A “Fortaleza Apavorada” e o que ela esconde



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(Ilustração: Pawel Kuczynski)

Diariamente, pipoca nas manchetes e páginas dos veículos de comunicação notícias de sequestros, roubos, assaltos, homicídios… A olhos vistos, percebe-se a escalada da violência nas metrópoles brasileiras. Natural. O país “cresce”, torna-se o sexto mais rico do mundo, mas, simultaneamente, mantém-se como um dos mais desiguais na distribuição dessa riqueza. Paralelamente a isso, percebe-se a escalada do pensamento conservador e raso de que a violência se combate com mais policiais nas ruas e ainda mais repressão.

Oportunistas e metidos a espertalhões engraçados, apresentadores de programas policialescos, os programas-lixo, se aproveitam do fenômeno social da violência urbana e se elegem vereadores, deputados e senadores em todo o Brasil com um discurso superficial de “combate ao crime”. Estes senhores da guerra exploram, apelam, espetacularizam e se lambuzam feitos porcos no chiqueiro com a violência que, em grande parte, dizima jovens nas periferias brasileiras. Pior: ao se elegerem para seus mandatos legislativos, nada fazem no sentido de apontar soluções ou, no mínimo, perspectiva de solução à área de segurança pública.

Não podemos perder de vista que quem mais morre nessa guerra são os jovens negros da periferia. A mortalidade de jovens negros entre 15 e 29 anos é três vezes maior do que entre jovens brancos. Segundo estudo do IPEA de 2011, intitulado Dinâmica Demográfica da População Negra Brasileira, o grau de vitimização da população negra é assustador: há uma probabilidade 103,4% maior de um negro ser vitimado do que um branco. Quando se analisa só a faixa etária dos jovens de 15 a 25 anos, essa probabilidade aumenta para 127,6%. Com esses números alarmantes, constata-se que a violência homicida no Brasil tem rosto e cor: jovem, negro, morador da periferia das grandes cidades.

É como diz Edy Rock, dos Racionais MC´s, em Tempos Difíceis: “Menores carentes se tornam delinquentes e ninguém nada faz pelo futuro dessa gente. A saída é essa vida bandida que levam roubando, matando, morrendo, entre si se acabando. Enquanto homens de poder fingem não ver, não querem saber, fazem o que bem entender. E assim… aumenta a violência. Não somos nós os culpados dessa consequência”?

No entanto, toda essa violência, consequência de uma desigualdade social histórica e escandalosamente ignorada, só é problema para a classe média burguesa quando ela adentra o seu nicho social, ou seja, quando ela sai das ruas de terra batida e enlameadas do Tancredo Neves ou do Lagamar e invade, sem pedir licença, os condomínios de luxo da Aldeota, do Meireles, do Cocó, etc. “As grades do condomínio são pra trazer proteção, mas também trazem a dúvida se é você que está nessa prisão” (O Rappa, Minha Alma). “A burguesia odeia o povo justamente por causa de todo esse mal que ela lhe faz; ela o odeia porque vê na miséria, na ignorância e na escravidão desse povo sua própria condenação. […] Ela odeia o povo porque ele lhe dá medo” (Mikail Bakunin, O império knuto-germânico e a revolução social).

O movimento “Fortaleza Apavorada” reflete perfeitamente essa questão. O problema, logicamente, não é ir às ruas reivindicar por segurança ou qualquer outra questão que incomode. Pelo contrário, ocupar, ou melhor, invadir, tomar conta das ruas para protestar é essencial às sociedades; é o que as mantêm vivas, pulsantes, orgânicas. Sem o povo nas ruas, as sociedades estagnam no conservadorismo e na manutenção das velhas ordens do poder. Mas o “Fortaleza Apavorada” não quer mexer nas estruturas sociais. O “Fortaleza Apavorada” quer ir tranquilo ao Iguatemi sem se deparar com algum “bandido” que roube seu Iphone 5. O “Fortaleza Apavorada” quer mais policiais nas ruas e mais repressão nas favelas. O “Fortaleza “Apavorada” não quer que a violência social gerada pela quinta cidade mais desigual do mundo respingue nele. Não duvido nada que o “Fortaleza Apavorada” queira também a redução da maioridade penal. O “Fortaleza Apavorada” é o movimento do próprio umbigo. Não consegue enxergar além dele! O “Fortaleza Apavorada”, em resumo, quer segurança para manter seu padrão de vida burguês sem ser importunado pelos excluídos da cidade. Quando um movimento civil clama por segurança social, mas ignora completamente as causas da insegurança – desigualdade, exclusão e marginalização sociais, criminalização da pobreza e da negritude, etc. – o que ele quer é simplesmente manutenção de privilégios. Ou não é?

O pior é que a lógica de pensar que a questão da segurança se resolve com mais policiais e mais repressão parte também do estado. Em nota pública, o Gabinete do Governo do Estado do Ceará elencou “melhorias” na segurança pública cearense nos últimos anos: dobrou o número de policiais, reequipou as polícias com armamentos modernos, implantou a Academia de Polícia… Na nota, nenhuma menção ao desequilíbrio social alarmante que separa cruelmente os sonhos de vida do José, da Vila Cazumba, para o Maurício, da Aldeota.

A guerra civil nas favelas do Brasil – e Fortaleza não escapa à regra – vai ricochetear cada vez mais na classe média, porque essa guerra fratricida já não cabe mais apenas nas periferias. Ela transbordou para os bairros “nobres” com o aprofundamento da sociedade do consumo. “É verdade que o capitalismo manteve como constante a extrema miséria de três quartos da humanidade, pobres demais para a dívida, numerosos demais para o confinamento: o controle não só terá que enfrentar a dissipação das fronteiras, mas também a explosão dos guetos e favelas” (Gilles Deleuze, Post-Scriptum sobre as Sociedades de Controle). O José da Vila Cazumba quer também o tablet que o Mauricinho da Aldeota tem. Quer também o carro, as roupas de grife e o mesmo padrão de vida. A lógica da sociedade atual, do espetáculo, é extremamente perversa, principalmente porque idealiza padrões de consumo e de comportamento a todos, mas restringe o acesso às “benesses” dessa sociedade patológica a uma casta privilegiada.

“A primeira fase da dominação da economia sobre a vida social acarretou, no modo de definir toda realização humana, uma evidente degradação do ser para o ter. A fase atual, em que a vida social está totalmente tomada pelos resultados acumulados da economia, leva a um deslizamento generalizado do ter para o parecer”, diz Guy Debord, em seu clássico A sociedade do espetáculo. Por meio da embriaguez causada pelo fetiche das aparências aliada às iniquidades sociais históricas, é o movimento do não-vivo, da negação da vida real, da busca pelo parecer que acarreta a violência.

Portanto, está evidente que o caminho para a paz social é o da desconstrução da ordem sócio-simbólica e imagética (as imagens têm poder!) que nos está imposta; do rompimento total com o atual estado das coisas; da superação da lógica do consumo de ilusões; da emancipação do homem da lógica mercantil; da construção da vida em sociedade calcada na essência, não na aparência. Enfim, enquanto não se superar essa sociedade e todos os seus vícios deletérios, a paz social tão sonhada não passará de um simulacro maquiado de UPPs, policiais em Hilux, academias de polícia ou coisas que as valham.

“É pela paz que eu não quero seguir admitindo”! (O Rappa – Minha Alma/ A Paz Que Eu Não Quero)

*Artigo publicado também na Adital.


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