. Ele é um exemplo clássico de que muitos dos que exercem a atividade ilegal do tráfico não a fazem por escolha, como se fosse uma opção entre ser médico, jornalista ou traficante, mas por uma equação muito simples: o meio em que você nasce aliado à falta de oportunidades de conhecer outras realidades, senão aquela em que nasceu. Não que Rafael seja um exemplo de vida, não que se Rafael tivesse nascido com bem mais oportunidades teria um futuro promissor, mas Rafael nos ensina, mesmo sem querer, que, muitas vezes, o meio é responsável direto pelo fim. Rafael é apenas mais uma vítima do estado das coisas.

Por fim, me despeço do garoto dando-lhe um forte aperto de mão. “Acabou já?”, me indaga. Respondo que sim, sem falar, apenas balançando positivamente a cabeça. “Mas tava tão bom, me senti importante”, diz, rindo debochadamente. No caminho para casa, muitas divagações me passaram à cabeça. De fim, restou a lamentação. Triste sina, Rafael. Triste sina nesse tão desigual Brasil!

Glossário da favela:

  1. Doze: gíria para designar alguém que trafica entorpecentes. Advém do antigo Art.12 do Código Penal brasileiro, que versava sobre tráfico de drogas;
  2. Olhar de rabo de olho: olhar desconfiado;
  3. Tratar na limpeza: tratar bem, com educação, com respeito;
  4. Arrepiar: traficar, vender bem, vender bastante;
  5. Canal: local (ou pessoa) onde os traficantes compram a droga em grande quantidade para revender;
  6. Pancada: ato de fumar/tragar o crack;
  7. Adianto: serviço, trabalho;
  8. Micharia: pouco dinheiro, quantia insuficiente, pequena quantidade;
  9. Playboy: jovens de classe média;
  10. Despachar: vender, negociar;
  11. Pedra: crack, tem essa gíria porque é vendida em pedrinhas envoltas em sacos plásticos;
  12. Bruxos: viciados crônicos, geralmente os mais impulsivos pela droga;
  13. Mancada: vacilo, erro;
  14. Camaradas: amigos, parceiros;
  15. Comer o troco: subornar;
  16. Homem: policial;
  17. A casa cair: Ter seu negócio fechado e/ou ir para a prisão;
  18. Cumade: mulher, garota;
  19. Gela: cerveja

2 Replies to “O garoto por trás do “doze””

  1. Muito bom o texto, mas o sentimento é de tristeza pelos muitos “Rafaeis” nesse Brasil! Encontrei o texto, pois estou procurando fotos, reportagens, textos… sobre a favela do gato morto, onde passei uma parte da minha infância. E por grande “sorte” consegui driblar o meio, hoje sou analista sênior em uma multinacional, formada em engenharia de produção e estou buscando materiais do meu passado para construir uma palestra e motivar jovens da periferia a trilhar uma jornada longe da criminalidade. Se quiserem fazer um texto parecido com o do Rafael, mas com um final feliz fico à disposição! <3

    1. Que demais Evelyn! Parabéns pela jornada. Entretanto, sua história é uma exceção honrosa e feliz perto de uma estrutura que está a todo momento pronta pra oprimir e derrubar pessoas das comunidades pobres em todo o Brasil.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *