Celebrações outras



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No Curso de Licenciatura em Teatro, do Instituto Federal de Educação, Ciências e Tecnologia do Ceará – IFCE, entre diversas iniciativas realizadas pelo seu corpo discente, com apoio da coordenação do curso, da direção do Departamento de Artes e de professores, cultiva-se com muita dedicação e carinho o que é chamado de Semana de Boas Vindas, que consiste na recepção dos novos estudantes por parte de alunos veteranos, mas que não se limita a uma mera apresentação da estrutura/infraestrutura do curso e da instituição a qual ele é vinculado; a Semana de Boas Vindas é bem mais que isso, é um momento de convergência e acolhida, em que através de trabalhos cênicos livres, é possibilitada uma interação que se faz extremamente valiosa para o enfrentamento dos desafios respectivos de um curso de graduação em teatro, com suas riquezas e pluralidade.

O Curso de Licenciatura em Teatro do IFCE há tempos é uma referência em criação artística e produção científica, fortalecendo a cena teatral local e a produção cultural do estado de uma maneira geral, através de manifestações cênicas diversas, contribuindo no processo de apreciações e reflexões estéticas e no reconhecimento do teatro enquanto área de conhecimento presente na vida em sociedade. Uma das demonstrações de participação do Curso de Licenciatura em Teatro do IFCE pode ser conferida nas Montagens de Espetáculo Teatral, equivalente ao Trabalho de Conclusão de Curso I, em que as apresentações sempre são abertas ao público.

A Semana de Boas Vindas é um evento repleto de trabalhos oriundos do universo teatral e áreas afins, além de ações de interação e apresentação das disciplinas; os estudantes que iniciam a jornada de estudos no curso são recebidos com atenção e calor humano. E os outros cursos de graduação, do estado e país, como andam recebendo os novos estudantes?

A introdução em cursos de nível superior no Brasil é realmente uma vitória. Tendo como referência os números gerais da população, uma quantidade ainda pequena de brasileiros e residentes consegue entrar na universidade e, embora algumas mudanças estejam ocorrendo, a alta competitividade para a admissão em cursos de universidades públicas mantém a impregnação da concorrência como marca do ensino superior público brasileiro.

É óbvio que a entrada no ensino superior é motivo de festa e as comemorações ocorrem das mais variadas maneiras. Entretanto a recepção de estudantes novatos em instituições de ensino superior do Brasil há muito vem gerando discussões, principalmente devido à violência presente nos ritos de iniciação denominados de trotes. Com forte apelo na reprodução do comportamento da recepção de academias militares e de cursos de outros países, em que a humilhação dos novatos por parte dos veteranos alimenta um depreciativo ciclo na convivência entre estudantes, as recepções de novatos nutrem muitas polêmicas. Ao que parece a aceitação da humilhação funciona como provação obrigatória de reconhecimento da inferioridade de quem está chegando à comunidade de ensino; mas quando não há aceitação, as estúpidas brincadeiras pesadas continuam? Infelizmente a prática mostra que sim, e em vez ser uma celebração alegre, o ato da conquista de uma vaga no ensino superior é marcado muitas vezes pelo assédio moral, capaz de deixar terríveis traços que acompanham as pessoas por toda a vida. Um lugar onde é preciso expor as pessoas para tirar risada de outras muito provavelmente precisa rever seu conceito de sanidade.

O que é justificado como uma prática comum, que inclusive faz parte dos costumes do corpo discente das instituições de ensino tem ido longe demais; observa-se que os ditos trotes têm propiciado sequestros, agressões morais e físicas, estupros e assassinatos, em que o escárnio e o prazer na dor do outro impossibilitam o cultivo da solidariedade e do respeito mútuo. Não é preciso dizer que a onda de trotes, Brasil adentro, já passou dos limites há tempos, a cada começo de semestre surgem incontáveis depoimentos referentes à violação de direitos que em algumas ocasiões conta com a vista grossa da instituição, que na pretensão de não se expor e nem expor os prováveis agressores acaba deixando as vítimas em situações para lá de comprometedoras.

Os eventos de recepção de estudantes novatos não são novos no Brasil e muito menos se limitam ao ensino superior. Na antiga Escola Técnica Federal do Ceará – ETFCE, de onde o IFCE se origina, até o início deste século, costumava-se promover, por meio dos seus estudantes, o que era chamado de Sábado de Lazer, em que as dependências internas da instituição eram abertas à comunidade, onde aconteciam práticas de esportes, apresentações musicais e artísticas das mais diversas, que, além de aproximar os estudantes de cursos e turnos distintos, realizavam uma interação com moradores do Benfica, bairro sede da ETFCE/IFCE, assim como de outros bairros dessa região da cidade. Além dos conhecidos Sábados de Lazer, a ETFCE realizava outras festas de saudação de calouros – assim como escolas tradicionais da região central da cidade de Fortaleza, como o Liceu do Ceará e o Justiniano de Serpa -, abria suas portas aos sábados para a comunidade, também promoviam calouradas no turno da noite, contemplando o estudante que trabalhava durante o dia. Entre os anos de 1980 e 1990 as calouradas, sejam essas gerais ou dos cursos em específico, tanto da Universidade do Estado do Ceará (UECE) quanto da Universidade Federal do Ceará (UFC) cumpriram um papel bem interessante; além de estimular a interação entre alunos, professores, servidores e membros das comunidades em que os campi se encontravam, dispunham de espaço onde artistas podiam mostrar o seus trabalhos. Mesmo com público seleto, as calouradas ofertavam espaço de apresentação para diversas linguagens artísticas, sendo uma boa alternativa ao cerco da indústria cultural local.

Calouradas ainda ocorrem em cidades como Fortaleza, mas hoje se verifica que essas festas acabam utilizando apenas o termo, pois o apelo comercial é tamanho que o esvaziamento cultural é inevitável. Calouradas viraram festas de transmissão de músicas e demais produtos que estão sendo reproduzidos em emissoras de rádio. Em algumas situações se tenta resgatar o espírito das calouradas das antigas, como se pôde observar no ano de 2014: a então diretoria do Diretório Central dos Estudantes (DCE) do IFCE, chamando todos para uma calourada dos cursos de Artes do IFCE, Artes Visuais e Teatro, embora tenha esquecido de comunicar aos próprios estudantes desses cursos, chegando ao ponto de marcar o dia da festa justamente na mesma data em que acontecia, anunciada de modo prévio, um já tradicional festival de esquetes teatrais, que reúne muita gente ligada às artes cênicas da cidade.

Recepção de pessoas novas em instâncias de ensino faz parte da história das práticas educativas do Brasil, até mesmo na educação regular, os primeiros dias de aula são dedicados às apresentações, em escolas públicas até à paisana os estudantes podem ir, o que é um verdadeiro indulto, frente à imposição do uniforme que terá uso obrigatório até o final do ano letivo.

A relação entre estudantes sempre deve estar em debate, não só por parte dos educadores e servidores com funções administrativas, mas principalmente pelos próprios discentes. Sabemos que há horrendos trotes, planejados e programados para humilhar novos estudantes espalhados pelo Brasil e a ausência de legislação específica acaba alimentando essas condenáveis práticas, mas também não se pode perder de vista que tem gente fazendo bem diferente, preocupada com o futuro dos seus colegas de formação e consequentemente de ofício, se dedicando para que a recepção desses colegas desperte a vontade de estudar e não a desconfiança ou o total descrédito das pessoas em sua volta. O Curso de Licenciatura em Teatro do IFCE está de parabéns, dando exemplo de humanidade e criatividade. E que iniciativas como estas possam ganhar maior visibilidade, para que possamos dar o devido valor a quem se esforça na construção de uma sociedade menos contraditória e injusta.

Augusto Azevedo é empreendedor da área de Organizações Sociais, atualmente se encontra envolvido em estudos sobre aproveitamento de recursos hídricos com Peter Brabeck-Letmathe


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