Entorpecente e crime: apontamentos sobre a proibição da maconha no Brasil



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(Foto: Chico Célio/Revista Berro)

Ensaio aqui uma análise dos conceitos das palavras Entorpecente e Crime, no sentido de ampliar a interpretação histórica com o auxilio da filologia, aproximando as noções da história social da criminalização da maconha, de forma a estreitar as esferas da sociedade e da linguagem, compreendendo seus signos, os elementos extralinguísticos, prélinguísticos, e pós-linguísticos e a relação entre ação e discurso.

Quais as palavras que giram em torno dos discursos da proibição da maconha no Brasil? Entre muitas recorrências (raça, degeneração, maconhismo, nocivo, pernicioso, criminoso, drogas) argumenta-se em favor dos conceitos “entorpecente” e “crime” tentando justificar suas escolhas pelo aspecto sóciolinguístico que delas for possível extrair.

Na década de 1980, em razão de uma conferência na Universidade de São Paulo, Antônio Houaiss palestrou sobre um assunto caro aos interessados sobre a questão da das drogas no Brasil: a relação, ou as possíveis relações entre história, sociedade e cultura linguística, de modo que a língua apareça como elemento central dessa trama. Pode-se converter os conceitos e o estudo do significado dessas palavras, e as formas narrativas e os aparelhados e diversos discursos da proibição e da criminalização da maconha, de forma a relacionar tal processo, não apenas a um circunscrito de ações higienistas do governo. Amparado em uma linguagem médica racista foi erigido um discurso que normatizou o crime da maconha no Brasil, e sobre ele, foi escrita toda uma literatura jornalística que estigmatizou a cultura da planta no país, associando-a ao crime da década de 1920 até os dias atuais.

O verbete “maconha” do Dicionário do Folclore Brasileiro em que o autor Luís da Câmara Cascudo utiliza como referência os trabalhos dos médicos proibicionistas da escola Dr. Rodrigues Dória[1], o bã bã bã da pseudociência proibicionista. Dos termos pelos quais eram conhecidos a erva, dou destaque para Ópio do Pobre, em que se associa de imediato um poderoso entorpecente e uma parcela da população bem específica, o texto apresenta a ideia de que a erva é fumada pela malandragem, e que é mais da predileção dos gatunos e vagabundo1. Credencia assim uma correlação pré-existente entre a planta e o crime, os jornais expuseram essa equação em seus editorais, o maconheiro pobre e negro corresponde ao criminoso[2].

ervaNo jornal cearense O Povo, aparece uma notícia em agosto de 1953 intitulada O vício da maconha na capital, que apresenta como característica do texto jornalístico uma cobrança das autoridades frente ao problema da maconha. É apenas uma dentro de um universo grande de manchetes dessa natureza que podem ser encontradas nos jornais das cidades brasileiras, e que trazem aliadas ao seu alarde uma condenação implícita da planta: Rapazes de diferentes classes sociais se irmanam na pratica desse vício que só prejuízos lhe acarreta… Prainha, Pirambu, São Gerardo e outros bairros são pontos de convergência dos que se entregavam ao uso da erva maldita. A opiniosa redação do texto deixa óbvia a relação entre o uso da erva e a vadiagem: Jovens imberbes andam por aí ‘loucos’, como eles se qualificam, transitando pelas ruas centrais da cidade, sujeitos a prática de atos condenáveis, devido o efeito da maconha[3].O circular dos vários nomes da maconha (fumo de angola, erva maldita, erva do diabo) implica, mesmo que de forma indireta, a divulgação dessas palavras, ou seja, mesmo com o intuito de alertar ou advertir as pessoas no sentido de identificar a planta, a publicação dessas nomenclaturas em contrapartida também propaga e difunde as terminologias do vegetal, aumentando a mitologia a respeito das diversas facetas da maconha.

Já no verbete entorpecente, que constatamos ser o termo mais utilizado entre os médicos proibicionistas[4] aparecem várias noções de algo potencialmente perigoso e nocivo às pessoas. Nos léxicos de Houaiss e de Aurélio, em ambos o sentido da palavra afere o ato de entorpecer, o que, mesmo de modo ‘analgésico’ ou ‘agradável’ acarretaria inevitavelmente a risco e dano progressivo ao usuário de tais substâncias, nesse sentindo compõe algo essencialmente ruim e nocivo socialmente.

Classificar assim a maconha como entorpecente é em certa medida enquadrá-la nessa categoria maléfica de substâncias mesmo sabendo que o discurso ou os discursos não correspondem efetivamente à realidade histórica, ou seja, a população poderia ou não assimilar o conceito da maneira que foi colocado, e certamente em maior ou menor grau o fez, não sem antes, porém, reinterpretar seus significados e sua aplicação. Afinal trata-se de um vegetal de uso muito antigo, introduzido no Brasil através dos negros africanos escravizados, exprobrados, (daí as denominações em línguas africanas maconha, diamba, liamba, e o revestimento da prática de sua cultura com argumentos racistas), mas também fruto de uma política deliberada pela Coroa Portuguesa que buscava aclimatar diversas plantas de uso econômico para servir como alternativa no comércio colonial. Há de se considerar ainda que é pelo mesmo discurso médico que o uso da maconha é transformado de um valioso remédio até fins do século XIX, em um perigoso hábito que ameaçaria a integridade física e moral da raça branca no século XX[5]. De que forma a propagação dos conceitos sobre o cânhamo se relacionam com a proibição da sua cultura?

Para tentar responder essa questão, focamos em um conceito que abarca um grupo de indivíduos em especial, que interpretou essas noções da forma mais direta possível: os criminosos. O sujeito que fazia uso ou cultivo da erva até o fim da década de 1930 estaria em pior das hipóteses cometendo um ato maléfico à sua saúde, no entanto, após a lei, a ação canábica se tornou criminosa e àquele sujeito passou a figurar um elemento transgressor, passivo de punição, e por associação, perigoso.

O maconheiro, o vendedor de maconha, o cultivador, o fumador, são convertidos pela lei em criminosos, dessa forma, praticantes de atos nocivos à sociedade e não mais só a ele mesmo, um condicionamento que justifica sua repressão, seu controle e seu aprisionamento. O termo criminoso acomete genericamente um indivíduo que compactua com a violência, que em seu cotidiano torna habitual a bestialidade, a brutalidade. Essa noção de ferocidade foi associada pela escrita médica às classes pobres, às culturas afro-brasileiras já não suficientemente exprobradas pelo flagelo da escravidão, em dois momentos decisivos. O primeiro entre as décadas de 1910-1930, época da constituição dos discursos proibitivos de características higienistas, na forma de um público conclave médico por demandas jurídicas para o encarceramento da cultura da maconha. E o segundo entre 1940 e 1950, quando a legislação clamada nas décadas anteriores já existia, e por suas vias empossava alguns daqueles médicos e seus discípulos como representantes legais do estado, convertidos em agentes do governo incumbidos de erradicar a cultura da maconha no Brasil[6].

Pedro Trigueiro é professor de História – e historiador nas horas vagas

  • 1. CASCUDO, Luis da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Instituto Nacional do Livro. Ministério da Educação e Cultura. Brasília.  1972.  p. 512.
  • 2. Essas três manchetes são do Diário de Notícia do Rio de Janeiro dos anos de 1935 e 1936, momento em que a legislação da proibição da maconha ainda estava se configurando. Estão disponíveis na Hemeroteca Digital Brasileira, em link http://memoria.bn.br/hdb/uf.aspx
  • 3.O Povo, 31 de agosto de 1953.
  • 4. Ver Maconha: Coletânea de trabalhos brasileiros. 2ªed. Serviço Nacional de Educação Sanitária. Ministério da saúde. Rio de Janeiro. 1958.
  • 5. CARNEIRO, Henrique. Pequena Enciclopédia da história das drogas e bebidas: histórias e curiosidades sobre as mais variadas drogas e bebidas. Rio de Janeiro, Elsevier, 2005. p.73.
  • 6. FARIAS, Roberval Cordeiro de. Relatório apresentado aos srs. membros da comissão nacional de fiscalização de entorpecentes. Inspecção realizada de 7 a 18 de novembro de 1943 nos estados da Bahia, Sergipe, Alagoas, visando o problema do comércio e uso da maconha. In: Maconha: Coletânea de trabalhos brasileiros. 2ªed. Serviço Nacional de Educação Sanitária. Ministério da saúde. Rio de Janeiro, 1958.

 


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