A segurança como projeto político para a desigualdade



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Desde o período colonial, no Brasil, os pobres, negros e indígenas são tratados como ameaça à segurança de uma nação que se constituiu por meio de violações de direitos e concentração das riquezas nas mãos de uma minoria. Enquanto se espera de sociedades democráticas o mínimo de organização da vida social, no Brasil os governos pós-imperiais insistiram em não realizar reformas para melhorar a convivência entre os grupos sociais dominantes e subalternos.

Nesta sociedade, os “cidadãos de bem” são proprietários de bens e, por meio de heranças e aproximações com o poder político, garantiram uma série de direitos e privilégios. Do outro lado estão os sujeitos que ameaçam essa ordem, retratados na figura do “bandido”. Esse “bandido” não é apenas a pessoa que comete crimes, mas todos aqueles que rejeitam essa ordem das coisas e questionam porque a terra, por exemplo, tem que ficar nas mãos de um número ínfimo de famílias enquanto milhares de pessoas lutam pelo direito de poder trabalhar nela. Longe de serem proprietários originários da terra, muitos destes são descendentes de grileiros que usurparam a terra de povos ancestrais e comunidades tradicionais.

Outro exemplo de como as injustiças se estabelecem no país está na gestão do salário dos trabalhadores brasileiros. A mesma união federativa que paga o mínimo de novecentos e poucos reais, paga o incrível teto de trinta e nove mil reais. São contradições que tornam a convivialidade democrática impossível entre pessoas que deveriam gozar de direitos e oportunidades iguais.

Desta maneira, ao optar por manter uma ordem injusta e desigual, não restou alternativa para governos brasileiros fazerem outra coisa que não seja o gerenciamento de conflitualidades decorrentes de realidades heterotópicas, repletas de possibilidades criativas e destrutivas em que cada segmento social cria suas próprias utopias e maneiras de viver em adesão ou contraposição ao projeto nacional. Ricos criaram seus estilos de vida distantes dos problemas nacionais, com seus enclaves fortificados, suas escolas caríssimas, suas viagens de férias para a Europa, seus carros blindados e espaços controlados por serviços especializados de segurança. Os pobres também criaram suas próprias utopias e estilos de vida. A maior parte da população pobre do Brasil aceita a sua condição como um destino e, humildemente, pede a Deus a chance de uma vida melhor para si e seus filhos. Sem a mesma resiliência da maioria dos trabalhadores pobres, uma parte dessa população criou outras utopias e estilos de vida fundamentados na ideia de que armas e drogas podem garantir poder e dinheiro.

Para entender o envolvimento de pessoas com o crime no Brasil é preciso sair do lugar-comum dos julgamentos morais e mergulhar na compreensão do que essas pessoas dizem e como elas retratam seu engajamento em coletivos criminais. Somente assim é possível entender os efeitos sociais das contradições que possibilitaram a ascensão de coletivos criminais fundamentados em utopias e projetos de paz, justiça e liberdade dentro e fora das prisões. A utopia do crime, no entanto, não encontra eco apenas nas pessoas pobres que vivem do trabalho, mas também nas pessoas pobres que dedicam sua vida a fazer a segurança pública em uma sociedade desigual. O ódio que o policial sente do bandido pode ser compreendido pelo fato de ele ser tão pobre quanto a pessoa que enfrenta, mas ter construído para si uma outra utopia.

Portanto, o que está em jogo no campo da segurança pública brasileira é a manutenção desse lugar heterotópico e destrutivo, no qual as diferenças não encontram meios de se acomodar e conviver. A violência emerge do lado de quem compromete a ordem e do lado de quem defende a ordem, sendo um meio de comunicação entre pessoas engajadas na destruição umas das outras.

Dessa forma, a segurança pública nada mais é do que uma tecnologia de poder para manter as pessoas separadas, distantes e inimigas. O pior desse diagnóstico não é a tragédia do presente, com milhares de mortos ano após ano, mas o fato de vivermos em um país que elegeu alguém disposto a ampliar as distâncias sociais entre ricos e pobres. Busca-se, a todo custo, apenas gerenciar pela força um país dividido entre grupos que constroem suas próprias utopias e estilos de vida, alinhados ou não à ordem das coisas. 

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Luiz Fábio Silva Paiva – Prof. da Universidade Federal do Ceará e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV/UFC) – luizfabiopaiva@gmail.com


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