Crônicas da Cidade: A arte de levar uma geral



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(Arte: Banksy)

Se tem uma coisa que ocorre com certa frequência por estas bandas da Cidade dos Funcionários é a famosa geral, ou o baculejo, cuja forma abreviada é “baca”, que vem a ser, para os desavisados ou não iniciados no convívio de rua, a revista policial. São incontáveis as vezes, ao longo desses anos todos de vivência cidadeana, em que tivemos que colocar as mãos na cabeça e fazer a famigerada cara de inocente.

De tão corriqueira que é a cena, alguns desses momentos constrangedores correram de boca em boca e hoje fazem parte do grosso caldo de estórias que formam a cultura cidadeana.

Uma geral bem conhecida por aqui aconteceu há muito tempo, no finalzim dos anos 90. A molecada descia pras bandas do terreno do Antônio Caixeira pra soltar raia. Era uma febre! O Rato era um dos mais verminosos na arte de empinar as pipas. Marcava presença sempre.

Vale aqui abrir um parêntese para falar um pouco do Rato, esse personagem folclórico do bairro, que mora no Tancredo Neves, comunidade situada na região limítrofe entre a Cidade dos Funcionários e o Jardim das Oliveiras. O Rato é também chamado de Cará porque, por morar às margens da Lagoa da Zeza, dizia que quando chovia no Tancredo e seu barraco alagava, os peixes vinham pular à beira de sua porta. E tome cará a semana toda! Assim, sempre que chovia, ele ficava em dúvida se achava ruim o temporal alagar sua casa ou achava bom o fato de se empanturrar de peixe! Fecha parêntese!

Pois bem, voltando à cena, passado devidamente o cerol, estavam todos soltando raias; o vento de julho, que sopra mais forte que o habitual, ajudava a empiná-las com mais facilidade, ainda que uns e outros, vez por outra, embolassem suas linhas chinesas, a novidade da época. O Rato era craque na arte de laçar e arriar as raias alheias. A cada pipa arriada, era uma tiração de onda danada.

– Ieeeeiiiiii, zombavam uns dos outros!

Foi num desses momentos de diversão que a polícia chegou e anunciou a geral. Como o Rato era o mais velho da turma (já passava dos 18, enquanto a maioria tinha entre 14 e 16) e também o mais negro (sim, a PM é racista!), foi justamente nele que os porc…, ops, os policiais encarnaram:

– Mora onde, tu?
– Moro no Tancredo, senhor. Mas meu irmão mora nessa rua ali subindo, ó, disse ele, com as pernas trêmulas e as mãos à cabeça.
– Tão fazendo o que aqui?
– Tá vendo não? Tamo soltando raia!

Nesse instante, a audácia do Rato fez que com os outros não se contivessem e, escorados à parede também com as mãos para cima, rissem baixinho. O polícia se incomodou com aquela gracinha e aumentou o tom.

– Gaiatim, né, maxo (o macho que designa masculino é grafado com “ch”, mas esse “maxo” aqui, típica expressão do cearensês, é com “x” mesmo!), tu? disse o policial, já perdendo a pouca paciência costumeira.
– Só respondi o que o senhor perguntou, cidadão, disse Rato.
– Pois cadê o teu documento? Bora, cadê?
– Cidadão, com todo o respeito, mas eu nunca ouvi falar que pra soltar raia precisava ter documento não, ó!

Nessa hora, bastou a primeira risada tímida pra todos caírem numa gargalhada geral. O polícia ficou descontrolado e meteu o Rato no camburão. Horas mais tarde, o irmão dele, Neneca, que morava ali próximo, foi tirá-lo do xilindró. Passado o constrangimento, a estória ficou e, certamente, será passada de geração para geração entre os moradores.

——–

Noutra vez, dia desses tomávamos um litrão na barraca da Lôra, na praça, acompanhado de um churrasquim de gato e umas rodelas de limão, quando uma viatura do Ronda, com três polícias, chega e anuncia a geral:

– Os homens tudim com as mãos pra cima!

Um dos amigos, que estava acompanhado da namorada, fez a infeliz pergunta:

– Até eu, cidadão?
– E tu num é homem não, porra!

Mal o cana acabou de falar e o amigo se posicionou pra levar o baca também. O que a polícia não esperava é que estivesse ali o Daniel, um cara que nasceu com o tino pra comédia e vive inventando expressões e palavras que depois se espalham pelo bairro – me arrisco a dizer que algumas grassam por toda a cidade. O “n´tem quem diga” (que pode ser usado em qualquer conversação, pra atestar, confirmar ou negar algo – faça aí você o teste!) e o “já deixei duas muié por causa disso” (ao ser questionado sobre alguma coisa que não quer responder) são as duas novidades que campeiam por estas bandas no momento.

Daniel vive também dizendo que na casa dele, na qual vive com a mulher, quem manda é ele: “Lá em casa quem manda sou eu. A mulher manda eu lavar as roupas e o que eu faço? Lavo, mas num enxugo! Manda eu varrer a casa? Eu varro, mas num apanho o lixo. Manda eu fazer o almoço? Eu faço, mas num ponho a mesa”. E assim prossegue com seu repertório de gaiatices…

Nesse dia da geral, o polícia encostou nele e, enquanto o apalpava, iniciou o interrogatório:

– Tu deve alguma coisa, maxo?
– Sim, só cartão de crédito!
– Não tô falando disso não. Quero saber é se teu nome é sujo?
– Sim, no SPC e Serasa.
– Rapaz, o que eu quero saber é se tu responde alguma coisa?
– Só o que você perguntar!
– Pois eu tô perguntando é se tu deve alguma coisa na Justiça, maxo? disse o polícia, já bufando pelas narinas.
– Ah, porque você não disse logo. Pra Justiça eu devo só duas cópias de um documento que eu tirei no fórum e nunca paguei. E só num paguei porque a moça não tinha troco pra 50!
– Maxo, tô vendo que tu é cheio de gracinha. Tu usa droga?
– Se Derby e Ypióca entrarem nessas estatísticas…
– Não tô falando disso. Tô falando de droga mesmo!
– De vez em quando assisto o Faustão…
– É o quê, maxo?
– Pois é, n´tem quem diga!
– Maxo, vai, vai, vai, que tu tá é bêbo!

E assim, terminada a geral, todos voltamos às nossas cadeiras e continuamos a prosa e a bebedeira. O litrão já ia pela canela da garrafa, mas depois daquele geral bem sucedida (isso é, ninguém tinha rodado), o que nos restava era pedir um outro litro pra comemorar.

– Ô Lora, traz mais um aí pra espantar o nervosismo!


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