O “cidadão de bem” também aperta o gatilho



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(Ilustrações: Latuff)

Na última semana, as redes sociais compartilharam um vídeo de um policial matando à queima-roupa um camelô no centro de São Paulo, que tentou tomar-lhe o spray de pimenta. À cena bárbara, foram acompanhados comentários indignados com o despreparo e a banalidade policial pela vida, mas em sua maioria houve uma enxurrada de aforismos fascistas, como “quem procura, acha”, “quem mandou tentar pegar o spray do policial”, “mereceu!”, etc.

Essa morte ganhou notoriedade porque foi filmada, registrada. Mas imagine o tanto de pessoas que estão sendo mortas da mesma forma, à queima-roupa, por policiais exatamente agora, em algum lugar do Brasil. A polícia brasileira é a que mais mata no mundo. De acordo com dados do 7º anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em 2013, cinco pessoas são mortas por dia no Brasil pela polícia, em média. Só no ano passado, as polícias do Rio de Janeiro e de São Paulo mataram mais do que todos os países com pena de morte no mundo. E, aqui pra nós, sabemos quem a polícia está matando. Não são os moradores do Cocó, da Aldeota, do Meireles, do Dionísio Torres, mas os do Tancredo Neves, do Pirambu, do Lagamar, do Conjunto Palmeiras, do Curió, enfim, quem morre pela ação policial é morador da favela!

A verdade é que a instituição polícia existe tão-somente para manter o estado das coisas; ela é uma das maiores guardiãs do status quo. Não traz segurança e proteção a todos, mas sim a uma minoria privilegiada em detrimento de uma maioria miserável. Funciona dessa maneira o modus operandi policial: protege-se a elite e a classe média, que os classifica como defensores da lei e da ordem, e criminaliza-se a pobreza e a negritude. Se for pobre e preto, meu deus, é um criminoso em potencial. Mas aí, quando a Senzala, não mais aguentando ser mantida por tantos séculos à margem dos processos sociais, políticos, econômicos e educacionais do país, parte para o confronto – que não é nada mais do que consequência direta e anunciada de um sistema que exclui e desiguala por natureza -, quem está lá para defender a Casa Grande? Logicamente, a polícia, que presta proteção fiel aos “sinhôzinhos” – que, ainda assim, se encastelam em suas casas rodeadas de muros altos, cercas elétricas… e, por via das dúvidas, uma Ponto 40 engatilhada, pronta para ser descarregada.

À parte essa simpatia toda com os donos do poder – e o olhar vulgar e atravessado, além do tratamento violento aos herdeiros da Senzala, grande parte dos policiais ainda se empenha, disciplinados que são, em doutorar-se na “arte” de abarrotar os bolsos com extorsões e práticas de corrupção de toda ordem. “Comer o troco”, gíria para pegar dinheiro de extorsão, é linguajar comum entre eles e prática banal na relação entre polícia e tráfico.

mídiaApesar de todo o papel coercitivo e violento que a polícia representa para a sociedade, esta, de tão anômala, classifica aquela instituição como mantenedora da “ordem” – quando a tal ordem é nada mais do que o padrão burguês de privilégios a uma minoria em detrimento do povo. O resultado desse condicionamento social é trágico: a anomalia da nossa sociedade, mergulhada num sistema desigual e alienante, que privilegia o dinheiro e a propriedade em detrimento dos seres, encaixa-se perfeitamente com a função “social” de coerção e repressão que a polícia desempenha.

Você já fez o simples exercício de parar um pouco das suas preocupações individuais e pensou sobre isso: 5 pessoas por dia mortas pela polícia? A cada 24 horas, a polícia brasileira está matando 5 pessoas! Não existe pena de morte no Brasil? Tem certeza? É importante que paremos de pensar o mundo e a sociedade que estamos inseridos apenas por nossos umbigos. Há algo de muito doentio num tecido social que normaliza tudo isso. Chegamos a um momento de desumanização tão gritante que normalizamos o extermínio de um grupo social (os oprimidos, os marginalizados) como se isso fosse parte do processo natural da vida. “É assim mesmo!”, dizem muitos. Não, não é!

Ao não fazer absolutamente nada para mudar essa realidade social, ao achar que “é isso mesmo”, que “bandido (pobre) merece morrer”, também se aperta aquele gatilho, junto com o policial. Você, “cidadão de bem”, jura que não, mas, sim, você também atira! O apático social, aquele que trabalha “honestamente” e paga seus impostos, cujas preocupações se resumem às de seu próprio umbigo, está sempre ligeiro para arrotar moralismos eivados de preconceito e tem como maior sonho de vida engordar sua conta bancária, mas dá de ombros à miséria alheia – ou pensa que se importa ao dar uns trocados para um pedinte no sinal ou doar roupas e alimentos para uma instituição de “caridade”, esse é o maior parasita da sociedade. Esse é o “cidadão de bem”, que aplaude e estimula a letalidade policial. Ele pode estar em muitos locais: na tevê, apresentando um programa policial, de entretenimento ou um telejornal, dentro de alguma casa legislativa, no comando de um governo, num fórum, num tribunal, numa igreja, templo ou sinagoga, numa instituição de “caridade”, numa reunião de negócios, comandando uma multinacional, e tantos outros cantos… Mas ele também estará sempre lá, ao lado do policial na hora do disparo, segurando a pistola e apertando o gatilho!

Pelo fim da Polícia Militar!

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